Entrevista

Tonicha Miranda: “Já fiz a minha parte no carnaval”

Analtino Santos

Jornalista

Tonicha Miranda é uma artista ligada à composição musical e ao carnaval. Natural da Ilha do Cabo e conhecedora profunda da história e dos hábitos locais, nesta entrevista ao Jornal de Angola, fala da carreira, dos projectos em carteira e da intenção de abandonar o União Mundo da Ilha. E, de forma realista, discorre sobre os rituais da comunidade axiluanda, nomeadamente a Festa da Ilha e o xinguilamento

30/07/2023  Última atualização 07H43
© Fotografia por: Edições Novembro

Quem é Tonicha Miranda?

Sou Antónia de Fátima João Miranda, filha de António Miranda e de Mariana João Pataca. Nasci na Ilha do Cabo, em casa, como antigamente era feito. O meu cordão umbilical está enterrado aqui nas areias.

 

Na Ilha, terra de gente vaidosa como as belas bessanganas...

Exacto. Costumo dizer que a bessangana é uma mulher de porte e garbosa, ela não anda rápido. Mesmo a peixeira ou quitandeira tem um caminhar próprio, lento e pausado, porque elas conversavam muito quando andavam a pé, naquela altura. A mulher bessangana tem quatro panos, em média, para sua vestimenta, então, além de ouro e missangas, penso que é mesmo o porte de quem está sempre bem. Mas isto é próprio do ilhéu. Mesmo o pescador, que tem a dizula como vestimenta, tem o seu charme, quer dizer, o pessoal da Ilha, homens e mulheres, era pausado, porque não andávamos de um lado para o outro. Quando tivéssemos que sair, era mesmo para exibir aquilo que tinhamos de melhor.

 

E como são vistas hoje?

Os tempos mudaram. Hoje há muitas corridas. A título de exemplo, eu não ando de panos todos os dias porque ainda não decidi. E é preciso um bom investimento, como para qualquer tipo de roupa. Para a bessangana não é fácil comprar panos de qualidade e encontrar uma pessoa para costurá-los. Eu uso quando tenho uma actividade cultural. E saio vestida de casa, quer dizer que é um desfile que faço. Aqui as pessoas já sabem que quando isto acontece é porque tenho algum evento relacionado com a minha vida artística. E como não ando de panos todos os dias, então aproveito e, deste modo, faço a minha exibição, como está a acontecer hoje.

 

Como bessangana, como encarou o facto de essa manifestação cultural ter sido elevada a Património Imaterial Nacional?

Fiquei satisfeita e continuo muito congratulada, porque é uma marca de uma certa região, não só a Ilha como as zonas ribeirinhas têm esta vestimenta. É bom quando tudo aquilo que é típico e nosso é reconhecido. São muitos anos, isto é para toda a vida, embora a geração de hoje esteja resistente em vestir e não leve isto muito a sério. Agora vai ficar marcado como património, de acordo com a classificação,  embora tardia. Mas mais vale tarde do que nunca.

 

Como a bessangana, também o semba e a dikanza foram elevados a património nacional...

Verdade. E graças a Deus, é tudo nosso. Ainda estamos cá para apreciar e passar bem o testemunho. Pelo menos a nível do bairro estamos a fazer isso.

 

Na Ilha foi onde tudo começou. Fale-nos do seu contacto com o carnaval e o meio artístico?

Eu tive a felicidade de ser filha do primeiro presidente do União Mundo da Ilha. O meu pai foi um dos fundadores e dirigiu esta agremiação de 1964 a 1984, altura em  que faleceu. E a minha mãe era dançarina da Rebita dos Novatos. Tudo isso fez o meu mundo. O pai em casa com a azáfama do carnaval, era aficcionado e louco pelo União Mundo da Ilha, tanto é assim que arranjava makas com a minha mãe, eu como filha tinha que ter o carnaval como paixão. E nem tudo foi fácil. Olha que ser presidente de clubes, associações ou agremiações deste género... por vezes tens de tirar do próprio bolso para que a coisa ande. Tinha situações em casa, confusão entre pai e mãe, era um caso, talvez isso me tenha despertado. Por outro lado, a minha mãe tinha frases bem feitas, era poética na forma de falar, com ela aprendi Kimbundu. Isso ajudou-me muito na composição e eu hoje falo Kimbundu que muita gente ouve e não percebe. É como no português. Existem palavras mais usuais e outras que não são faladas todos os dias e são mais profundas. O meu vocabulário do Kimbundu... gosto de palavras que quase não se usam, porque às vezes uma tem muitos significados e formas diferentes de dizer uma determinada coisa. Tudo isso porque eu faço questão, quando escrevo, de pensar na poética,  na beleza e na estética da letra, por isso coloco o Kimbundu que a gente não fala todos os dias e, às vezes, mesmo quem percebe fica à margem. Aprendi muito sobre a arrumação do Kimbundu e o modo de colocar as palavras com a minha falecida mãe. Foi uma grande fonte nas minhas composições.

