Opinião

A triste história de Bebucho

Guida Osvalda

Havia se passado já 15 dias e a família não tinha recebido nenhuma notificação da Investigação Criminal. Lina, acompanhada pelas irmãs, havia prestado declarações aos órgãos de Comunicação Social sobre o infausto acontecimento. Reunidas, clamaram por justiça, mas ainda não havia resultados das investigações.

18/02/2024  Última atualização 10H30

Ninguém havia sido detido. A vida da pessoa que cometeu o crime e dos outros envolvidos seguia o seu curso como se nada tivesse acontecido. E para desespero de Lina nem o seu irmão, que era chefe na Polícia, mesmo no Serviço de Investigação Criminal, parecia interessado em desvendar quem tinha cometido o crime e o motivo.

Lina tinha perdido o seu segundo filho. Bebucho completaria 19 anos de idade no próximo mês. Foi uma morte que chocou a todos, por ser cruel e  que ninguém merece. Tentavam encontrar explicações, mas nada justificava a forma como ocorreram os factos: um grupo de crianças e jovens, entre os 12 e os 21 anos de idade, atacou outro grupo, onde estava o Bebucho.

Envolveram-se em uma rixa que só terminou depois o Bebucho ser esfaqueado na barriga. Dizem as testemunhas que Bebucho perdeu a vida mesmo no local e que ninguém se atreveu a socorrê-lo, tamanha era a violência entre os grupos rivais: os automobilistas mudaram de rota e os moradores refugiaram-se dentro das suas casas, fechados a sete chaves.

O jovem foi atacado com um instrumento perfuro-cortante, segundo o resultado da autópsia feita por um médico legista: provavelmente um punhal. O golpe foi desferido por um menino de 13 anos da Turma do Pungo.

A mulher desolada explicava a todos, que apareciam no óbito, que apesar do filho fazer parte de um grupo, Os de Mau, não era um mau filho. Todos os meninos d’Os de Mau estudavam e raramente se envolviam em rixas contra os outros meninos.

Ela não se recordava de ver o filho envolvido em alguma confusão ou que tivesse cometido algum acto condenável pela lei, algum furto ou algo semelhante. Aliás, o menino até ficava muito tempo no quarto em frente ao computador e só saía no fim do dia para espairecer.

O carácter do Bebucho não se enquadrava no tipo de jovens que fazem parte das gangues, que se envolvem em actos de delinquência juvenil. Ela não era rica, no entanto, a sua atenção para o seu único rapaz era redobrada.

Bebucho e  as outras duas irmãs não se podiam queixar, porque ela era uma mãe que fazia tudo para que não lhes faltasse nada. Bebucho tinha uma condição social aceitável e tudo para se dar bem no futuro.

É verdade que o pai dos filhos, de quem estava separada há muito tempo, sempre foi contra a forma privilegiada como tratava o rapaz. Em várias ocasiões alertou para o facto dela dar ao filho tudo o que ele quisesse: "Essa tua mania de dar tudo ao miúdo vai lhe  prejudicar. Enquanto continuares a fazer tudo por ele, o teu filho vai ficar sem responsabilidades. Deixa de lhe dar dinheiro sempre que ele pedir. Ele deve merecer cada tostão”.

Depois de mais uma semana de espera, o irmão de Lina, Américo, apareceu em casa do óbito, e foi recebido com uma certa frieza pelos familiares, principalmente por Lina. "Se a vítima fosse o filho dele, o criminoso teria sido detido no dia seguinte”, pensavam as irmãs.

Américo, indiferente à atitude dos familiares, perguntou se o quarto de Bebucho já havia sido limpo, depois do funeral. Diante da resposta negativa da irmã, ambos dirigiram-se ao quarto do falecido.

Américo, como se conhecesse o quarto do sobrinho palmo a palmo, removeu algumas gavetas do guarda-roupa, e, num fundo falso criado no móvel, retirou um revólver, um punhal e um facão. Em baixo do colchão, Américo retirou uma foice e um machado.

Estarrecida, Linadeixou-se deslizar para o chão sem conseguir manter-se em pé. 

–Mas isso é o quê? - balbuciou. A mãe de Bebucho sentiu que havia de perder os sentidos enquanto observava o irmão a colocar a arma de fogo e as brancas por cima da cama do falecido.Sentia fortes vertigens. Estava a ter um pesadelo, pensou.

Américo esclareceu a razão da sua aparente indiferença em relação ao esclarecimento da  morte do sobrinho: - Bebucho fazia, de facto, parte de um grupo que havia assassinado um jovem de 22 anos e por sua vez o mesmo grupo, em retaliação, agiu,causando a morte de Bebucho.

O oficial de Investigação Criminal explicou pacientemente à irmã o motivo do seu "silêncio” diante da situação: -  Era necessário desmantelar os grupos Os de Mau e Turma do Pungo, e, nestes casos, não pode vazar informação alguma que possa perigar a investigação.

Com voz carregada de amor, o oficial continuou a explanação: -  Estes grupos, de 15 a 30 pessoas, geralmente ficam munidos de catanas, facas, martelos, machados, vara paus e armas de fogo, e onde passam deixam um rasto de destruição.

