Sociedade

A força inspiradora de uma jovem resiliente

Rui Ramos

Jornalista

Juliana Júlio Candomba é filha de Castanheiro Francisco Candomba e de Judith Júlio. Nasceu em Porto Amboim, província do Cuanza-Sul.

24/03/2024  Última atualização 11H09
Juliana Júlio Candomba © Fotografia por: DR
"Sou a quinta de sete irmãos. Vivo no município de Talatona, desde a minha infância”, apresenta-se.

Juliana é carinhosamente tratada por Ju, Tucha, Doutora e agora, também, por "Motivadora do povo”, pelas pessoas que acompanham o seu trabalho."Sempre me dediquei aos estudos, não tinha como não me dedicar, porque o meu pai dizia para nós que a arma do pobre é a educação, propriamente a formação”, recorda.

"Os meus estudos primários foram na escola da Estenda, actual escola primária e secundária 2009. Chamavam "Estenda”, porque estava localizada num bairro onde recebia  refugiados e eles eram alojados em tendas, foi um período muito feliz, apesar das dificuldades, recebíamos merenda escolar, leite com pão no intervalo e às vezes papa de soja, isso tirava os nossos semblantes tristes, devido às condições da escola, na época não havia carteiras e nos sentávamos nas latas, blocos ou até mesmo no chão, dependia da hora em que cada um chegava para ocupar uma lata ou bloco”.

Os alunos, prossegue, estudavam com medo, devido à história do caixão vazio, aprendi a ler com palmatória, não era necessidade era mesmo obrigação e quem errasse ao soletrar apanhava. Já apanhei algumas vezes, não só por não conseguir soletrar, mas, também, por ser uma criança apegada à brincadeira, saía ao intervalo e não voltava a entrar, isto em 2003 e 2004.

"Na terceira classe, em 2005, os pais já haviam comprado uma cadeira de plástico para levar à escola, aí já estávamos a praticar o ditado e o meu empenho começou a melhorar consideravelmente, desde então, e o interesse pelos estudos também”.

No ano seguinte, foram transferidos para outra escola, porque aquela em que andavam entraria em obras e foram para a escola nova. "Era mesmo nova, fomos os primeiros alunos em 2006, fiz a 4ª, 5ª, 6ª, 7ª e a 8ª classes, foram anos de muitas dificuldades, porque a minha mãe trabalhava na cidade, saía muito cedo e nos deixava sozinhos com um pouco de alimentação, se tivesse, e se não tivesse comíamos um pão de manhã até ela chegar ou o meu pai passar em casa para nos ver, pois tinha duas relações”.

Comida hoje é bata

Foi um período muito turbulento, recorda com tristeza, "de muita fome e sede, lembro-me de que ao anoitecer, quando nos encontrávamos todos, ríamos como se o dia não tivesse sido difícil. Quando não conseguíamos nada, o jantar era arroz branco e escrevíamos num papel branco na porta "hoje é bata”, com o sorriso estampado no rosto e na esperança de que amanhã seria melhor”.

Em 2008, ela já dava os primeiros passos para ajudar nas despesas de casa. "Trançava o cabelo e o dinheiro ajudava na compra do jantar ou almoço, dependia da hora a que eu terminasse, de modo a ajudar a minha mãe guerreira, a minha mãe Judith, e daí não mais parei”.

Em 2010, teve de ir viver no Rangel com a sua tia Maria, a filha Yolanda e o filho Abmael. "Foram três anos de muita aprendizagem, aprendi a ver o outro lado da vida, fora do colo da minha mãe, fiz a nona classe na escola Ekuiki II, vivi momentos bons naquela escola sem grandes turbulências”.

O ensino médio, entre 2012 e 2014, foi um dos maiores desafios, "a ficha caiu ao saber de antemão que não faria o curso dos meus sonhos, Comunicação. Foi aí na caminhada que aprendi a ter mais de uma opção, não é o que queres, é o que podes conseguir”.

Completa o PUNIV e em meados de 2013 volta para o Benfica, porque havia intolerância religiosa na casa onde vivia, ela era de uma igreja e os outros eram de outra, decide então voltar ao seu leito e contrariar o facto de dizerem que não seria nada e só teria filhos atrás de filhos. "Terminei o ensino médio em 2014, com uma saúde instável. Era no antigo PUNIV central de Luanda, Ingombota, e eu vivia no Benfica”. Depois disso, fica dois anos em casa por falta de apoio financeiro para continuar os estudos. "Ninguém estava interessado se me formasse ou não, excepto a minha mãe, com quem partilhava tudo. Foram dois anos de muita tristeza, testei e não passei, mas desistir, nunca!”.