 

E o canto?

A arte está-me no sangue. Costumo dizer que é algo divino, nasci já com este bichinho. O meu pai virou-se para o carnaval e gostava de cantar. Ele era empregado de balcão no tempo colonial e, quando havia pouco movimento na loja, ele cantava. Tudo influenciou na minha forma de compor, quer no carnaval, quer noutros contextos. E isto está reflectido em muitas das minhas obras.

 

Outras obras...

Muita gente não sabe, mas eu tenho composições gospel, a considerada música cristã. Prova disso é que tenho um conjunto de músicas para serem gravadas no momento certo. Penso que não se devem misturar as coisas. Uma é o mundano, como se diz, e outra é o divino, de Deus. Por exemplo, no primeiro disco do Célsio Mambo há uma composição de minha autoria. Então, quer dizer que temos capacidade de fazer canções de acordo com o nosso estado de espírito, da kizomba ao semba, do bolero à rumba, e estamos aí, na graça do Senhor.

 

Quando foi que a jovem da Ilha começou a ter contacto com o mundo fora deste ambiente?

Eu entro na música, fora do contexto ilhéu, em 1992, quando o Galiano Neto, meu primo e amigo, me convidou para ir aos Congas, porque ele sabia que eu tinha um arsenal de música. Foi nessa altura que comecei a olhar para a música com muita seriedade e com o gostinho de querer aparecer mais. Mas comecei a compor entre 1989 e 1990.  Os Congas era um grupo da ex-EPAN, ligado à animação na empresa. Éramos vocalistas. Infelizmente não caminhou muito. Devido à situação do conflito pós-eleitoral, o Galiano vai para Portugal a convite do Bonga. Ele vinha dos Merengues, um grupo muito  bem referenciado. Nos Congas era limitado e com pouca expressão, ele não cantava as músicas dele e coisas novas. Sentiu que estava a perder alguma coisa e preferiu emigrar.

 

E com a saída de Galiano como ficou a Tonicha Miranda?

Quando Galiano se foi embora senti-me  musicalmente órfã, porque ele era como um irmão mais velho e um conselheiro no meio artístico. Depois tive de dar a cara e comecei a participar em concursos como compositora. No Festival da Canção da LAC, onde fui tentar, participei três vezes. Em 2006, com o Célsio Mambo como intérprete, vencemos o Festival. E depois, em 2009, tive a melhor letra do concurso. Também participei no Prémio Cidade de Luanda: em 2002 tive o terceiro lugar e em 2004 venci o concurso. Foi assim que foi surgindo o meu nome e me sentindo consagrada. Quando comecei a ir para estes concursos, já tinha uma certa idade e encontrava jovens como o Damásio, Kizua Gourgel, Sandra Cordeiro, Maragareth do Rosãrio, Kueno Aionda, Alfredo Hossi, Emanuel Mendes, Selda, Konde Martins, Helga Fety, Kanda... muitos são os jovens com quem tive o prazer de privar nestas minhas andanças iniciais na música.


Neste momento como está a sua carreira?

Actualmente, tenho sido convidada para estar em muitos espectáculos, com quase todo o pessoal. E muita gente conhece-me bem, desde músicos antigos aos mais novos. Infelizmente, não temos banda própria e nem somos solicitadas como cantora. Mas como compositora, estamos aqui.

Honestamente falando, tenho mais prazer em escrever do que cantar. Sou amiga da escrita e maluca pelo Kimbundu, tenho tanto amor pelo Kimbundu que vocês não fazem ideia. Pesquiso, tenho livros, dicionários e tiro dúvidas com pessoas de outras regiões, porque existem variantes.

 

Tem algum critério para a cedência de músicas?

Varia muito. Por exemplo, o Kueno Aionda encontrou as músicas já feitas, ouviu e gostou. O Célsio Mambo foi a mesma coisa com a música para o Festival da Canção e para o disco gospel. O Carlos Burity... fomos convidados para um programa na Rádio UNIA e quando falaram da música do Kueno ele interessou-se e pediu-ma. Disse que tinha uma feita para ele, mas não acreditou. O DJ Mania fez as bases e ele gostou. Depois pediu-me mais três, porque ele disse que apreciou a minha linha de composição, mas, infelizmente, não fomos a tempo. A Banda Maravilha também solicitou e ficaram com três composições para o seu próximo disco.

