Entrevista

Entrevista

“Quando cá cheguei, mergulhei no quotidiano angolano e nunca mais quis outra coisa”

Fátima Quifica

Jornalista

Na última peregrinação ao Santuário da Muxima, realizada de 1 a 4 de Setembro, no município da Quiçama, em Luanda, o bispo emérito de Viana, Dom Joaquim Lopes Ferreira, tocou fundo no coração de milhares de fiéis católicos quando, na abertura do evento, lembrou a os presentes sobre o valor da família e a protecção das crianças.

23/09/2023  Última atualização 10H30
Bispo emérito de Viana, Dom Joaquim Lopes Ferreira © Fotografia por: DR

"Espero que os pais que cá estão aprendam a amar, a proteger e a cuidar das crianças, com incidência para aquelas que se encontram em situação crítica”, apelou o prelado católico que nasceu no Concelho de Santo Tirso, Distrito do Porto, Portugal, e chegou ao país em Agosto de 1973, quando tinha apenas 23 anos.  

Como descobriu a paixão pelo sacerdócio: foi uma opção pessoal ou foi forçado a escolher isso?

Entrei para o seminário quando era ainda muito pequenino. Aos dez, onze anos, iniciei os meus estudos religiosos. Entre 1967/68, fiz o curso de Teologia, na Faculdade de Teologia do Porto, e, em 1972, a licenciatura em Teologia, na Universidade de Lisboa. Só, assim, consegui vir para Angola, no período colonial.

 Foi uma opção pessoal?

Foi uma opção e um pedido, porque não era normal irem para Angola jovens em preparação para o sacerdócio, antes da própria ordenação sacerdotal. Entre os Capuchinhos, eu devo ter sido o primeiro que ia trabalhar com os missionários sem estar ainda ordenado padre. Nem sequer tinha idade para ordenar. As ordenações, segundo o Código de Direito Canónico, acontecem a partir dos 24 anos. Tendo eu apenas 23, acabei por vir dois anos antes.

E escolheu Angola porquê?

 Curiosamente, devido àquela turbulência, que surgiu antes e depois da  proclamação da independência, o Arcebispo de Luanda, à época, Dom Manuel Nunes Gabriel, achou que não havia ambiente, em Angola, para a sua ordenação.  Por causa disso, viajei para o Porto, onde fui ordenado Sacerdote, no dia 25 de Maio de 1975. Logo a seguir, regressei para Luanda, num ambiente altamente conturbado da história de Angola. Viajei para Luanda num avião 747, onde, a par da tripulação, eu era o único passageiro.Os aviões iam vazios para Luanda e regressavam para Lisboa abarrotados de passageiros. Surpreendida com a minha presença, uma menina em serviço no avião perguntou-me o que eu fazia naquele voo, e se eu era padre ou doido. Respondi-lhe que era as duas coisas ao mesmo tempo (risos).

Não obstante o clima de tensão em Angola, acabou por vir. Foi obrigado?

Foi minha opção. Os mais velhos estavam perturbados, mas eu não. Era muito jovem para me perturbar com aquela turbulência. Vim para Luanda com muito gosto.

Como a sua família reagiu a isso?

Olha, reagiu muito bem. A minha família era muito liberal. Devido ao fascismo, em Portugal, e essa coisa das colónias portuguesas, em África, os meus pais imigraram, nos anos 60, para Alemanha, onde se encontram até aos dias que correm.
Eu não fui porque me encontrava a estudar naquela altura. Fui o único que fiquei.
Quando cá cheguei, mergulhei no quotidiano angolano e nunca mais quis outra coisa. Senti-me como se estivesse em Portugal, ou melhor, apesar de todos os problemas que se vivia na altura.

Onde é que estava acomodado após a sua chegada a Luanda?

