Entrevista

Angola tem 202 unidades sanitárias com o serviço de assistência mental

Alexa Sonhi

Jornalista

Para os especialistas, cuidar da saúde mental é tão importante quanto manter a saúde física. Em Angola, um total de 359.579 pessoas com problemas mentais encontra-se em tratamento.

20/10/2023  Última atualização 07H15
Coordenadora nacional do Programa de Saúde Mental e Abuso de Substâncias, Massoxi Vigário © Fotografia por: João Gomes| Edições Novembro
A situação, que para os profissionais do sector já é alarmante, é o foco da entrevista concedida pela coordenadora nacional do Programa de Saúde Mental e Abuso de Substâncias, Massoxi Vigário.

Como define a saúde mental?

É um aspecto da saúde caracterizado pelo equilíbrio das emoções, sentimentos e expectativas em torno de si, dos outros e da vida. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a saúde mental como um estado de bem-estar, no qual o indivíduo percebe as próprias habilidades, lida com o stress do quotidiano, pode trabalhar produtivamente e é capaz de contribuir para a comunidade.

Como caracteriza, hoje, o estado da saúde mental em Angola?

Estamos diante de uma pandemia silenciosa. A realidade é visível nas unidades sanitárias, onde a rede integrada de saúde mental, espalhada pelas 18 províncias, tem estado a atender um elevado número de pessoas. Também temos ouvido muitas informações sobre o assunto pelos media, bem como na interacção diária com a sociedade. É preciso termos mais atenção, pois os problemas mentais têm um impacto profundo, capaz de afectar até as crianças em idade escolar, ou os jovens com capacidade para produzir.

Como avalia os constantes casos de stress registados na sociedade?

Há uma preocupação gritante em relação ao stress, que, apesar de ser uma patologia psiquiátrica, pode promover o surgimento de doenças, como o cancro, hipertensão, diabetes, doenças de pele, doenças gástricas e várias outras patologias, cuja base é o desequilíbrio da saúde mental.

Há motivos para alerta?

Temos, hoje, mais razões para ficarmos preocupados com o estado da saúde mental dos angolanos, devido ao número de casos que vêem aumentando, fundamentalmente, porque existem muitos factores para o surgimento de tais doenças, envolvendo assuntos sociais, como o aumento da pobreza, do desemprego, as perdas constantes, o luto, as separações, os actos de violência doméstica ou sexual.

Os cuidados devem ser estendidos aos menores?

Devido aos transtornos de aprendizagem não diagnosticados é preciso prestar muita atenção aos menores. Actualmente, existem muitos casos de bullying nas escolas, que de alguma forma, têm um peso gritante no surgimento das doenças mentais, associado ao estigma, à discriminação e ao preconceito entre os adolescentes. Às vezes, devido ao receio de ser visto como alguém com problemas, muitos não recebem a ajuda atempadamente, ao ponto de as doenças mentais não ficarem apenas no estado inicial e agravarem de forma alarmante.

Como criar um quadro de condições capaz de fortalecer a saúde mental?

É preciso olharmos para as questões que determinam o surgimento de doenças mentais na população mais jovem. Uma população activa, que enfrenta constantemente situações de stress, devido aos níveis de desemprego e conflitos familiares, têm maior possibilidade de ter problemas de saúde mental, devido às altas expectativas, associada à incapacidade de gestão emocional. Temos de ter um maior cuidado, também, com a falta de qualidade de vida, o envolvimento precoce com drogas e álcool, assim como a pressão a que muitos são submetidos para serem integrados em grupos sociais, actos que, às vezes, geram conflitos internos.

Como evitar tais situações, principalmente entre os jovens?

Devemos olhar para as condições que possam fortalecer a saúde mental e, ao mesmo tempo, ficar distanciados das doenças mentais. É preciso ainda acabar com o estigma em torno das doenças mentais e garantir que a população conheça e tenha acesso a estes cuidados de saúde. A saúde é o complemento do bem-estar, entre o físico, a mente social e espiritual. Para termos esta harmonia, temos que dar a devida atenção a cada um destes pilares da vida e a família joga um papel importante.

O apoio familiar é fundamental?

