Entrevista

Rosalina Bernardo Kasisa: “Deixo uma Baía Farta aberta a quem queira ajudar os munícipes a sonhar”

Arão Martins / Benguela

Jornalista

Formada em Psicologia Clínica pelo Instituto Superior Jean Piaget de Benguela, Rosalina Bernardo Kasisa foi a coordenadora da rede sanitária da Caritas, programa social da Igreja Católica, onde acumulou experiências, vivências e um sentido de serviço acima de qualquer interesse pessoal. É por conta de tal virtude que se tornou uma líder de referência. Depois de aproximadamente dois anos à frente dos destinos da Administração Municipal da Baía Farta, Rosalina Kasisa abraça outros desafios políticos em Benguela. Vai desempenhar o cargo de 2ª secretária do Comité Provincial de Benguela do partido MPLA. Em entrevista ao Jornal de Angola, ela diz que deixa o município da Baía Farta, o maior produtor de sal marinho do país, com o sentimento do dever cumprido

07/05/2023  Última atualização 10H00
© Fotografia por: Arão MartinS | Edições Novembro

É possível auto apresentar-se?

Rosalina Bernardo Kasisa leva no seu vasto curriculum a actividade de professora na Escola Técnica Provincial de Saúde Pública na província do Bié, nos anos 1987 a 1991, para depois, entre 1991 e 1994, transferir-se para a Escola da mesma referência, porém, na província do Huambo. Sou uma mulher que gosta de enfrentar novos desafios com persistência, optimismo e vontade de aprender com as experiências dos outros. Depois de pelo menos dois anos à frente dos destinos da Administração Municipal da Baía Farta, deixo um município que não vive apenas do peixe, mas também é turismo, é agricultura e tem grande potencial para se investir na pecuária.

 

Qual é o município da Baía Farta que deixa?

Deixo um município que é o maior produtor de sal marinho do país. Mas antes, deixa-me agradecer o espírito de equipa criado, que espero que a minha sucessora mantenha na sua circunscrição, para se tirar o maior partido das potencialidades naturais e relançar o pleno desenvolvimento dos munícipes.

 

Sabemos que é mulher de mérito. Afinal de contas, quem foi até há bem poucos dias a administradora municipal da Baía Farta?

Rosalina Kasisa é uma mãe e senhora que desde muito cedo aprendeu a encarar os bons e maus momentos da vida. Cresceu na cidade do Huambo. Muito jovem, por força de circunstâncias e momentos menos bons, teve que ficar distante do seu pai, crescendo com a mãe, casou-se e como sabe, naquela altura, todos os jovens eram obrigados a cumprir o serviço militar, por isso, casada com um jovem que teve de abandoná-la muitas vezes para o serviço militar obrigatório. Com esse jovem teve os seus filhos, mas muito cedo perdeu o marido por causa das situações que surgiram no Huambo depois das primeiras eleições gerais. Sabe-se que as províncias do Huambo e Bié são áreas onde se sentiu na pele e no osso o reacender da guerra depois de se ter divulgado os resultados das primeiras eleições gerais, em 1992. Aos 25 anos, perdi o meu marido em condições difíceis, e, como deslocada, tive que abandonar a província do Huambo e encontrei o acolhimento necessário na província de Benguela. Hoje tenho a província de Benguela como se fosse minha terra natal. É a  província do meu coração, pois é aqui onde me consegui recuperar física e psicologicamente. É nesta província onde encontrei condições favoráveis para cicatrizar as feridas abertas com o desaparecimento do meu marido, que deixou sobre os meus braços crianças pequenas, desde os famosos 57 dias da província do Huambo. Em 1993, na sequência da guerra pós-eleitoral, a cidade do Huambo foi cercada e submetida a bombardeamentos pelas forças militares da UNITA. Depois de resistirem por 56 dias (e não 57), as forças militares do Governo romperam o cerco e milhares de civis fugiram a pé, maioritariamente, para Benguela (vide o livro "Huambo 56 Dias de Terror e Morte”, de Jorge Ntyamba, Mayamba Editora). Benguela ajudou-me a me levantar e a perceber que não há mal que perdure. Na condição de mãe e pai precisava de andar, tocar a bola para frente. É esta a administradora que a província de Benguela ganhou nos dias de hoje.