O primeiro local em que residi, em Luanda, foi o bairro da Cuca ou Ilha da Madeira, como antigamente era conhecido o bairro do Hoji Ya Henda. Fiquei na Casa dos Capuchinhos portugueses, em Santo António. Naquela altura, havia, em Angola, o que chamávamos os Capuchinhos da Província de Portugal e os italianos da Província de Veneza. Assim são denominados os grupos capuchinhos. Por exemplo, temos em Angola a província angolana dos Padres Capuchinhos, que formam um grupo com designação oficial de província, mas que não tem nada a ver com província, propriamente dito.

Pelo que disse ainda não tinha sido consagrado padre...

Quando cheguei, ainda não tinha sido ordenado Padre. Comecei a trabalhar com uns padres que, para além do Hoji Ya Henda, Catete e Muxima, já pertenciam aos Capuchinhos de Portugal. Tinham, do ponto de vista eclesiástico, sob sua responsabilidade as zonas do Ngola Kiluanji, Petrangol, Kifangondo, Funda, Caxito e Nambuangongo. Em 1975, com a proclamação da independência e os vários problemas que surgiram, muitos se foram embora e, um ano depois, tinha sobrado apenas eu.  Como consequência, fui forçado a assumir, em 1981,  a responsabilidade de todo um império, digamos assim, religioso, que os capuchinhos cuidavam.

Pode explicar melhor isso?

Éramos um grupo de cerca de quinze e fiquei apenas eu. Foram momentos muito difíceis, o período que foi de 1976 a 1981. Tive que ocupar a área pastoral toda e fazer o que estava ao meu alcance. Em 1981, alguns amigos que já cá tinham estado, começaram a regressar para Angola, permitindo  uma melhor distribuição dos espaços. Passei a ocupar-me mais com a zona da Petrangol, na paróquia de Santo André. Devido à refinaria de petróleo que temos naquele bairro, a zona que vai de São Pedro da Barra estava toda desocupada. Não havia habitantes ali à volta.

Mas à medida que o tempo foi passando e talvez influenciado pela guerra, aquilo começou a ser, paulatinamente, ocupado, até chegar ao que é hoje, muito povoado.

Do nada viu as suas responsabilidades aumentarem?

Com certeza, as minhas responsabilidades aumentaram. Tornei-me professor no seminário e depois Vigário Geral da Diocese de Luanda. Durante muitos anos trabalhei com sua eminência, cardeal Dom Alexandre do Nascimento, com quem permaneci até a altura em que fui nomeado bispo do Dundo, em 2001. E aí começa uma nova etapa da história da minha vida.

Também foi professor?

Fiz Direito na Universidade Católica de Angola e dei aulas nas disciplinas de Filosofia do Direito e Ética da Economia, na Faculdade de Economia, duas disciplinas basilares nas universidades católicas. São disciplinas  importantes que fazem com que os futuros juristas e economistas, além de aula das ciências de matemática se dediquem, também, à filosofia, aos direitos humanos e,sobretudo, à ética. Como todos sabemos, economia sem ética representa um problema gravíssimo.

Como foi a sua missão no Dundo?

A Lunda-Norte é uma província grande e com muitas áreas importantes, como a bacia do Cuango e também, digamos assim, o município do Lucapa. Cheguei ao Dundo numa altura em   que a Diocese do Dundo atravessava  momentos mais nevrálgicos da sua história, antes da assinatura dos acordos de paz. A circulação de pessoas e bens era difícil. Para nos movimentarmos, tínhamos que contar com os cargueiros da antiga FAPA. É com eles que tínhamos que contar para nos deslocarmos para Luanda, Lucapa, Cafunfo, ao Cuango e vice-versa. Estar à frente da Diocese do Dundo foi um  desafio muito importante e de extrema importância que tive o prazer de gerir. Foram  cinco anos e mais dois como administrador apostólico do Dundo, que acumulei com a  de Bispo de Viana. Graças a Deus, foi um momento providencial para a nossa província e para a diocese recentemente criada.

"As relações entre a Igreja Católica e o Governo são excelentes”

Como avalia as relações entre a Igreja Católica e o Governo Angolano?

