Opinião

A tragédia de Gaza ou crónica de um crime anunciado

João Melo*

Jornalista e Escritor

A poucos dias de se completarem cinco meses desde o ataque do Hamas a Israel, em “resposta” ao qual e em nome da “auto-defesa”, o referido país desencadeou uma matança e destruição inimagináveis na faixa de Gaza.

28/02/2024  Última atualização 07H00
Os dados falam por si: 30 mil mortos, dos quais a maioria crianças e mulheres, 70 mil feridos, 80% de palestinos despojados das suas casas, destruídas pelos bombardeamentos, todos os hospitais arrasados, as principais universidades destruídas e, como se nada disso bastasse, os serviços de registo civil desmantelados, para que os habitantes locais não possam comprovar quem são, quais os seus bens, o seu grau académico e outros dados pessoais. Ou seja, é como se jamais tivessem existido.

Os que ainda não foram mortos aguardam apenas a sua vez: empurrados para a cidade de Rafah, no Sul de Gaza, um espaço do tamanho do aeroporto de Heathrow, em Londres, contam os dias até que Israel avance para a "solução final”, que desde a sua fundação tem reservada para os palestinos.

Os seus dirigentes actuais não escondem que a sua intenção é ocupar toda a Palestina e expulsar os palestinos da sua própria terra. A comprová-lo mais uma vez, o parlamento israelita acaba de aprovar uma moção rejeitando a solução de dois estados, que o Ocidente, cinicamente, diz continuar a defender, depois de anos sem fazer nada para a implementar.

A destruição e a matança que estão a ocorrer em Gaza são orgulhosamente assumidas, sem qualquer vergonha na cara, pelo Governo israelita. A comprová-lo, a ministra da Igualdade Social e Empoderamento Feminino, May Golan, declarou recentemente: - "Eu estou pessoalmente orgulhosa das ruínas de Gaza. E que todos os bebés até 80 anos depois de hoje contem aos seus netos o que os judeus fizeram!”.

Diante de uma afirmação dessas proferida por uma ministra da "igualdade social” e do "empoderamento feminino”, será preciso acrescentar mais alguma coisa?O que se passa em Gaza é um escárnio à humanidade, mas não é nada que não pudesse ter sido previsto.

Pelo contrário, foi antecipado e anunciado há muitos anos, desde antes da implantação do Estado de Israel no território histórico da Palestina pela Grã-Bretanha, a então potência colonial da região.

Há muita documentação que confirma a intenção sionista de ocupar todo o território da Palestina, a qual pode ser consultada por todos aqueles que forem intelectual e politicamente honestos. Só para dar um exemplo, menciono o Plano Dalet, de 1948. Mas há também correspondência e outros documentos de judeus famosos que se opunham a esse plano, como Einstein e Bertrand Russel.

Há dias, circulou no X (ex-Twitter) um vídeo antigo do Presidente norte-americano Harry Truman (1884-1972) falando da criação do Estado de Israel. Ele diz expressamente que os sionistas sempre se opuseram à partilha da Palestina com as populações árabes, mas que tiveram de ser convencidos de que "não é fácil expulsar cinco ou seis milhões de pessoas de um território de uma vez só e esperar que elas fiquem satisfeitas”. Acrescentou ele: - "A Palestina teve de ser ocupada aos poucos”.

E continua a sê-lo. A expansão dos colonatos israelitas na Cisjordânia é uma estratégia que, obviamente, se enquadra nessa intenção. Não tenho quaisquer dúvidas: os actuais acontecimentos em Gaza correspondem a uma estratégia do actual Governo israelita para acelerar esse processo.

Vou mesmo mais longe: a hipótese, levantada inicialmente pelo jornal israelita Haaretz, de que as autoridades de Tel Avive tinham conhecimento de que o Hamas estava a preparar um ataque a Israel e nada fizeram, a fim de usar esse pretexto para expulsar os palestinos de Gaza e anexar o referido território, parece-me cada vez mais plausível.

Uma nota final, para observar que, quase cinco meses depois do 7 de Outubro de 2023, Israel praticamente perdeu a batalha da opinião pública, mas isso de pouco mudará a situação no terreno, enquanto o governo ultradireitista de Netanyahu continuar a contar com a protecção dos Estados Unidos. Isso acaba de ser visto, mais uma vez, com o terceiro veto de Washington a uma proposta de cessar-fogo discutida no Conselho de Segurança da ONU. É certo que os EUA estão cada vez mais isolados nessa posição, mas nada disso, obviamente, lhes tira o sono.

O que talvez comece a tirar o sono aos democratas e a Joe Biden são os possíveis reflexos internos desse apoio irrestrito da Casa Branca a Israel. Uma pesquisa recente mostra que, entre os americanos democratas, 62% dizem que Israel foi longe demais.

Por outro lado, 35% do público geral diz que aquilo que está a acontecer em Gaza é um "genocídio”. Há quatro anos, o voto das minorias (negros, hispânicos, árabes e outras) e dos jovens foi determinante para a vitória de Biden, mas agora esses grupos estão muito zangados com o apoio do Presidente a Israel.

A jornalista brasileira Lúcia Guimarães, correspondente da Folha de São Paulo, nos EUA, escreveu no último dia 21 de Fevereiro: - "O apoio de Biden a Netanyahu é um abraço de afogados que ameaça afundar o legado real da sua Presidência”.

*Jornalista e escritor

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