Sociedade

A mulher que “dá luz” todos os dias

Domingos Mucuta | Lubango

Jornalista

Quando Maria Pilone Sipopi, 59 anos de idade, começou, em 1988, a trabalhar no Sector de Energia, algumas pessoas debochavam do atrevimento dela. Entretanto, com determinação e foco Pilone, como é tratada carinhosamente pelos amigos e colegas, impôs-se como a primeira electricista no meio do grupo de trabalhadores da antiga Empresa Nacional de Eletricidade (ENE), na altura constituído apenas por homens.

24/03/2024  Última atualização 09H20
Maria Pilone Sipopi © Fotografia por: Domingos Mucuta | Edições Novembro
Hoje, ela analisa a trajectória de quase 35 anos de serviço como um percurso marcado por altos e baixos próprios de uma caminhada profissional, cujas oportunidades e circunstâncias permitiram-lhe aprender, ensinar e, sobretudo, participar na missão de iluminar os lares de muitas famílias da região Sul de Angola (Huíla, Namibe, Cunene e Cuando Cubango).

À porta da reforma, Maria Pilone Sipopi está inserida, actualmente, na área administrativa da empresa Rede Nacional de Eletricidade (RNT) no Lubango, uma das sucursais públicas resultantes da extinção da ENE, a par da ENDE (distribuição e comercialização) e PRODEL (vocacionada à produção).

Ela sente-se realizada por desempenhar com zelo o papel social e por contribuir para o desenvolvimento do sector energético em Angola. As distinções e o reconhecimento como mulher de mérito, atribuído pela instituição, deixa-lhe à vontade para afirmar com as devidas aspas que "a missão está cumprida”.

"Sempre sonhei em trabalhar como eletricista, uma profissão que antigamente era considerada como exclusiva para homens”, afirma à nossa reportagem a Senhora, que mantém o desejo ardente de participar, ou no mínimo a assistir à concretização do projecto de interligação da linha de alta tensão da barragem do Gove ao Lubango.

Questionada sobre a razão do receio de não participar ou assistir nesse feito, ela responde que "acredito em assistir. Mas participar já não, porque daqui a pouco vou à reforma”.

Maria Sipopi considera ter vivido "momentos bons e maus”, como em todas as profissões. Ela prefere lembrar-se mais dos melhores momentos que dos maus, pelas experiências e conhecimentos teóricos e práticos obtidos e partilhados com outros profissionais do sector.

Conta que ingressou nos quadros da ENDE na área de manutenção de subestações eléctricas. A técnica passou também pelas áreas de laboratório,  onde analisava a consistência dos contadores para aferir a qualidade dos mesmos antes de serem instalados nas residências dos clientes.

Mais tarde, foi enquadrada na área comercial, mais concretamente na área dos cortes e montagem de contadores de baixa e média tensão, antes de ser colocada na sala de comando como operadora, onde chegou a chefe de secção de subestação eléctrica.

"Era operadora e ao mesmo tempo exercia os trabalhos de estatística. Os dados sobre a quantidade de energia recebida e distribuída, enviados para Luanda, eram processados por mim”, regozija-se.

Profissão exigente

Sublinha que todas as profissões são difíceis. Pilone refere que a profissão de eletricista exige muita cautela. "Porque quando uma manobra é mal feita pode prejudicar os equipamentos, queimar o operador ou matar um outro colega que esteja no terreno”, disse.

Relata experiências dramáticas em várias missões, como por exemplo, quando numa operação de rotina, num dos bairros, o posto de transformação explodiu, devido a um erro de um colega por manobra mal feita. A explosão causou susto a todos os membros da equipa.

"Neste dia, um dos colegas, ao invés de verificar bem o problema, antes da manobra, ele abriu o seccionador em carga. Foi uma explosão tal que queimou os três fusíveis de média tensão. A porta fechou. Ficámos trancados durante 15 minutos. Todas as pessoas que assistiram ao episódio de fora pensaram que tivéssemos morrido. Felizmente, todos saímos ilesos, apenas sujos com a fumaça preta provocada pela explosão”, recorda.