As relações entre a Igreja e o Governo são a sequência de um processo muito  envolvente e complexo, que foi precedido de acontecimentos significativos para a história de Angola e à própria igreja. Estávamos em pleno período colonial e numa realidade completamente adversa, onde, mesmo a nível da própria igreja, muita gente não se apercebeu o que significou a proclamação da independência. Tornou-se um pouco anacrónico porque, tal como Angola, a Igreja era tutelada a partir de fora. Com a proclamação da independência, as realidades alteraram-se, não só a nível político mas, também, a nível religioso.

 Qual foi a posição da Igreja?

Depois da independência, a igreja manteve-se e, digamos assim, nos seus devidos lugares. Começou a angolanizar-se. Era realmente constituída por pastores, sacerdotes angolanos, mas não tínhamos bispos. Quando cá cheguei, encontrei apenas o Dom Eduardo André Muaca, como arcebispo. Foi bispo de Malanje e depois arcebispo de Luanda. A seguir a ele uma série de bispos foram sendo nomeados para assistirem às dioceses. As próprias dioceses, que eram poucas, começaram a se multiplicar. Houve uma grande transformação a partir das lideranças que são as dioceses associadas à população. Considero que foi realmente a partir da independência que a igreja começa a fortalecer-se, a adquirir o seu próprio estatuto, até chegar ao que é hoje. Uma igreja muito forte, a nível do continente africano e diria mesmo, a nível mundial.

Há um aspecto que se tem verificado na igreja católica, tem a ver com a recusa de padrinhos provenientes de outras congregações religiosas...

(Risos)... Não é bem uma barreira, é mais uma concessão. Quando uma criança é baptizada, e isso é um costume tradicional que vigora há muitos anos na igreja católica, preferimos sempre que o padrinho seja um membro da igreja católica. Para nós, católicos,o padrinho é como se fosse um pai, que em caso de necessidade ou ausência do pai biológico, o mesmo pode acompanhar a educação moral religiosa e cristã da criança. Se o padrinho não for católico e a criança for baptizada na igreja católica, é muito pouco provável que o mesmo cumpra com esses princípios. É quase o mesmo como nos partidos. Se um indivíduo é do MPLA e vai arranjar um padrinho para ser membro do MPLA, não é na Unita ou do PRS que vai procurar o padrinho para sua criança. As coisas aqui só diferem por se tratar de um assunto religioso. Aliás, eu quando estava no Dundo, por diversas vezes fui chamado por pastores da igreja metodistas para realizar conferências e dar aulas aos pastores da mesma congregação religiosa.  Sendo um bispo católico, nunca rejeitei. Aceitei sempre.

Na peregrinação à Muxima, o lema foi "Com Maria, amemos e protejamos as crianças”. Qual é a avaliação que faz em relação às políticas do país direccionadas à protecção das crianças?

Embora esteja há cerca de quatro anos em Portugal, em tratamento de cardiologia, acompanho a partir da igreja, mas concretamente da conferência Episcopal, da qual sou membro e da diocese de Viana como Bispo Emérito, o que se passa no país. A minha vida está aqui. Fisicamente posso estar em Portugal, mas espiritual e humanamente falando estou sempre aqui. Nem sei viver fora de Angola.

Acompanho e nós estamos conscientes sobre as boas políticas que o Governo leva a cabo de apoio e protecção das crianças. São políticas muito boas que nós e outras entidades religiosas apoiamos nas áreas da educação, formação e no respeito dos direitos da criança. Muitas vezes as pessoas exageram em relação às dificuldades, mas é preciso ver que há também coisas positivas que se fazem, mas que não são anunciadas pela comunicação social que, em minha opinião, têm um papel muito importante a desempenhar neste aspecto.

"Os angolanos têm   de se dedicar ao estudo profundo   da história”

O bispo completou cinquenta anos de peregrinação. Que testemunho tem a este respeito para as novas gerações?

Escrevi um livro que a Universidade Católica está a publicitar, que aborda exactamente sobre as origens da Muxima. Como sabe, Angola tem grandes carências, lacunas na sua história que precisam de ser preenchidas. É uma história  demasiado grande. Atenção, não quero que esse primeiro número seja considerado história. Depois vem o segundo que vai ser mais pastoral.