Numa noite, senta-se com a mãe e diz: "Mãe, vou estudar de noite - mas tu não estás a trabalhar e esse biscato que fazes de trança não chega, dizia ela. Vou trabalhar e estudar, mãe, em casa também não vou ficar. Ajuda-me nos primeiros meses, o resto eu vou pagar e até lá vou trabalhar”. Juliana testa pela terceira vez na Universidade Agostinho Neto (UAN) e é aprovada , a mãe cumpriu com o combinado e ela encontra um trabalho num salão de beleza. "Eu fazia o trabalho todo e no fim do mês a divisão era 50 por cento. No ano a seguir, em 2018, consegui um emprego numa empresa de segurança, onde concorríamos para a vaga de supervisora-chefe para ganhar 38 mil kwanzas, ganhei a vaga com a nota mais alta nos testes e com este salário, eu tinha garantia de continuar os estudos”, recorda.

"Depois de três anos, fui obrigada a abandonar, mas não desisti, tive a ajuda da minha irmã Yola para continuar a estudar e terminei o curso no ano de 2022, defendendo a minha licenciatura em 15 de Junho de 2023, o dia em que as correntes se quebraram, fui participando de "workshops”, conferências e palestras. Fiz vários cursos ligados à área de Psicologia, de modo a aumentar o leque de conhecimento”, prossegue.

"Passei a dar palestras ligadas à orientação vocacional e profissional. Hoje, depois da minha formação, dou continuidade a coisas que despertam, elevam e inspiram jovens sem esperança e tornei-me, sem perceber, resiliente. Não sabia que era capaz, até me permitir tentar, o meu objectivo é ajudar jovens que tenham dificuldade na escolha do curso, no seu posicionamento pessoal e profissional”.

Sandália com cola do pau de manga

Houve momentos em que Juliana Júlio Candomba pensou em desistir de tudo devido à falta de condições. "Até mesmo um chinelo para ir à escola não tinha, para não faltar, cheguei a colar uma sandália com a cola do pau de manga, já fui, também, com o chinelo ao meio e no intervalo pegava e escondia, para não me estigarem”.

Desde muito cedo, aprendi que  temos de ir atrás das coisas. "Os desafios só foram aumentando, bem como a dificuldade de fazer o curso dos sonhos no ensino médio (Comunicação Social), por razões alheias, não consegui, mas não desisti, fiz o PUNIV, curso de Ciências Económicas e Jurídicas. Eu não tinha noção alguma do que se tratava  neste curso e não tinha a quem perguntar, pois era a única no ensino médio em minha casa, graças a Deus consegui adaptar-me e me acomodar dando o meu melhor”.

Juliana Júlio Candomba dizia para si: "Em casa também não podes ficar, vai dar certo na Universidade”. "Aprendi a fazer as coisas de acordo com a minha realidade, aceitar tal como ela é e trabalhar para dar sentido à minha vida e honrar os meus pais, limpar o nosso nome diante das famílias quando diziam "aí não vai sair ninguém formado”.

A jovem estudou sempre em escolas públicas e não tinha condições para pagar uma privada. "Insisti, pela terceira vez, na Universidade Agostinho Neto (UAN), e passei finalmente, eu acreditei e tenho dito que "um jovem sem desafios é um jovem morto”. Foi o curso que eu quis fazer? Claro que não, mas estava em condições de negociar com o meu futuro e dediquei-me”, diz com entusiasmo.

"Hoje, sou licenciada em Psicologia Escolar, sou orientadora vocacional  e  profissional, procuro por jovens que queiram ganhar um posicionamento na sociedade, apesar das várias quedas da vida, e, também, promovo o desenvolvimento pessoal e profissional do jovem promissor, isto no meu projecto psicossocial "Mentes que constroem mentes”.”

Juliana é também comentadora de rádio e tv e moderadora. "Aprendi que temos de saber utilizar as ferramentas que estão ao nosso alcance, para alcançarmos as que estiverem distantes. Chamam-me "motivadora do povo”, hoje, ontem, era alguém sem futuro, alguém que sempre teve Jesus como o seu maior incentivador”.

A minha família, acrescenta, é o meu elo fraco e forte ao mesmo tempo, nela, encontro colo, verdade e amor. "Hoje, faço aconselhamento, motivo jovens sem esperança, jovens que já tentaram matar-se. Para mim, a transformação mental é o primeiro passo, se o cérebro não estiver a seu favor, você já era. Procuro com os "workshops”, que o projecto organiza, salvar pela fala, se não for para isso, que eu me cale”.

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