Reportagem

A injecção de um cesto

Em cinco anos de prática desportiva, a basquetebolista conserva muitos momentos de alegria e de tristeza. O percurso curto tornou-a numa pessoa mais madura e conselheira. A experiência maternal herdou de uma família humilde de Benguela, terra que a viu nascer em 1994. Feliz.

18/08/2023  Última atualização 07H30
Valentina Tchocombala Tchiteculo, campeã nacional e melhor cestinha de basquetebol em cadeira de rodas © Fotografia por: DR
De repente, os olhos enchem-se de lágrimas. Uma lembrança. Em voz rouca, solta uma revelação: "Eu nasci bem. Andava e corria à vontade.

Perdi as forças nas perdas, aos 5 anos de idade”.

O infausto acontecimento ocorreu numa das unidades hospitalares, quando a mãe Cecília Lázaro a levou para completar a dose de vacinação. Uma enfermeira deu-lhe uma injecção contra poliomielite na nádega direita. Desde então, a vida de Valentina conheceu situações reversíveis. A deformação apossou-se da perna direita e estendeu-se a outra. Os membros inferiores ganharam deficiências. A inactividade passou a constar da agenda diária.

A adaptação ao novo cenário custou-lhe sacrifícios. Crescer na comunidade de Dokota, zona periférica de Benguela, cheia de pessoas com educação diferentes, foi um delírio. Valentina recorda: "Sofri insultos durante muito tempo”.

Cansada da zombaria das pessoas, aos 24 anos, decide praticar o desporto. Era o prenúncio da libertação da alma cativa. Os choros guardados encontraram o escape de salvação. Mais um desafio estava à vista: convencer os incrédulos.

Lidar com a descriminação, durante a infância, adolescência e juventude foi difícil. Ouvir sempre nas ruas a expressão "Olha! A aleijada está a passar” feria o coração. O momento era outro. Firme na decisão pessoal, desistir não faz parte do dicionário pessoal.

"Muitos duvidaram de mim, quando decidi jogar o basquetebol. As pessoas questionavam-me sobre os movimentos exigidos no campo:  como vais jogar se és pessoa com deficiência? Alguns diziam que o pé não conseguiria pisar no chão e outros, não pegaria a bola. Era a ignorância deles”, recordou.

A decisão de integrar a equipa feminina de basquetebol em cadeiras de rodas foi a mais acertada na vida. Valentina opta pelo treinamento desportivo para se divertir. Com o tempo, um bichinho cresceu no íntimo. Ela descreve a sensação: "Encontrei outras pessoas com deficiência, libertei-me e ganhei auto-estima”.

O primeiro contacto com a bola foi "difícil”. Depois do treino, reflectiu e conversou consigo mesmo. "Não me aceitava, olhava para mim mesma e dizia que não seria capaz de fazer aquilo e aqueloutro. Agora  que tenho a oportunidade, vou desperdiçar? Não”, recorda a motivação.

Movida pelo espírito de vencer, Valentina contou com apoios das colegas que "tiveram toda a paciência” de lhe ensinar as técnicas de batimento da bola e andar com a cadeira de rodas.

"O tempo é a minha melhor escolha. A cada dia, aprendo mais e dedico-me a ajudar a minha equipa a conquistar vitórias”, teceu com orgulho.

Aos detractores, só restou o silêncio: "As pessoas, que me julgaram não ser capaz de fazer alguma coisa dentro do campo e desacreditaram o meu talento, renderam-se, quando me viram a jogar. Graças a Deus, consegui mover-me e ainda quero mais”.

Fruto de muito trabalho e dedicação, Valentina foi escolhida para ser a capitã do Misto de Benguela. O treinador João Magalhães não teve dúvidas na hora de a escolher para assumir o importante cargo. A decisão do "coach” deixou-a bastante orgulhosa.

"Ser capitã é uma grande responsabilidade. Não é fácil ser escolhida para liderar as colegas. Dou muita força ao grupo para continuar focado nos objectivos. Às vezes, é difícil encarar um balneário com moral baixo, mas faço questão de as motivar”, explicou.

Com abnegação, o Misto de Benguela sagrou-se campeão nacional de 2022.

O feito foi celebrado por toda a cidade. Para Valentina, é muito mais que um prémio: "Fui a Melhor Cestinha da competição, motivo de muita alegria para mim”.

"Deus abençoou-me. Senti que todo o meu esforço estava a valer a pena”, considerou, antes de passar a borracha a um passado triste.