Pretende falar no seu livro sobre a história da colonização ou da religião católica em Angola?

Esta história é fabulosa, é política é colonial, mas é também religiosa e repare, isto é uma coisa importantíssima que a Santa Sé e o Vaticano têm que ter muito em atenção. Se algum angolano se lembre de pesquisar os documentos e seguir as correspondências dos Reis do Congo com o Vaticano com o Papa Paulo III, Paulo V, com o Papa Inocêncio XI, vai dar conta que existe uma história tão grande entre os Reis do Congo e a própria Rainha Ginga Mbandi e a sua irmã, Dona Bárbara. Há um princípio curioso que se verifica em todos os povos do mundo e na Europa também, que é um princípio medieval que define que assim como a religião do rei,   o povo também é. Estou a falar de 1640. Muito antes de muitas nações serem católicas, Angola já o era, aqui metida nesta África Austral. A Rainha Ginga não foge à regra. Ela tergiversa de acordo os seus interesses militares e políticos, mas ela converte-se mesmo e torna-se uma cristã católica militante ao ponto de ser enterrada juntamente com sua corte e mais tarde a dona Bárbara com hábitos dos Frades Capuchinhos, a bata castanha e com cordão branco. Eu dizia há bocado que os angolanos da faculdade de História e Direito, etc, têm de se dedicar ao estudo em profundidade da história de Angola,  não só aqui nos nossos arquivos,  como em Lisboa, onde existem coisas infinitas. Em Amesterdão, em Paris, no Vaticano sacar daqueles documentos coisas da história que vão espantar o mundo, a todos os níveis.

  "Devemos adorar a Deus acima de tudo”

Qual é o depoimento da igreja em relação ao tráfico de escravos?

A igreja desde o princípio, desde o tempo do império Romano, conhece isso. A escravatura em Angola,  do século XVI para frente.

Mas, se regredirmos um pouco no tempo, na era dos impérios, vamos dar conta que, infelizmente, a escravatura é um mal que acompanha a humanidade. Aqui, sim, é uma coisa que custa aceitar hoje, as pessoas ficam perturbadas diante de tudo o que se passou, mas repare que era uma política praticada por todos.

Era uma coisa muito séria...

Demasiado séria. Merece um estudo muito profundo e muito equilibrado, porque a escravatura  é realmente qualquer coisa que a gente hoje pergunta como isto foi possível, não foi imaginado mas praticado. A igreja, como doutrina, nunca deveria aceitar que houvesse um escravo. É uma coisa tão humilhante, indigno, que não pode nem sequer ser pensado como foi possível, mas foi.

Era para todos, incluindo a Igreja Católica?

Sim, era praticado por todos. Igreja Católica, nacionais e colonizadores.

Os próprios nacionais colaboraram?

Claro que sim, a gente fica assim um bocado petrificado, quando pensa que os próprios reis também praticavam a escravatura, venderam e utilizaram os seus próprios escravos. Foi muito trágico, por isso é que ainda hoje, continuo a pensar ser necessário  de alguma maneira,tentar compensar, pelo menos do ponto de vista da escrita, da consciencialização do que foi este período.

Regressando a este passado sombrio, há quem continue a reclamar um pedido de perdão da Igreja Católica aos povos africanos...

Não só a Igreja Católica. Quando nós falamos do holocausto dos judeus, o mundo reconheceu o holocausto, o assassinato de milhares de judeus, acho estranho como até agora ainda não se lançou um grito maior a respeito da escravatura. Um tráfico indecente que se praticou movendo milhares de escravos de África para as Américas. Há dias ouvi o Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, a falar um pouquinho sobre esse assunto, fiquei satisfeito. Vi que existe alguém preocupado com o rosto dos africanos, com uma dignidade tão grande, que está a começar a transformar as coisas devagar. Estou convencido de que o Grito de Ipiranga está mesmo a chegar. A dignidade dos africanos é muito grande, que vai fazer as coisas no tempo certo, com o alarido necessário e coerente. Acho que sim, que tem a ver, seja de que tipo for, mas pelo menos um reconhecimento profundo, uma meia culpa.