 

Qual foi a sua trajectória anterior?

Sou quadro sénior do Ministério da Saúde. Muito cedo comecei pelo sector da Educação como técnica de contas, colocada na Direcção Municipal da Educação do Huambo. E tão logo o meu marido foi transferido para a província do Bié como juiz do Tribunal Militar, tive que o seguir.  É no Bié onde frequentei o curso médio de saúde no Instituto Comandante Bula, do Cuito. Concluído o curso médio, fui colocada na Escola Técnica de Enfermagem do Bié. Dei aulas no próprio Instituto Médio do Cuito, seguidamente regressei à província do Huambo, onde continuei a dar aulas na Escola Técnica de Saúde Pública.

 

Qual foi o passo seguinte?

Depois, na condição de deslocada, já na província de Benguela, fui colocada na Direcção Municipal da Saúde, para posteriormente ser encaminhada a trabalhar na sala de partos na fronteira de Benguela. Face ao convénio lavrado entre a Direcção Provincial da Saúde de Benguela e a Caritas, através da Diocese de Benguela, passei a ser coordenadora do sector de saúde da Caritas na província, de 1996 a 2011. Nesse período, fui gestora de todos os programas de saúde. Passei por todos os centros de aquartelamento para dinamizar os projectos de saúde. Fui uma das palestrantes que, naquela altura, se levantou para dar vida aos programas de prevenção.

 

Sente-se satisfeita com o contributo dado?

Sabe-se que naquela altura perdiam-se muitas crianças por causa das doenças diarreicas agudas e Rosalina Kasisa era uma das vozes que circulou e passou por todos os municípios de Benguela para dar voz e vida aos programas de combate a essas doenças.


Forte ligação à Igreja Católica

Como foi a sua ligação à Caritas?

Foi uma experiência muito positiva. Esta pergunta me faz lembrar Dom Óscar Lino Lopes Braga. Antes, deixa-me dizer que já desempenhei funções de coordenadora de programas, naquela altura, elaborados pela Caritas sob o olhar e acompanhamento directo da CEAST, onde nós, também, contamos com o grande apoio e a liderança do bispo, de feliz memória, Dom Óscar Lino Lopes Braga, pastor, líder e activista de saúde por excelência.

 

Já mereceu algum reconhecimento pela CEAST?

Nas vestes de gestora de todos os programas de saúde, naquela altura, fui indicada pela CEAST para participar de uma conferência no Brasil, que serviu de troca de experiência. Dom Óscar Braga foi o primeiro bispo de Angola que deu vida a um programa de sensibilização, informação e aumento de nível de conhecimento sobre o VIH a nível da Igreja. Quando a Igreja se levantou para dar corpo a estes projectos, eu, Rosalina Bernardo Kasisa, fui a pessoa confiada para a gestão desse projecto, que congregou vários activistas e teve uma componente formativa muito forte. Naquela altura, dos três grupos alvos, houve um grupo que, de facto, foi um desafio, o constituído por líderes religiosos. Tivemos um grupo de padres e pastores e vimos, naquele projecto, o resultado do trabalho ecuménico no que toca ao combate ao VIH/Sida.

 

Também é conhecida por PROMAICA. Qual a explicação?

Sinto-me honrada por isso. De facto, participei directamente no arranque e na implantação da organização de mulheres católicas denominada Promoção da Mulher Angolana da Igreja Católica (PROMAICA). Fui a sua primeira coordenadora, aos 26 anos. Na condição de viúva, foi muito desafiante. Conseguiu-se ter, hoje, a PROMAICA que tem como berço a província de Benguela e se estende por todas as províncias. Temos o orgulho de termos a PROMAICA a nível nacional.

 

Como aconteceu o desafio de ser nomeada administradora municipal da Baía Farta?