Relata outra situação quando faltava energia alterna na sala de comando. "Houve uma explosão que me queimou as sobrancelhas e o cabelo. É muito delicado lidar com energia. Trabalhar com eletricidade exige precaução. É necessário concentração e calma para evitar danos maiores porque, por vezes, há colegas no terreno. Todo cuidado é pouco”, afirma, sublinhando a importância da comunicação.

A senhora, considerada como "tendo muitos electrões no corpo” declara que gosta do que faz, por isso se renascesse numa outra encarnação, seria electricista. "Quando subia nos postos, até os miúdos já me conheciam como mulher energia. Gosto disso”, declara.

O corte e o julgamento

Maria Sipopi teve que enfrentar um julgamento por cortar luz na casa de um juiz. Ela foi parar às barras do tribunal quando, numa campanha de fiscalização da empresa, cortou os fios que levavam energia para a residência de um juiz, por falta de apresentação de recibo.

Ela relata que o "crime” dela foi cometido numa zona, algures no bairro 14 de abril, vulgo Benfica. Maria Sipopi abordou duas casas, para solicitar o recibo de pagamento de energia, mas as pessoas presentes afirmaram que eram casas de um juiz. Na primeira e segunda considerou a informação, por isso passou para a terceira na mesma fila e quarteirão.

"Quando na terceira casa me disseram que era casa também do juiz por isso não podiam apresentar os comprovativos, decidi cortar, porque já tinha relevado as duas anteriores. Para meu azar, esta era de facto de um juiz. No dia seguinte, o meu chefe directo entregou-me uma notificação para ir ao Tribunal responder”, conta.

A senhora, de estatura média, tentou saber mais detalhes ao superior hierárquico, que a lembrou sobre um possível corte de energia feito num dos bairros, no dia anterior.

"Fui parar à sala de audiências para julgamento sumário. Quando o juiz me viu, perguntou o que eu fazia naquela sala. Respondi que estou aqui para responder a uma notificação. O juiz olhou para o processo e perguntou se era ela que havia cortado a energia na sua casa, assim como quem duvidasse”, lembra.

Ao perceber que se tratava daquele bairro, Maria Sipopi confirmou a "acusação” de ter trabalhado naquele bairro e de ser responsável por subir aos postes, para cumprir o dever emanado pela chefia, para cortar a luz nas residências sem recibos de pagamento.

"Quando confirmei isto, o juiz riu-se e me disse de boca cheia que não acreditava, porque até onde sabia, ‘as mulheres só davam à luz depois de nove meses’”, contou em gargalhadas.

A senhora explica que, até hoje, ficou sem entender se foi absolvida por ser mulher ou por explicar sem medo os detalhes de como os moradores das duas casas vizinhas tinham aproveitado a vizinhança para assumir o lugar de familiares do juiz.

"Contei que pedi facturas na primeira casa e me disseram que era residência do juiz. Passei. A segunda a mesma coisa. Mas na terceira, não podia passar. Tive que cortar mesmo por causa disso. Infelizmente, era verdade”, referiu, acrescentando que o juiz percebeu e pediu apenas a religação da energia.

A técnica da RNT aproveita a liberdade para ironizar que uma eletricista que se preze "não espera nove meses para dar luz”.

"Eu sou uma das poucas mulheres que ao longo da vida dou à luz todos os dias e durante nove meses”, gaba-se a profissional e mãe de quatro filhos.

Maria Pilone Sipopi, natural do Lubango, na província da Huíla, aconselha as mulheres a optarem pela profissão de electricista por ser linda e gratificante. "As jovens devem abraçar esta profissão. É linda e nobre, apesar de perigosa. Ninguém deve ter medo dos riscos. Fui a única mulher no meio de 70 homens. Devemos também demonstrar que somos capazes de trabalhar e exercer qualquer profissão com entrega e determinação”, exortou.

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