 Admite que a igreja praticou a escravatura?

Em si próprio, a igreja não praticou a escravatura neste sentido propriamente dito.Não sei no século XVI, como os nossos bispos analisaram aquilo, naquela altura, quer sacerdotes estrangeiros como africanos.

Havia padres africanos nessa altura?

Sim, muitos padres africanos, incluindo um bispo, o Dom Henrique, filho do Rei do Congo, que está enterrado na basílica de Santa Maria Maior em Roma. Foi o único caso de um negro bispo na história de Angola, naquele tempo.

Ainda durante a peregrinação, alguns fiéis  mostraram-se preocupados com o que pareceu ser um acto claro de adoração à imagem da virgem Maria…

Esse é um velho problema que, de facto, de alguma maneira, distingue o sentido do cristianismo, sejam eles protestantes, metodistas e igrejas evangélicas. Há um conflito a esse respeito que tem sido explicado pela igreja. A questão das imagens, a da virgem que para muitos, é uma espécie de adoração ao lado de Deus, quando o mandamento diz que só Deus pode ser adorado, no fundo, uma incompreensão daquilo que nós católicos, pretendemos que o povo de Deus faça e sinta. Ninguém adora ninguém, a menos que seja Deus. São Francisco, Santo António e Virgem Maria são criaturas, mas por levarem uma vida tão bonita, tão santa, podemos ser bons também se os imitarmos. É o sentido de uma imitação das virtudes, da bondade, da beleza e da caridade que fizeram, não é adoração. Qualquer um de nós tem a fotografia dos pais, da mulher e dos filhos em casa, mas nunca é para adorá-los. É para se lembrar deles.

Há quem considere essas imagens como algo discriminatório do ponto de vista cultural e racial…

As interpretações são sempre parciais e como tal, nós temos que aceitar um pouco a diferenciação que, ou por motivos religiosos, sociológicos e mesmo tradicionais, as pessoas vão acumulando ao longo da vida, por transmissão oral dos seus pais e, sei lá, por tradições. Não podemos eliminar isso. Agora se me disserem que os africanos assumem comportamentos desviantes devido às suas superstições, desculpem-me lá.

O povo europeu também tem superstições e não são menos supersticiosos que os africanos. Se formos aos santuários na Europa,vamos encontrar as mesmas coisas que temos aqui na Muxima. Na Áustria, Alemanha e Estados Unidos, encontramos precisamente o mesmo tipo de superstições que encontramos aqui, com as mesmas adorações. O que pode acontecer são as comutações que acontecem, movidas por factores culturais. Não é que os angolanos sejam mais supersticiosos que os outros. O importante é que a igreja está atenta a tentar evitar que haja desvios significativos no culto.

 "O celibato é uma disciplina”

Se lhe dessem a votar entre a abolição e a manutenção do celibato… de que lado ficaria?

O celibato é uma lei disciplinar não é uma lei fundamental. É uma lei que, por motivos diversos, surgiu mais ou menos no século XIV, e que vai se impondo a partir até da concessão da vida dos Frades, religiosa consagrada, e foi passando um pouco para vida sacerdotal. Os sacerdotes nunca foram solteiros, foram casados, como toda a gente. Mas foi se impondo uma disciplina eclesiástica motivada por várias coisas, quer da influência da vida religiosa consagrada, atribuída também um pouco ao sacerdócio,quer pelo direito sucessório que foi trazendo alguns problemas a nível das paróquias, dioceses com a morte dos padres das esposas, dos filhos, etc, etc, etc.

Podemos considerá-la uma lei disciplinar?

É uma lei disciplinar. Muita gente ignora que a Igreja Católica tem uma área muito  importante em que os sacerdotes são casados. Por exemplo, na Igreja Católica libanesa, chamada Maronita, os sacerdotes podem ser casados. Tive muitos colegas casados que estudaram comigo em Roma. Esta lei abrange apenas a zona Ocidental de Roma. Na Oriental os padres podem ser solteiros ou casados. Esta disciplina da Igreja Ocidental Romana pode amanhã ser abolida ou ser transformada igualmente como diz o código da Igreja Oriental.

