Opinião

O Huambo de ouvir e contar(2)

Manuel Rui

Escritor

Vou falar-vos de um Hotel malaico. A suite 506. Com um espelho enorme, adornado com dourados chineses. O Hotel chama-se EKUIKUI I. Ao matabicho, era comida e mais comida, ovos mexidos, salada de fruta-pão, manteiga e a infalível sopa de feijão com chispe, matriz angolana, pois em nenhum hotel por esse mundo fora encontrei sopa de feijão ao matabicho, dizem que é para dar força…só que, para um hotel de quatro estrelas, não vai operário nem camponês.

01/02/2024  Última atualização 06H10
Guardei a sopa e muita comida. Saimos no carro e, quando voltamos, tinham levado a comida sobrada. Chamei a camareira para avisar que não voltassem a levar a comida sobrada. Eu não queria ir à sala de jantar para evitar fotografias, autógrafos e conversas chatas.

Veio a lista de vinhos. Pedi uma garrafa. Uma hora depois apareceu um jovem com a garrafa e o saca-rolhas.  Ele não sabia trabalhar com o saca-rolhas. Fiquei espantado. "Entrei hoje.” Olhe só, o que é que eu tenho com isso. Deixe ver. É assim. Tira a prata.. Depois vai metendo o saca-rolhas, está a ver. Agora sai com a rolha. Veja, se quiser fazer espuma é só subir e baixar o copo.  Comidas, a lista. Camarões ao alhinho. Temos mas não temos camarão. Camarão com legumes salteados. Temos mas não temos camarão.

E eu comecei a riscar a lista. "Vou pedir ao chefe para amanhã mandar comprar camarões.” Mas então vocês não têm um sector de compras e fornecedores mais ou menos certos? "Devemos ter mas eu nunca o vi.”

Chegou uma altura em que saíamos do hotel, entrávamos rapidinho no carro e íamos demandar lugares de comer e bem com gente sabida em indústria hoteleira e aquela cortesia e educação próprias da cultura do Huambo.

Uma noite, incomodado com o menú, pedi um prego no pão. Passou hora e meia e o garçon apareceu com uma terrina redonda coberta com guardanapos de papel. Achei estranho o tamanho mais para cavilha do que para prego. Destapei, meia fatia de pão a cobrir outra meia com meio ovo frito totalizando seis. Não resisti. Liguei exaltado para o director, " não desço, venha o senhor, imediatamente, aqui.”

"Manuel Rui.”

"Sei. Eu estive lá, convidado, o hotel encheu também graças a si. Tenho quase todos os livros seus. Desculpe, sou Martins. Olhe, nunca tivemos uma enchente assim.” "Gaita, um empregado disse-me que era português.”

"Nada. Nasci no Luau e já o meu pai era de lá. No tempo das confusões fui alvejado, ainda se nota na perna esquerda ao andar. Depois, consegui ir para a Suíça e trabalhei em vários hotéis até decidir voltar à minha terra.”

"Mas veja um prego no pão!”

Ligou o telefone. Penitenciou-se que estava ali fazia cinco meses e ainda nem sequer tivera tempo de traçar um plano e por onde começar.

Entrou um homem bem parecido, casaco azul, botões dourados, calça cinzenta, argola dourada na orelha esquerda, risco do lado direito da cabeça e trancinhas viradas para o lado esquerdo.

"Que raio de coisa é esta? Um prego no pão e você traz esta fritada de ovos?”

Entrou o sargento Paulino.

"Sim…a carne não apareceu e…”

"Você dizia que não podia servir.”

"É…”

"Paulino, amanhã muito cedo vá saber a entidade que trata destes assuntos para este cavalheiro ser punido. Martins, os trabalhadores não fazem cursos?”

"Alguns.” " Esta terrina é muito linda. Inclinada. Venda-me uma.”

"Nem pensar. Ofereço-lhe com muito prazer. Falou que a partir de amanhã vai ficar mais três dias por sua conta. Faço-lhe um desconto e evita andar a mudar só por três dias.”

"E eu peço perdão.”

"Que acha Paulino?”

"Como é a primeira vez…pode perdoar mas olha só rapaz, cuidado aqui com o sargento que protege o escritor, você não me conhece.”

"Obrigado e vou buscar uma multa.”

Saiu. O Martins contava as coisas desarrumadas como se tropeçasse um pé no outro, aquilo tudo arrumado poderia dar um romance espectacular sobre a sobrevivência de  quem teimou em voltar à sua terra de origem.

O homem dos ovos fritos saiu e voltou com uma garrafa forrada.

"Aqui está a minha multa. Uma garrafa de Champanhe Moêt & Chandon que vou guardar no frigô-bar.”

Ainda perguntei ao Martins porque é que o frigô de um quatro estrelas não tinha as miniaturas de bebidas e ele disse que eu tinha razão, mas que Roma e Pavia…nem o deixei acabar… "vá-se lixar você já teve tempo para ir pró…”

"Desculpe, mais uma vez.”

Eu ainda fiz um acidente por mor de um colchão avariado com inclinação para a direita, foi só virar-me e espatifei o ombro direito na mesinha de cabeceira, bati com a anca esquerda no chão e estou agora mesmo a voltar da clinica. Uma manhã inteira a fazer radiografias e outros exames.

Quando saíamos do hotel, a simpática e linda kilombo cambuta da recepção perguntou-me se tinha passado bem. Eu disse-lhe que principalmente com o camarão ao alhinho. "Olhe escritor, deixe-me tirar uma fotografia consigo, vou dar a volta, quando voltar avise-me para eu tratar do camarão quê?”

"Ao alhinho.”

"Sim, ao alhinho.”

Esquecia-me. Quando abrimos os sacos, tiramos a capa e a garrafa era daquela zurrapa sul-africana com uma fita vermelha. Grandessíssimo filho…

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Opinião