Tudo começa com a vinda de um grande homem e líder. Precisamos de ter esta coragem de dizer publicamente que nós vemos no senhor Luís Manuel da Fonseca Nunes um grande líder, aquele que, de facto, nos inspira em tudo que estiver ao nosso alcance para ajudarmos o próximo. Com a nomeação do senhor Luís Nunes como governador provincial de Benguela, tive a graça de fazer parte dos quatro assessores seus para a área política e social. Nesta função, começamos a fazer o nosso trabalho e depois de pouco tempo, a nível do partido, achou-se que eu devia cumprir uma missão no município do Lobito, onde fui eleita como primeira secretária municipal do MPLA. Tudo fizemos. Findo o nosso tempo no Lobito, isto é, depois da realização das últimas eleições, o governador provincial de Benguela achou que Rosalina Kasisa deveria seguir para o município da Baía Farta. Foi-me confiado o povo da Baía Farta. Como é natural, dá sempre aquele friozinho na barriga. No dia da tomada de posse senti que não tinha chão, mas, depois do discurso de tomada de posse, eu percebi que fui nomeada para continuar a servir este povo e pátria. Fiz minhas as palavras dos militares, quando dizem que a pátria aos seus filhos não implora, ordena!

 

Já dominava esta praia?

Foi a primeira vez que assumi essa espinhosa missão, mas quero dizer que estou aqui de peito aberto e animada. Desde muito cedo aprendi que na vida nós aprendemos todos os dias, com as pessoas acima de nós, com aquelas que estão ao mesmo pé de igualdade e com as que estão abaixo do nosso nível. Aprendemos com adultos, jovens, adolescentes e até com crianças. Então, a administradora municipal da Baía Farta está aqui com toda a humildade necessária e que se impõe para continuar a aprender e a partilhar, também, toda aquela carga que ela traz na sua bagagem como experiência de vida, para juntos continuarmos a dignificar o nosso Governo,  a dar corpo aos programas traçados pelos governos central e provincial, rumo à resolução dos problemas do povo.

 

Qual é o município da Baía Farta que encontrou e que deixa?

Encontrei um município com a sua gente simpática, boa, trabalhadora e com desejo de ver uma Baía Farta diferente, próspera, que se possa colocar no patamar de muitos municípios do litoral, não só da província, mas também de outras latitudes. Encontrámos, também, uma Baía Farta que nos colocou muitos desafios. O primeiro desafio é continuarmos a trabalhar no sentido de termos uma Baía Farta com os seus munícipes não muito presos só ao peixe, mas sim uma Baía Farta com todos os recursos que tem, como o ouro azul, que nos ajude a olhar para as experiências dos outros e aprendermos a tirar bom proveito do recurso azul que o município tem.

Encontrámos uma Baía Farta que nos colocou, igualmente, desafios no sentido de atrair investimentos, para podermos explorar todos os campos turísticos. Uma Baía Farta que nos colocou desafios na medida em que nós precisamos de fazer ainda o caminho para que os munícipes entendam de onde viemos, onde estamos e aonde queremos chegar. A convivência social foi, igualmente, outro desafio que nos foi colocado. Saber estar, ser, ter e fazer. Uma Baía Farta que também se apresenta, em alguns momentos, com alguma sensibilidade que nos leva a reacções menos boas e com alguns sinais, às vezes até de intolerância, o que, de certo modo, também nos coloca desafios. Precisamos de olhar para as virtudes e não ficarmos presos aos defeitos dos nossos governantes ou líderes, mas é importante olhar para as virtudes de cada munícipe ou dirigente, e com ele conseguirmos galgar e dar passos mais largos rumo ao desenvolvimento do nosso município.


"A Baía está muito  para   além da pesca”

Baía Farta é conhecida como forte em termos de pescas. Há muitas empresas a explorarem esses recursos?

De facto. Baía Farta tem de tudo um pouco. O município tem um número elevado de pescarias. É o que nos ajuda a absorver uma boa parte desses jovens que todos os dias se debatem com a necessidade virada para a empregabilidade, o que é um grande ganho. O município da Baía Farta deve saber tirar proveito deste grande ganho. A Baía Farta tem empresários que continuam a sonhar Baía. Eles continuam a pensar no que fazer amanhã para que este potencial de recursos naturais que o município tem  se reflicta na vida dos munícipes.

 

Não existem dificuldades?