Infelizmente, muitas famílias não estão sensibilizadas sobre a importância de prevenir e tratar situações como ansiedade e depressão. O stress causado pelo custo de vida, nos últimos dias, agrava estes casos, primeiro prejudicando a saúde mental e segundo tornando cada vez mais difícil o acesso das pessoas aos profissionais. A eliminação do estigma das doenças mentais e o aumento do conhecimento da população sobre o assunto é fundamental, para que as pessoas busquem os serviços profissionais ainda no estágio inicial da doença, evitando a evolução efectiva. Temos de ter a cultura de fazer "chek up” da saúde mental.

Que assuntos podem ser analisados pelos profissionais de Saúde Mental?

Quando estamos diante de um profissional da Saúde Mental há vários aspectos a se ter em conta. Portanto, aconselho os pacientes a questionarem sobre tudo, desde como fazer a prevenção das doenças mentais, ou promover a saúde mental, incluindo os cuidados de saúde institucionalizada, ou como funciona o processo de reabilitação e reintegração dos doentes.

A doença pode surgir por algum motivo genético?

Sim. Muitas crianças nascem dentro de um ambiente, onde há uma pré-disposição para o desenvolvimento de certas patologias, como os transtornos de hiperactividade e o de neuro-desenvolvimento, nos quais existe o alto défice de atenção e desenvolvimento. Estas doenças que realmente carecem de preocupação surgem nos primeiros anos de vida.

Já há investimentos suficientes no sector?

O investimento ainda é reduzido. Além disso, há o défice de hospitais especializados e de profissionais da Saúde Mental. Mas, é preciso olhar também para todo o investimento feito e perceber que já foram dados largos passos. Por exemplo, em 2013, tínhamos em todo o país, dez unidades com serviços de saúde mental, com psiquiatras e psicólogos. Em 2022, tivemos um aumento para 184 unidades e representação em 67 municípios das 18 províncias. Este ano, estamos com 202 unidades sanitárias, nas quais a população pode encontrar maioritariamente a presença de psicólogos.

Quer dizer que há condições para atender a todos?

Apesar deste aumento no número de unidades sanitárias com serviços de saúde mental, não estamos bem servidos, porque ainda há muito a ser feito para atender toda a população. O país tem 33 milhões de habitantes, por isso estamos muito distantes das reais necessidades da população.

O investimento na saúde mental apenas deve ser feito com a construção de unidades de referência?

O investimento a nível de saúde mental vai desde o aumento das infra-estruturas sanitárias, ao aumento de recursos humanos especializados para atenderem os utentes. Também é preciso investir mais na questão da humanização da saúde, em particular a mental.

Como deve ser o investimento a nível das infra-estruturas sanitárias?

É preciso que seja feito a partir dos centros comunitários de saúde mental, porque é neles onde ocorre uma maior procura da população.

"As doenças mentais podem ser causadas por vários factores”
Quando estamos perante uma doença mental?

As doenças mentais são transtornos que afectam o pensamento, o humor e o comporta- mento de uma pessoa. Elas podem ser causadas por vários factores, incluindo as experiências da vida.  Alguns exemplos de doenças mentais são as depressões, ansiedades, os transtornos bipolares, as esquizofrenias e os transtornos alimentares. Nestes casos, é importante as pessoas procurarem a ajuda de um profissional de saúde.

Há um tratamento adequado para lidar com as doenças mentais?

Existem vários tratamentos que são eficazes e estão disponíveis para ajudar as pessoas a lidarem com esses problemas e terem uma vida saudável e feliz. Mas, as pessoas devem estar atentas aos sinais e buscar ajuda profissional bem no início da situação.

A Covid-19 agravou os casos de doença mental no país?

Sim, as doenças mentais aumentaram muito com o surgimento da Covid-19. Muitas pessoas já padeciam de algum tipo de transtorno antes da pandemia e outras acabaram sendo afectadas pelo isolamento da Covid-19. Muitos até hoje não conseguiram recompor-se.

Quantas pessoas vivem afectadas por doenças mentais no país?

Nos últimos três anos, tivemos cerca de 359.579 pessoas sob tratamento a nível das unidades sanitárias do país. Nestes números estão incluídas pacientes de todas as faixas etárias, inclusive crianças, a partir dos quatro anos, jovens até 25 anos e idosos. Logo, há toda uma necessidade de se apostar mais na saúde mental.
 

Há quatro anos, o Ministério da Saúde, com o apoio da OMS, aprovou a Estratégia de Saúde Mental. Actualmente, já se pode falar de uma política pública virada à saúde mental?