O celibato pode ser abolido?

Acho que sim, acho que ela vai caminhar para aí. Defendo a liberdade quando de facto estivermos já com uma consciência assumida. Repara que o Papa Francisco não vai assim tão directamente ao assunto, porque a igreja é muito prudente e não quer criar conflitos, mesmo a este nível que tem muito a ver com sentimentos interiores.

Acha que pode se estabelecer uma relação entre o celibato e os abusos sexuais que afectam a Igreja Católica?

Pelo que eu tenho a ouvido a nível da Comunicação Social, eu creio que não. Porque neste momento vejo a nível da sociedade civil se fixarem muito no ângulo da igreja, já graves em todas as circunstâncias. Na igreja, acho uma gravidade um bocado mais acentuada, mas se a comunicação se dedicar da forma como fez na Europa a respeito do clero, a sociedade  civil vai ficar putrificada. Os problemas existem, também aí, a nível familiar.Seja como for, é sempre um horror essa questão dos abusos sexuais. Mas creio que não tem muito a ver com isso. Se os psicólogos acharem e provarem, isso seria um pouco contra a Natura. A maioria do clero não está dentro destes desvios, que têm sido praticados em muitas nações e, como se diz, basta um caso para ser já horrível em si, isso custa a aceitar. O que temos que fazer é curvarmo-nos e dizer que é algo que de facto denigre, pois a igreja frente a si própria. Uma realidade que custou a admitir e que de facto hoje lamenta e pede perdão por isso. Mas creio que a razão não está aí. Se por acaso o celibato, como penso, vai sendo estudado, até a sua abolição ou no sentido da escolha não ser uma imposição, mas uma escolha, isso vai acontecer mais tarde ou mais cedo, sem grandes conflitos.

O senhor é a favor ou contra?

Eu sou a favor da abolição.

Como se sente com uma vida sem família constituída?

Eu não sou um sacerdote diocesano, sou um capuchinho e aqui, às vezes, a comunicação social não distingue muito bem estes dois aspectos, a vida religiosa dos conventos. Nós estamos aqui num convento de capuchinhos, estamos neste momento num convento, com cerca de quarenta frades. Portanto são três casas numa junta, aparentemente é só uma, temos três realidades aqui dentro. Grande parte dos frades são religiosos que vivem em comunidade. Ainda assim têm princípios um pouco diferentes dos sacerdotes diocesanos.Os dois são padres, podem viver sozinhos nas suas casas, têm a suas paróquias. Nós não, vivemos em comunidade. O facto de vivermos todos juntos radica numa realidade familiar. Nós somos uma família e essa família está reunida, sempre à base de princípio que precedem do seu fundador, neste caso, o São Francisco de Assis.

Quer dizer que São Francisco deu para vocês os princípios que norteiam a vossa vida?

Com certeza. Quer dizer que vivendo em comunidade, a Teologia que nos envolve é diferente da Teologia que envolve o sacerdócio. Nós, em princípio, não deveríamos ser sacerdotes. Só padres e somos padres porque a igreja precisou de padres para o seu serviço e pediu-nos para o seu serviço e clericalizámos.

Quem deve ou não constituir família?

Ao sermos religiosos, temos princípios completamente diferentes. Por exemplo, imagine se o papa declara que o celibato será abolido. Se isso acontecesse de facto, o Papa estaria a referir-se aos sacerdotes, não a nós.  Quando o celibato um dia for de posto, digamos como opcional, nós ficaremos sempre celibatários, porque a nossa vida religiosa não se compreende senão nesta base. Já a vida sacerdotal não, já pode ser compreendida no conjunto de uma vida que pode englobar também a realidade do matrimónio.

Sente-se bem assim, sem família constituída?