Encontramos famílias com dificuldades. Não vamos esconder. Encontramos aqui baianos com um nível de saúde financeira que chama a atenção de todos, não pelo facto de não terem ou de perderem a capacidade de adquirir o que realmente necessitam, mas precisamos de trabalhar para o aumento do nível de conhecimento em relação à gestão. Na Baía ganha-se, mas é importante olhar para aquilo que o cidadão faz com aquilo que ganha. Até agora é "ganhou e gastou”. O gasto é imediato. Por isso, precisamos de continuar a promover acções que ajudem, também, a olhar para a vida do baiano no que toca ao gasto. Quanto tem e quanto vai gastar. E ali estaremos a falar na gestão dos próprios recursos que as famílias conseguem arrecadar, para que, de facto, o que ganham se reflicta no dia-a-dia das famílias.

 

Baía Farta é só peixe?

Baía Farta não é só peixe. Baía Farta tem futuro, é turismo, é agricultura e tem grande potencial para se investir na pecuária.  Baía Farta é também cidade do sal. Aliás, temos aqui este corredor da orla marítima sul que nos oferece um campo vasto para continuarmos a sonhar e olharmos para aquela cidade de sal que nós pretendemos ter daqui a cinco ou 10 anos. Baía Farta também tem inertes que podem, de certa forma,  trazer esse potencial que se precisa para que o município possa se transformar num espaço com condições dignas para se viver.

 

Deixa obra feita na circunscrição?

Baía Farta, também, é um município que tem presença no pacote de obras previstas para o próximo quinquénio.  Baía Farta há-de ter institutos e obras de grande calibre, que até agora não se conheceram, tudo isso, graças ao empenho do Executivo. É importante dizer que Baía Farta, tal como acontece com Benguela, tem gente que sonha e os resultados destes sonhos estão inseridos nos projectos do pacote municipal, com realce para o Plano Integrado de Intervenção nos Municípios. Temos também projectos inseridos no pacote provincial, que, de facto, ajudarão a dar um grande brilho ao município.

Baía Farta também tem alguns desafios. A actual administradora encontra desafios no sector da Saúde. Precisamos requalificar a rede sanitária deste município, pois que a vida se fazendo nos municípios, urge a necessidade de muito se fazer no que toca às unidades sanitárias da periferia. É preciso construir mais unidades sanitárias e requalificar aquelas que já existem e apetrechá-las, bem como dar uma atenção especial à humanização dos serviços do sector de Saúde. Esta é a grande bandeira da nossa governação.

Futuro entregue à vida partidária

Depois de ser eleita segunda secretária provincial do MPLA em Benguela, deixa o município satisfeita?

Saio com o sentimento do dever cumprido, apesar de faltar muito por realizar. Não estamos satisfeitos, apesar de termos esse número de pescarias, ainda não estamos satisfeitos. Precisamos de ter a produtividade e os números da Baía Farta, também, no nosso portal do município. Precisamos de ter isto reflectido nos recursos que o próprio município vai arrecadando. A minha sucessora vai encontrar uma Baía Farta que a desafiará no sector da Educação. Ainda temos um número a considerar de crianças fora do sistema de ensino. Dói a alma e rasga o coração, como mãe, ver crianças a estudar em condições difíceis. Por isso, queremos ver as coisas a andar um pouco mais rápido, mas às vezes, nós também encontramos barreiras, pois  precisamos de programar e obedecer, também, a algumas etapas, para que, de facto, se consiga atingir aquela excelência almejada.

 

Mas a excelência é um processo...

É bem verdade e estamos plenamente de acordo que a excelência é um processo. Estamos dentro deste processo. Havemos de chegar lá, por isso estamos aqui. Porém, estamos satisfeitos, porque já conseguimos dar o primeiro passo ao voltarmos a implementar a merenda escolar. E conseguimos, com a merenda escolar, ter a garantia dos pais e encarregados de educação que todas aquelas crianças que se furtavam às salas de aulas já vão chegando, vão aderindo às salas e isso nos anima e nos encoraja a continuar a fazer mais. Para além da merenda escolar prevista no programa de Combate à Pobreza, também  conseguimos inserir no processo quatro escolas, com 525 alunos cada, graças ao apoio da empresa Carrinho. Com a intervenção do governador provincial de Benguela, Luís Nunes, representado pela vice-governadora para a esfera Política, Social e Económica, Lídia Amaro, a Baía Farta conseguiu ter quatro escolas a serem abastecidas com a papa nutritiva da Carrinho, o que para nós é um grande ganho, pois temos escolas distantes que devem merecer a atenção, como é o caso das escolas da comuna de Calohanga.

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