"Antes, me limitava e chorava muito, ficava em casa e questionava-me o porquê de ser pessoa com deficiência. Hoje, tenho uma mente mais aberta e não posso reclamar de nada. Vejo pessoas com problemas maiores e questiono como conseguem pegar a bola”, frisou.

DISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS
"Queremos acabar  com o preconceito”

A conquista do título nacional transcende o lado pessoal. Valentina Tchocombala Tchiteculo explica: "É uma honra, porque trabalhei para isso. Somos mulheres com deficiência, mas queremos acabar com esse preconceito no país. Somos capazes de fazer quase tudo. A deficiência não nos impede de dar o nosso máximo. Almejo estar distante e fazer sucesso”.

Erguer a bandeira de Angola nas competições internacionais consta dos planos pessoais. A capitã socorre-se da experiência de outros campeões mundiais.

"Não desistirei do desporto. Peço para não duvidar das pessoas com deficiências. Por exemplo, a Selecção Nacional de Futebol para amputados conquistou um título Mundial, um título africano e ostenta o título de vice-campeão mundial. Então, não duvidem da nossa capacidade física. A deficiência é mental e nunca nos impediu de brilhar”, aclarou.

SACRIFÍCIO
Deslocação para o treino é um grande martírio

O desejo de erguer a bandeira de Angola de um mastro de uma competição mundial tem um preço elevado na vida de Valentina Tchiteculo. O sorriso no rosto esconde o "mar de rosas”. Os picos em cada ramo estão presentes.

A capitã do Misto de Benguela enfrenta dissabores todos os dias. A deslocação de casa para treinos é um inferno. Do bairro 11, localizado a Oeste da cidade de Benguela, até ao pavilhão Matrindindi, tem uma distância de aproximadamente quatro quilómetros. A presença contínua é beliscada.

A falta de emprego condiciona a deslocação nos transportes públicos e privados. Os altos custos nos autocarros e candongueiros começam a emperrar o sonho. O Misto de Benguela vive de caridade do Comité Paralímpico Angolano e não tem fundos para ajudar às atletas.

Aos 29 anos, Valentina diz sentir-se "fardo” de si mesma por não dispor de condições pessoais. "Não temos meios e apoios para ir aos treinos. As nossas famílias estão desprovidas de dinheiro e, do pouco que têm, não nos apoiam por falta de retorno. Sempre que as peço, respondem-me para procurar emprego”, diz com uma dor.

A família de Valentina tem uma perspectiva diferenciada do desporto: "É só para homens e são mais valorizados”. A persistência das mulheres resulta "do amor à camisola”. "Não nos dão nada. Estamos lá, porque gostamos de jogar”, rematou.

O desprezo diário fortalece o desejo de trabalhar. Em cada porta aberta, há um senão estampado à entrada: só para pessoas sem deficiência.

A basquetebolista deixa um apelo aos empresários: "Muita gente acha que as pessoas com deficiência não podem trabalhar. Alegam que daremos muito trabalho ou não faremos bem as coisas. Somos pessoas normais. A nossa deficiência nunca foi barreira para alcançar os nossos sonhos”.

Da cartola, solta uma experiência pessoal: "Fui a uma loja, onde precisava de funcionários. Quando o dono me viu, disse não haver mais vagas. Diante do anúncio de preenchimento, a resposta doeu-me”.

A todos outros empresários revestidos de compaixão, Valentina deixa um recado: "Dêem-nos as oportunidades de exibir as nossas competências. Acreditem no nosso potencial”.

CAPITÃ
Motivadora  do Misto

 O futuro do basquetebol em cadeira de rodas pode ter dias contados em Benguela. As dificuldades financeiras, a falta de materiais desportivos e o desemprego das atletas condicionam a prática. Ante as dificuldades, a capitã do Misto de Benguela socorre-se da posição para motivar as colegas desistentes.

"O estado de basquetebol (em cadeira de rodas) não é dos melhores nos dias correntes. Temos dificuldades de transporte e muitas meninas desistem da prática desportiva. Então, me sinto obrigada a motivá-las a permanecer”, revelou.

A estratégia de motivação assenta-se na esperança de "dias melhores”.

Valentina revela: "Digo-lhes que amanhã haverá benefícios. Não estamos a gastar o nosso dinheiro em vão. É um investimento. Deus tem um propósito em nossas vidas”.

A falta de 100 kwanzas no bolso para transporte leva algumas atletas "a arrastar-se de casa até ao campo”. A deslocação permanente tem consequências na saúde, segundo a capitã: "Muitas queixam-se de problemas no joelho”.

Quando se tem força de vontade, não existem limites. Valentina fundamenta o conselho às colegas: "Nunca permitem que alguém vos diga 'não sóis capazes'. A vida não termina por causa de uma deficiência.