 

E quanto à temática?

Depende. Às vezes já tenho algo escrito, também acontece alguém apresentar algum tema, mas, como não escrevo só para mim, costumo dizer que há canções que escrevi e que nunca vou cantar, prefiro passar para outras pessoas que se identificam com elas. Eu não tenho problemas em conseguir identificar artistas que eu oiço cantar, e, quando pedem uma música, eu sei qual a linha e, de princípio, ele vai gostar daquilo que fizer.

 

De todos os intérpretes quem o marcou mais?

Kueno Aionda. Ele pediu uma música na fase dos concursos da LAC, penso que em 2007, e depois gravou em 2012 para o seu disco. Ele era muito jovem e isto marcou-me, porque tem uma interpretação com alma, ele absorveu o que expliquei na tradução.

 

Quanto a projectos discográficos?

Tenho um álbum a solo, "No Feminino”, e a participação no disco "Geração do Semba II”, que tinha como ideia cruzar artistas de épocas diferentes. A primeira foi com a tia Dina Santos e a Armanda Cunha. Participei com o Calabeto e a Malú. No nosso caso foram três gerações.

 

Porquê "No Feminino”?    

São assuntos de mulheres, cantados por mulheres. Nós sabemos melhor das nossas coisas e os homens das deles. Neste álbum, apresentamos temáticas como maternidade, divórcio, poligamia, ciúmes e outros assuntos vividos por mulheres. Por isso eu chamei outras artistas. No disco apenas canto quatro,as outras seis dei para outras interpretarem. Foi pena não ter banda no feminino, porque se tivesse metia as senhoras a tocar no disco.

 

Luanda também a encanta e tem elaborado um projecto discográfico...

Sim. Havia o concurso Cidade de Luanda, a 25 de Janeiro, e na minha primeira participação fiquei em terceiro lugar. E depois regressei para conquistar o primeiro lugar, porque gosto de voltar para tirar as dúvidas e não deixar os meus créditos em mãos alheias. Assim ficou o bichinho da cidade e voltámos a escrever com a intenção de concorrer, mas fui aconselhada a não participar. Também não é de bom tom. Vamos dizer que depois perdes e baixas a cotação... então é melhor ficar no top, mas fui escrevendo para Luanda. Consegui criar mais músicas sobre a cidade, a Ilha em si, porque a cidade começou aqui e, portanto, tenho um projecto definido, "Ilha do Cabo, meu pedaço de Luanda”, em Kimbundu "Nzanga kaxima caxi Caluanda”. Está uma miscelânea de assuntos característicos da Ilha e da cidade de Luanda em si, com dezassete temas. Vamos tentar fazer uma obra direccionada, porque muito património localizado na cidade foi desfeito e vão encontrar nestes temas um pedaço desta Luanda e da Ilha onde muitas coisas  desapareceram. Então, com este disco e livro, pretendo fazer algo diferente, mais esclarecedor e apetecível para despertar o interesse daqueles que não conheceram bem Luanda ou que já se esqueceram de muita coisa da capital.

 

É um dos muitos projectos seus em carteira?

Exactamente. Este já está definido e outros temas estão aí. E como digo, nem tudo que escrevo é para eu cantar. Há coisas que tenho de ir rebuscar e que, interpretadas por mim, me vão identificar como compositora e cantora. Destas não abro mão. São projectos que dariam para quatro discos.

"No Feminino” foi lançado em 2012. O que está a preparar?

Este disco foi um patrocínio da Fundação Arte e Cultura e de outras instituições e, honestamente, a intenção era vender "No Feminino” e depois virar-me para o projecto gospel.  O produtor recebeu todo o dinheiro, um patrocínio que me foi dado para fazer o trabalho, claro que não deixou de fazer a obra, mas não apresentou facturas. E a maior tranche era para a publicidade. Infelizmente ele não fez este trabalho e quando fui ao Largo da Independência simplesmente estive abandonada. Vendi muito pouco e depois ele fez o favor de me entregar os discos. Simplesmente ele esqueceu-se que no disco está que ele é o distribuidor nesta imensa Angola e, quiçá, fora do país. Como não fez este trabalho, fiquei de mãos atadas. Tenho cartas e provas disto, antes nunca falei disso, mas estou a aproveitar falar porque ele deve estar a pensar que eu sou burra e não percebi a jogada. Aprendi uma dura lição, porque não estou a falar de dez mil kwanzas, mas de quarenta e tal mil dólares.

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