Opinião

Akira Toriyama, um legado do Japão para o Mundo

Omar Prata

Akira Toriyama faleceu, aos 68 anos, no dia 1 de Março. O mundo ficou a sabê-lo, na sexta-feira. Para trás, fica um legado e uma obra que marcou gerações com sucessos como Dr. Slump e Dragon Ball.

09/03/2024  Última atualização 19H40
© Fotografia por: AFP

Um hematoma subdural agudo (HSDA) causou a morte de Akira Toriyama.

Trata-se de uma "emergência neurocirúrgica comum e com elevada morbilidade e mortalidade. Na esmagadora maioria dos casos ocorre na sequência de um traumatismo craniano”, pode ler-se num artigo intitulado: "Hematoma subdural agudo espontâneo: diagnóstico raro, mas crucial”, publicado na Revista Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.

 

Segundo o site Leftvoice, "as condições de trabalho de um Mangaka (criador de banda desenhada japonesa) requerem uma demanda elevada, na qual frequentemente os autores não descansam para cumprirem os prazos estabelecidos. Por isso, suicidam-se ou morrem devido ao stress. Este fenómeno é chamado de Karoshi (morte por excesso de trabalho), como aconteceu com o célebre Kentaro Miura, responsável pelo manga Berserk, que perdeu a vida, aos 54 anos, vítima de uma rara condição causada por pressão arterial elevada.”

 

Apesar de podermos discutir o sacrifício, a exploração laboral, as exigências desumanas à qual são sujeitos estes humanos como máquinas automatizadas para satisfazer os patrões, para honrar contratos ou ganhar dinheiro, temos de ir a fundo e reflectir sobre o que move o desejo de quem cria, será a arte ou a compensação monetária?

 

Europa: 17 de Fevereiro de 1903, não havia correio electrónico, não havia redes sociais, muito menos telemóveis, no entanto havia quem tivesse a resposta para este enigma. A comunicação era feita através de correspondência por carta e podia durar semanas, meses, ou anos, até que a mensagem fosse entregue ao destinatário. Era um teste à paciência e uma realidade contrária àquela que vivemos.

 

Naquela data, o poeta austríaco Ranier Maria Rilke daria uma lição ao jovem aprendiz, Franz Kappus que jamais a esqueceria. "Uma obra de arte é boa quando nasce de uma necessidade: é a natureza da origem que a julga. Por isso, meu caro senhor, apenas me é possível dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades onde a vida brota. Só lá encontrará a resposta à pergunta: Devo criar? Desta resposta recolha o som sem forçar o sentido. Talvez chegue então à conclusão de que a arte o chama”.

 

Ásia: Nos anos 40, o primeiro a responder ao chamado artístico, na terra do Sol Nascente, foi Osamu Tezuka. Após a II Guerra Mundial terminar, começou a revolucionar o paradigma da indústria manga no Japão. Influenciado pelos filmes europeus e norte-americanos, nomeadamente: os clássicos da Disney, os ecos dos conflitos bélicos, as cores e o movimento ao redor na infância. Passou a imprimir essa dinâmica nos desenhos que outrora não transmitiam uma sensação de estarmos diante de uma longa-metragem ao alcance das mãos.

 

De acordo com o professor Shigeru Otsubo, numa apresentação na Universidade de Nagoya, em Abril de 2007, "Pós-Guerra Desenvolvimento da Economia Japonesa – Desenvolvimento, Japonês/Estilo Asiático”, na década seguinte as fábricas renasceram das cinzas quando foram apoiadas pelo fim das medidas restritivas norte-americanas, que deram autonomia aos produtores locais, bem como pela Guerra na Coreia, entre 1950-53, que permitiu a recuperação, estabilização económica e a subida do PIB a níveis comparáveis aos de 1935.

 

Foi neste período que, em 1952, Osamu Tezuka viria a lançar aquela que é tida como a obra-prima, Tetsuwan Atomu ou Astro Boy, que relata as aventuras de um super-herói que é um robô com emoções humanas e superpoderes, com atributos como a força sobre-humana, a superinteligência, o discernimento do bem e do mal, a habilidade para voar, usados ao serviço da justiça e da defesa dos mais desprotegidos.