Levantem a cabeça e lutem pelos vossos objectivos. Sei que as dificuldades para as pessoas cadeirantes são enormes, mas não podemos desistir de nada. Continuaremos a bater à mesma tecla para que haja valorização. Vamos atrás dos nossos sonhos e lamentar menos. A deficiência não pode impedir-nos”.

PROJECÇÃO
Atleta  defende mais publicidade no país

A falta de publicidade e de marketing de basquetebol em cadeiras de rodas contribui para o sedentarismo de muitas pessoas com deficiência em todo o país. Valentina Tchiteculo defende mais divulgação da modalidade para reduzir o sofrimento dessas pessoas.

"Há muita gente em casa com deficiência e não sabem da existência do basquetebol em cadeira de rodas. Se houver mais divulgação, com certeza, mais pessoas se juntarão. Queremos expandir a prática, mas, para isso, precisamos de apoios das entidades que regem a modalidade”, solicitou.

JOÃO MAGALHÃES
"É uma boa líder”

João Magalhães, treinador do Misto de Benguela, tem boas referências da capitã da equipa dentro e fora do campo. As qualidades cognitivas da atleta atraíram-no para a escolha de liderança do balneário.

"Valentina é uma boa líder. Gosto da postura dela. Não falta respeito às adversárias nem aos árbitros. Por este motivo, foi escolhida como capitã”, esclareceu.

Outras qualidades da basquetebolista encantaram o responsável da equipa técnica: "Tem vontade de crescer e aprender; é muita dedicada e forçada nos exercícios. Sinto que ela tem objectivos bem definidos na vida”.

Magalhães suspeita do evento mais próximo: "Está a trabalhar para constar da primeira selecção nacional a ser convocada em 2025”.

As queixas das atletas sobre o transporte mereceu o comentário do treinador. Varanda, como é conhecido no seio desportivo, lamentou: "Há pessoas que não aceitam os portadores de deficiência. Por mais que o mundo tente fingir, é uma verdade incontestável. Temos dificuldades com o transporte. Em Benguela, é mais fácil apanhar uma mota

"Caleluia”. Os motoristas não param com os táxis e passam-nos. Só nos resta aceitar. A sociedade está assim. Se o governo ou as autoridades de direito não fizerem nada por nós, as coisas só vão piorar”.

Além de transporte, o treinador queixou-se da falta de materiais desportivos, apoio social e lanches para as atletas durante os treinos.


VAIDADE

A modelo

  Convidada na semana passada para desfilar num evento de moda,Valentina arrancou aplausos dos presentes por se mostrar bastante feliz. O calor contagiante da sala já mexe com os neurónios.

"Gostei tanto de desfilar e pretendo entrar no mundo da moda. É bom, quando as pessoas nos dão a liberdade de mostrar o nosso potencial.

Senti-me bem e com auto-estima elevada. Fui bastante elogiada e aplaudida”, conferiu.

Valentina é uma mulher "muito” vaidosa. E explica: "Não saio de casa sem passar um batom ou label nos lábios. Procuro passar uma boa imagem às pessoas. Os pensamentos negativos atraem coisas negativas. Sou alegre e não deixo que ninguém apague o meu brilho. Estou sempre linda e mostro ao mundo que a deficiência não é o fim”.


MARLENE MARTEL

Amiga revela companheirismo

Amiga e colega de quadra, Marlene Martel descreve a pessoa de Valentina como alegre, companheira, respeitadora, dedicada e inspiradora. Há quatro anos a trilhar as peugadas do basquetebol, conserva referências positivas.

"Consegue trabalhar em equipa com facilidade e preocupa-se com o bem-estar das colegas. Fora das quadras, mantém o mesmo espírito. Tem uma facilidade enorme de lidar e interagir com as pessoas”, citou.

A companheira de "route” refere que a capitã é uma motivadora de excelência: "Sempre diz-nos que devemos esquecer a nossa deficiência e somos capazes de alcançar o desejado. Independentemente dos obstáculos ou das circunstâncias em que estivermos a passar, devemos continuar com a mesma motivação”.

Do baú de lembranças, tirou um instante único: "Vivemos momentos especiais, principalmente, quando ela recebeu o prémio de Melhor  Cestinha do Campeonato Nacional, vencido por nós”.

A gratidão de a ter como amiga é abençoada: "Creio que teremos mais tempos juntas. Por este motivo, desejo-lhe forças e todo o sucesso.

Que continue a puxar-nos por nós todas as vezes que estivermos com moral baixo”.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Reportagem