O coração de Lina parecia querer explodir  enquanto ouvia o irmão: – Os miúdos de hoje não são como os do nosso tempo que lutavam mão a mão. Estes são miúdos que atacam quem passa sem remorso algum, destroem tudo à  sua volta,vandalizam carros e residências quando se apercebem que um elemento do grupo rival está refugiado numa determinada casa.

- Mas será que fiz mal em dar ao meu filho toda atenção material e afectiva de que ele necessitava?- Com os olhos lacrimejantes a mulher falava mais para si mesma do que para o irmão. – Preciso saber onde foi que falhei na educação do meu filho.

Américo fechou a porta do quarto para que ninguém mais ouvisse a conversa. – Foi uma fatalidade,mana, e a vida corrida que temos em Luanda nos faz perder o foco. Muitos de nós nem vemos os nossos filhos a crescer. Quando saímos de casa eles ainda estão deitados e quando regressamos estamos tão cansados que nem os vemos.

- A morte de Bebucho é a primeira registada este ano- o oficial continuava a falar lentamente para que a irmã entendesse a gravidade da situação. - Mas existe um número elevado de jovens atendidos em várias unidades hospitalares, todos os dias,  devido aos ferimentos adquiridos durante as rixas entre grupos rivais nas escolas, bairros, ruas e até nos mercados.

O rosto de Lina estava banhado de lágrimas e a sua mente levantava inúmeras hipóteses para descobrir onde havia falhado. A voz do irmão, carregada de dor, lamentou o facto de não existir a cultura de denúncia dos vizinhos, pais e encarregados de educação quando descobrem que osfilhos estão envolvidos em actos de delinquência juvenil.

Américo sentou-se junto da irmã e passou um braço à volta do ombro dela com a intenção de demonstrar o seu apoio e solidariedade,antes de lhe dizer que muitos integrantes dos grupos eram inimputáveis, por serem menores de idade, como era o caso do rapaz que tinha assassinado o Bebucho.

- Assim ele vai ficar impune? – Lina abafou ogrito que lhe escapou da garganta. – Que país é esse em que o assassino de alguém fica a passear em liberdade?

Mas Lina não era ignorante e tinha uma vaga noção de qual era o procedimento quando um rapaz menor de 16 anos cometia um crime. oficial, novamente, com a mesma paciência, disse à irmã que o rapaz seria companhado por um grupo multi-sectorial do Julgado de Menores, mas que existia a possibilidade do menino ficar apenas sob o   Termo de Identidade e Residência por ter cometido um crime sem o propósito de matar: por ser criança e provavelmente ter desferido o golpe sem a intenção de matar pode ter que se apresentar ao juiz semanal ou quinzenalmente.

Lina questionou a origem das armas de fogo e as brancas como foices,machados e picaretas.

-Quem vende  essas  armas aos miúdos? Como é que  se tem acesso a material tão perigoso?

Novamente, com a mesma paciência o irmão lhe informou que existem adultos, que, sem arrependimentos, vendem ou alugam as armas.

A mãe de Bebucho ficou a saber que devido à gravidade da situação os responsáveis da Polícia Nacional disponibilizaram contactos telefónicos para que fossem denunciadas as pessoas que fomentam estas rixas, causando pânico  e medo aos  moradores, mas ainda assim existem pais e outros familiares que saem em defesa dos filhos.

Mesmo sabendo que as suas palavras não aliviariam a dor que a irmã sentia, Américo explicou que existem programas do Governo para retirar os integrantes de grupos de rixas das ruas como as bolsas eestágios profissionais nos centros de formação do Instituto Nacional de Formação Profissional, em parceria com outras instituições sociais e a prática de desporto.

As explicações do irmão sobre os objectivos do programado Governo de engajar os jovens arruaceiros em projectos de formação em carpintaria, serralharia, ladrilhagem, mecânica, electricidade, pintura, decoração, pastelaria, entre outros, não deixaram Lina aliviada, pelo contrário, sentiao seu coração a ser dilacerado pela tristeza. A sua mente vagueava.

O pior nisso tudo, pensava Lina, era ter que dizer à família que Bebucho fazia parte de um grupo de arruaceiros, que esteve também envolvido na morte de um rapaz de 22 anos de idade e que, inclusive, dentro de casa, no quarto dele, havia uma pistola e armas brancas.

Como  dar a notícia ao pai  de Bebucho? O  pai  do  rapaz  sempre alertou  para o facto  dela  ser  muito  compassiva. E  dizia: - Não podes ver o teu filho como teu amigo. Entre mãe e filho deve existir  respeito, amor, mas  ele deve  saber  também que caso esteja envolvido em alguma situação grave vai ter que sofrer as consequências.

Lina chegou à conclusão que tinha criado um delinquente e agora pagava o preço. Tinha perdido o filho por ser uma mãe permissiva.

Acompanhada pelo irmão, Lina juntou os familiares mais próximos, incluindo o pai dos filhos e narrou corajosamente tudo o que ouviu do irmão sobre o envolvimento do filho na morte de uma pessoa e do material "bélico”encontrado no quarto do filho.

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