 

Este é o ponto de partida para a compreensão de uma história que remonta à cidade de Nagoya, local considerado o terceiro maior centro industrial do Japão e com os seis dos mais importantes focos de produção da aviação militar no Império nipónico durante a Guerra do Pacífico.

 

Aquela região foi, igualmente, alvo de 21 investidas, no período de 13 de Dezembro de 1944 a 24 de Julho de 1945, com "ataques de precisão e por área que destruíram 67.311 casas ou deixaram-nas seriamente danificadas, enquanto 537.452 pessoas morreram, ficaram feridas ou desalojadas”, refere o relatório elaborado sobre os "Efeitos do Ataque Aéreo na cidade de Nagoya” pelos Estados Unidos da América, a mando do Presidente Harry Truman.

 

Na infância, a arte tocou à campainha do pequeno Akira, de um lado estava Walt Disney, acompanhado de Osamu Tezuka, do outro estava um mundo de fantasia à espera. Aproximou-se para espreitar a fechadura, escorriam-lhe gotas pelo rosto, era o nervoso miudinho de quem acabara de ver como se fossem dois fantasmas.

 

O Senhor Walt Disney disse:  Tezuka, tens a certeza de que esta é a casa de que estávamos à procura?

 

 Hai (sim), Walttu-sensei, o Astro Boy trouxe-nos até aqui, ele sabe sempre quem são os bons ou os maus, o meu sucessor vive aí.

 

 Ok, vamos entrar.

 

Foi então que o pequeno Akira acordou, tinha adormecido em cima da mesa onde desenhara os 101 Dálmatas que tinha de submeter no concurso da escola primária. Tão logo saíram os resultados, foi declarado vencedor, talvez tivesse pensado para si que fosse o início de um prenúncio de coisas maiores que estavam por vir. E estavam. O que fez Toriyama um mangaka foi mesmo a necessidade. Tudo o que queria na altura era arrecadar 100 mil ienes. Porém, foi mais do que 100 mil ienes que viria a alcançar.

 

Numa entrevista, citado pelo site Furinkan, o autor nipónico confessou que o percurso antes da estreia, aos 22 anos, foi assinalado por rejeições atrás de rejeições, com cerca de 500 páginas de rascunhos negadas pelos publicadores, o que pode ser explicado pela inexperiência em desenhar mangas, uma vez que trabalhava para uma agência de publicidade onde fazia ilustrações.

 

Contudo, foi notado e encorajado a persistir pelo editor-chefe da revista Weekly Shounen Jump, Kazuhiko Torishima, para a qual se tinha candidatado em 1977 e 1978. "Isto não é bom, não é interessante de todo. Por que é que não desenhas algo mais interessante? Dizia ele. Como sou o tipo de pessoa que não gosta realmente de perder, então repetia este ciclo dele a dizer-me que não era interessante, o que me espicaçava a desenhar de novo e enviar de novo”, revelou no programa de 1983, "Quarto da Tetsuko”.

 

Em 1981, foi distinguido com o prémio Shogakukan Manga, o mais antigo do Japão, com Dr. Slump. Dois anos mais tarde, tornar-se-ia no mangaka mais rico do país com a mesma obra e 22.480.000 cópias vendidas. O futuro seria mais promissor ainda. Em 1984, lançou Dragon Ball, na revista Weekly Shounen Jump, que revolucionaria para sempre o género Shonen com 260 milhões de cópias vendidas, bem como uma legião de fãs na América Latina, Europa, África e outras partes do globo.

 

A influência de Akira Toriyama transcende os limites jamais imaginados pelo próprio autor. Um artigo e o número de caracteres à disposição não farão jus ao número de referências incontáveis e ao modo como os videojogos, os filmes de acção e as histórias passaram a ser contadas e desenhadas pelos admiradores.

 

A impressão digital do artista de Nagoya, também, é notada no maior êxito da Nintendo, Super Mario, o jogo mais vendido de todos os tempos com mais de 830 milhões de cópias. O criador Shigeru Miyamoto, mencionado numa entrevista em 1996, explicou que os movimentos da protagonista de Dr. Slump, Arale Norimaki, serviram de inspiração para determinar como é que o canalizador se devia movimentar.