Sim, de facto. Em  2019,   foi aprovada a Estratégia de Saúde Mental. Mas, por conta da Covid-19, não foi possível dar prosseguimento e fomos obrigados a fazer uma actualização da estratégia, tendo em conta o período em que durou a pandemia. Em breve, vamos apresentar o resultado desta actualização.

"A principal responsabilidade deve ser da família”
Até que ponto a componente cultural e a falta de preparação das famílias dificultam as melhores abordagens em relação à saúde mental?

As famílias são a rede principal de apoio para qualquer tratamento. Os médicos, os psicólogos e os enfermeiros fazem o seu trabalho, mas dentro de um limite. A principal responsabilidade deve ser da família, porque o amor cura e salva. Infelizmente, muitos familiares furtam-se por causa do estigma e do preconceito. Devido a esse afastamento, os doentes preferem ignorar o problema.

Não acha que deve existir um mecanismo de responsabilização aos familiares que se furtam em auxiliar os parentes adoentados?

A maior parte dos casos de tratamento e acompanhamento de doentes mentais têm recuperação. As doenças mentais estão entre as crónicas não transmissíveis, como as diabetes, hipertensão e o cancro, algumas com tratamento, ao ponto do indivíduo voltar a ter uma qualidade de vida normal, como qualquer outra pessoa, sem ter de ir com frequência aos hospitais. Porém, é preciso que qualquer pessoa com um quadro de doença mental, seja leve, moderado ou grave, tenha uma atenção redobrada com a sua saúde mental, de modo a não ter recaídas.

Na sua opinião, a saúde mental é um campo exclusivo da Medicina Convencional ou deve haver espaço para os terapeutas tradicionais?

Para mim, a saúde mental não é um campo de intervenção exclusiva da Medicina Convencional. Deve haver espaço para que todos, desde que devidamente capacitados, possam exercitar a humanização de práticas integrativas. Isso hoje é uma visão mundial. A medicina chinesa traz várias práticas que buscam o conceito da Medicina Tradicional na aplicação dos cuidados de saúde do homem com resultados fantásticos. É a mudança de hábitos alimentares, por exemplo, pois pela alimentação conseguimos curar muitas doenças, até as mentais.

Nos últimos anos, os casos de violência, homicídios e suicídio têm crescido de modo assustador. Há alguma relação com a eventual degradação da saúde mental no geral?

O aumento destes casos tem aumentado de modo assustador. Naturalmente, quando olhamos para estes comportamentos, estamos diante de várias doenças mentais como as neuróticas e as psicóticas. As pessoas não conhecem sequer o diagnóstico que têm e, não têm preocupação com aquilo que é o comportamento desajustado. Logo, estas pessoas tendem a enveredar por práticas que ponham em perigo todas as pessoas à sua volta.  Daí termos na sociedade os psicopatas e sociopatas. Não tem como não olharmos para esse grupo de patologias e vemos isso reflectido na sociedade. Infelizmente, estamos diante de uma realidade que precisa urgentemente de ser mudada. Por isso, queremos promover mais a saúde mental.

A saúde mental dos angolanos pode degradar-se mais em função da crise por que passam muitas famílias?

Se não existir um olhar atento, tanto interior como exterior, pode sim. É um acto que envolve toda uma responsabilização em cascata sobre o que são os direitos e deveres de cada um, enquanto actores sociais e políticos. Temos que investir mais em resiliência humana, cuidar mais do eu, melhorar a auto-estima, olhar para o equilíbrio das relações.  Muitas vezes, acabamos fazendo dos outros o nosso saco de pancada, porque estamos numa condição de superioridade e não damos conta que acabamos por influenciar negativamente no adoecimento e sofrimento dos outros.

Que conselho daria aos angolanos para melhor preservarem a saúde mental?

A saúde mental está em risco. A maioria das pessoas, em particular os jovens, está muito conectada às redes sociais, logo sujeita a pressões sociais intensas, com prazos cada vez mais curtos, assim como ao excesso de competições. Por isso, precisamos encontrar o ponto de equilíbrio emocional e físico diante dessa realidade. Investir em saúde mental não é mais do que uma escolha acertada, mas sim uma necessidade, porque envolve a adopção de um estilo de vida saudável. Por isso, devemos reservar tempo para o auto-cuidado, praticar exercícios e outras actividades capazes de promover o bem-estar, como ler um bom livro, ou visitar lugares que nos aproximam mais da natureza.  

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