Opinião

O novo Carnaval brasileiro

Manuel Rui

Escritor

O tempo da Quaresma é o período do ano litúrgico antes da Páscoa. É um tempo de meditação religiosa, de restrições alimentares e até jejuns. Existem lendas como esta: uma mulher lavou lençóis fora de horas e, quando os colocou a secar, ficaram manchados de sangue. A Quaresma é a antecipação à Páscoa e caracteriza-se pela realização de penitências.

22/02/2024  Última atualização 06H10
Falamos em Quaresma porque o Carnaval é a desbunda da Quaresma. Enquanto não chega a Quaresma. Carnis Levale (retirar a carne). Isto relacionado com o jejum da Quaresma. Então vai o exagero.

O maior espectáculo do mundo é o Carnaval brasileiro e logo a seguir, dizem, é o teatro chinês, embora o óculo ocidental lhe inculque retoques circenses. Mas o Carnaval brasileiro faz muito tempo, depois de Carmen Miranda e "o quê que a baiana tem”, foi raptado pelos carnavalescos, empresários do carnaval e patrões do jogo do bicho e uma certa apoliticidade.

Este último foi diferente, acordando para a consciência social. Lembro-me que aqui em casa, Martinho da Vila iniciou o samba assim: "Valeu Zumbi/Veio a lua de Luanda a iluminar a rua/ até que o apartheid se destrua…”

A maka é que combinamos todos que, se Vila Isabel ganhasse quando o apartheid desse o berro, iríamos todos à África do Sul. Vila Isabel ganhou, o apartheid morreu, mas nunca fizemos a excursão combinada. Quando a burrice da censura deu por ela, Vila Isabel começou a sofrer revezes.

Mas, finalmente o samba interfere, reparem, a Verde e Rosa atira-se contra  os "messias de arma na mão”…que é Bolsonaro…Jair Messias. Já a azul e branco de Madureira diz que a sua aldeia "não tem bispo, nem se curva a capitão.” Padre Miguel, Salgueiro e Viradouro, com temas de exaltação e papel do negro na cultura brasileira, o enredo de Mocidade Alegre foi sobre o poder feminino e Tom Maior sobre negritude.

O historiador Simas destaca o enredo da Mangueira "a verdade vos fará livre”. Portela, com a questão dos índios e Grande Rio, criticando a intolerância religiosa.

Esta viragem do Carnaval tem coincidência com as políticas de Lula. No entanto, o Brasil é o segundo país negro do mundo, depois da Nigéria… e o mais racista à Casa Grande e Sanzala… do luso-tropicalismo. É um país de maioria negra num apartheid adocicado. Alegra-me que o Carnaval em S. Paulo tenha tido também a tónica da consciencialização social.

Contente, porque já tive sobrinha nesta porta bandeira de Vila Isabel, a minha escola e, uma vez, tantas da noite, fui com meu compadre Martinho para o Morro do Macaco e de cachaça em cachaça (não é de cansaço em cansaço de Ângela Maria), entrei nessa que vocês, uma vez para experimentar, não deviam descer o morro e virar ausência no Carnaval.

Fez-se silêncio e nos olhos dos presentes senti uma severa crítica. Depois, um grandalhão ofereceu-se para meu guarda-costas. Sim. Eu ainda perguntei quase brincando:

"Você mata.” E ele respondeu: "Faço serviço pra polícia e pra privado.” Assustei-me. Mas no dia seguinte estava lá à porta do hotel.

Agora é que é a desbunda da liberdade de criar. Essa é a riqueza da palavra enriquecida pela música, pela linguagem corporal, as cores, as alegorias e o som das baterias. Um dia, minha sobrinha filha de Martinho da Vila, a Flor, mereceu um livro que eu só vim a publicar dez anos depois, aqui. É o da Girafa que vai ao Carnaval do Rio. Valeu.

Julgo que o Carnaval não deve ser estático, reportando-se só à tradição, mas uma festa inclusiva e, entre nós, os grupos carnavalescos devem transformar-se em associações cívicas para haver progresso na construção e melhoria do Carnaval, sem ser feito à pressa mas durante o ano, ponderado, chamar os arquitectos, desenhadores e afins. Um carro alegórico é uma obra de arte colectiva que vai receber os corpos e fantasias que lhe vão fazer voar.

Quando eu era adolescente, na minha terra, Nova-Lisboa, as minhas primas e amigas que jogavam básquete no Atlético andavam nas carroçarias de carrinhas, a atirar umas bisnagas de peidos mal cheirosos, jactos de água, serpentinas, confetti e a cantarem umas marchinhas brasileiras. E nos bailes dançava-se também muito o merengue e "que noite serena…do conjunto Ferrovia”.

Nunca me esqueci daquela do taxista do Rio que tinha ido de férias à sanzala dele. Todo aperaltado. Marcou uma moça, foi lá na vénia a menina dança? Não. Pois, por isso é que a vim buscar…”

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