 

Em Dragon Quest, Akira Toriyama desenhou aquelas que são tidas como das– criaturas mais icónicas no role-playing game (RPG), as "Slimes”, tendo ainda contribuído para as personagens Crono, Frog, Marle, Lucca, Ayla e Magus de Chrono Trigger, outro dos clássicos do RPG.

 

No cinema, o renomado actor chinês Jackie Chan, também, confessou que se inspirou nas aventuras do robô feminino, Arale Norimaki, e do criador, Senbei Norimaki, tendo chegado a disfarçar-se como a protagonista de Dr. Slump no filme "My Lucky Stars” de 1985.


Curiosamente, Akira Toriyama retribui o reconhecimento do especialista de artes marciais, assumindo que sem ele o Dragon Ball não existiria, dando créditos ao filme de 1978, "Drunken Master” (O Grande Mestre dos Lutadores).

 

Todavia, o legado do mangaka não fica por aí.

 

Quantas não foram as crianças e adultos, tios, pais ou avós que não levantaram as mãos para o céu para tentar ajudar Son Goku a formar a maior bola de energia (Genki Dama) para derrotar Majin Boo? Quantas não gritavam Kamehameha e imitavam o gesto com as mãos para ver se conseguiam libertar o mesmo poder que os heróis na TV?

 

Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, o velocista Noah Lyles celebrou dessa maneira ao ganhar a medalha de bronze nos 200 metros. E os campeões olímpicos, Elia Viviani, Filippo Ganna, Francesco Lamon, Simone Consonni e Jonathan Milan, em ciclismo de pista, na disciplina de perseguição por equipas, fizeram homenagem às forças especiais Ginyu (Dragon Ball Z).

 

Na NBA, vários jogadores como Luka Doncic, Lauri Markkanen, Jordan Bell calçaram ténis personalizados alusivos a Dragon Ball Z.

 

No futebol, também não foi excepção, claques do PSG e do Wydad Casablanca fizeram coreografias com recurso à saga japonesa. Na indústria musical, o fenómeno é idêntico com referências encontradas nas faixas de Soulja Boy – Goku, Frank Ocean – Pink Matter, Joey Bada$$ – Christ Conscious, Denzel Curry – Ultimate, conforme dá a conhecer o site Ranker.

 

E no meio de todo esse mar imenso de admiradores vieram, ainda, os próprios mangakas que à semelhança de Akira Toriyama, que chamava a Osamu Tezuka de Sensei, nele reconheceram a maestria. Entre os mais célebres, os criadores de Naruto, Masashi Kishimoto, e One Piece, Eiichiro Oda.


"A sua arte era apelativa para mim. Havia algo no estilo de desenho animado que parecia certo, mais do que desenhos realistas. Pensei comigo mesmo, quero-me tornar como Toriyama Sensei” – disse Masashi Kishimoto, citado pela Viz Media, uma empresa que é subsidiária da editora Shogakukan.


"É óbvio que ele é um deus. É uma dimensão totalmente diferente! Tudo de tudo! Ele é simplesmente perfeito no desenho! Para falar a verdade nunca li Dr. Slump. Como meu primeiro encontro com mangas do Sensei Toriyama foi no segundo episódio de Dragon Ball. Apaixonei-me completamente e pensei. "Ele é muito bom”. Naquela época gostava muito da Disney, mas eu pensava: "Isto aqui é melhor que a Disney – sublinhou Oda, numa entrevista feita para o Art Book de One Piece, Color Walk 1, publicada no site Kamisama.


Akira Toriyama foi mais do que um mangaka, mais do que um artista, mais do que um génio. Trouxe às crianças a alegria de participar nas conquistas de um mundo imaginado como se fosse real. Trouxe aos adultos a hipótese de voltarem a ser crianças. Trouxe às crianças a importância da paternidade e dos laços humanos. E deu à arte a necessidade que um dia a arte o fez sentir.

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