No sentido físico, sim, no espiritual nós temos sempre filhos. Eu considero esses jovens que passaram por mim que me consideram pai ou avô, como verdadeiros filhos. Já está a ver que é preciso ter cuidado em relação às vocações, quem pode ter ou não este dom de poder ser fiel a uma vida de entrega totalmente aos outros, como testemunho de valores que ultrapassam a própria realidade presente.

O que faria se te dessem uma oportunidade de recuar, no passado, para constituir família?

Atenção, isso não significa que ao optarmos pela vida consagrada, religiosa e não matrimonial, não significa que não pudéssemos fazer o contrário. Eu podia ter escolhido o casamento e acho que me sentiria muito bem. Mas não seria uma fuga, como soe dizer-se, fugir à responsabilidade. Porque uma fuga também não é muito positiva. É diferente quando é porque tem medo, receio ou falta de capacidade para assumir. Quer dizer é escolher mesmo com convicção e neste aspecto até, mais espiritual, saber se realmente estais na linha do equilíbrio emocional, sentimental e humano total, para poderem se dedicar a essa realidade, com alegria, ser fiel e não estar aqui a suspirar por aquilo que deixou.

Existem muitos padres com filhos em Angola?

Se a gente for a analisar a realidade, não só em Angola, mas no mundo, tem acontecido muitos casos. Por vezes, são mais vozes do que nozes. Mas tem aparecido alguns casos.

O papa fez uma digressão por alguns países africanos, chegando a passar próximo de Angola. Em alguns círculos locais o gesto foi tido como um castigo por Angola não ter iniciado as obras para a construção da Basílica da Muxima. Isso é verdade?

Eu não creio que isso tenha constituído um motivo para não passar por Angola,um aborrecimento. Pelo menos ele nunca se pronunciou comigo em relação a isso. Quando ia visitá-lo na condição de Bispo de Viana, o Papa Francisco perguntava: então a Basílica avança ou não? Mas vocês sabem que Angola tem enfrentado algumas oscilações, sobretudo do domínio económico. Às vezes, esses mega projectos não são assim tão fáceis de se concretizar. Tem muito peso uma promessa feita à pessoa do Papa Bento XVI. No Palácio Presidencial. A demora gera suspeitas, mas depois percebemos que houve mudanças políticas na gestão da coisa pública e a crise financeira mundial. Mas o sinal já foi dado e me parece que a basílica está a começar. A primeira pedra já foi lançada. Não é assim, digamos uma questão de aborrecimento ou de crítica negativa,é só uma pergunta, porque tanta espera. Estive lá agora e vi a requalificação da Muxima.

Não houve um mal-estar entre o Governo e a Santa Sé?

Não, por amor de Deus, como sabem, até temos boas relações com a Santa Sé e o Governo.

É político?

Quem é que não é político. Somos todos políticos, mas pautei-me sempre por um respeito absoluto. Não sou capaz de me imiscuir num assunto que não me diz respeito, não só como estrangeiro, mas como se fosse nato de Angola. De resto, eu sou um estrangeiro que se tornou nacional, o meu passaporte só me interessa para a polícia do aeroporto. Político sempre, mas nunca conflitante com a própria política. Tenho um respeito absoluto pela política que muito aprecio.

Como é ser bispo?

A vida de um bispo ou arcebispo, as palavras são iguais neste sentido, é uma vida de serviço. Às vezes, as pessoas pensam que somos assim uma espécie de sobas grandes, com muito poder. Na realidade não deixamos de ser servos pobres ao serviço do povo. A nossa autoridade é moral, é uma autoridade espiritual na condução do clero do povo, mas evangélica e sem absolutamente nada em termos de poder, por exemplo,os governadores, administradores, entre outros. Administramos os bens da igreja, procurando fazer com que o clero se sinta bem, mas sempre numa linha de serviço nunca de poder. O nosso poder é do tipo espiritual.

Onde é que pensa ser sepultado quando chegar ao fim dos seus dias?

Eu quero ser sepultado aqui em Angola, no meio do meu povo. Se não for aqui, ninguém vai chorar por mim. Em Portugal não há ninguém. É aqui que quero ficar.

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