Entrevista

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“Aprendi que uma mente aberta vê melhor que os olhos”

Em entrevista ao Jornal de Angola, Yannick Afroman afirmou que pretende continuar a trabalhar para o crescimento da música angolana, tendo afirmado que a comunidade do hip-hop no país é grande e ser rap é preciso ter mente aberta. Em Dezembro de 2023, venceu a primeira edição do troféu “Disco de Ouro”, uma iniciativa da rádio FMAFRO. Yannick venceu, o Top dos Mais Queridos, em 2019, com a música “Bakongo”.

14/01/2024  Última atualização 09H50
© Fotografia por: DR
Yannick Afroman sente-se um artista realizado em todos os aspectos da vida?

Sempre que se realiza um sonho, surgem outros. Por natureza os homens nunca estão satisfeitos. Ainda tenho um caminho por percorrer, mas sinto que já realizei 50 por cento dos meus projectos. Não posso reclamar da vida e estou convencido de que chegarei próximo da minha meta. Felizmente tenho sabido tirar o melhor rendimento da música. Hoje me permite fazer outros investimentos. Tornei-me empreendedor e tenho feito alguns investimentos fora do ramo da música, o que me tem ajudado a dar alguma estabilidade financeira à minha família. Porém, a música continua a ser o meu maior investimento. É a minha actividade mais lucrativa financeiramente.

 
Porque optou pelo rap e não por um outro estilo musical?

Gosto de vários estilos, mas há certas músicas com que não me identifico. O rap é um estilo que rapidamente me identifico, porque em minutos posso exteriorizar tudo o que sinto sobre os mais variados assuntos sociais. No rap mais facilmente consigo criticar, sugerir, alertar e aconselhar sobre os vários acontecimentos. Gostaria também de fazer outros estilos, mas, na verdade, o rap é a minha zona de conforto. Quem sabe no futuro poderei experimentar algo novo.

 

O que a música já lhe deu como recompensa ao longo desses anos de carreira?

A música deu-me tudo. Tudo na minha vida consegui por via da música. Os bens materiais e tudo que desejei até hoje foi pelo caminho da música. Ela me deu o reconhecimento, respeito do público e penso ser este último um dos maiores ganhos da minha vida. Essa valorização devo aos admiradores do meu trabalho. Muito obrigado pela consideração, carinho e todo o apoio que tenho merecido. Prometo continuar a dar o meu melhor para o crescimento da música angolana. É bem verdade que a nossa música cresceu muito, mas ainda temos muito por fazer e um longo caminho por percorrer. Ainda falta muito para nos afirmarmos no contexto internacional, devido à falta de união e da pouca vontade de fazer as coisas acontecerem positivamente.

 

Acredita que a sociedade tem feito muito pouco pelo crescimento dos mais variados estilos musicais no país?

Sinto que até existe vontade, mas não há estrutura que nos permite rapidamente furar para outros mercados. O Ministério da Cultura e Turismo e parceiros precisam olhar de forma diferente para as questões culturais. Tem sido feito alguma coisa neste sentido, mas ainda há muito por se fazer se quisermos alcançar grandes resultados. Temos, por exemplo, muito poucos artistas a conseguir impor-se no mercado português. Precisamos ter um mercado artístico onde as pessoas possam consumir mais os produtos nacionais. Temos dificuldades em ter as salas de espectáculos cheias. Precisamos, individualmente, fazer um pouco mais para promover as nossas próprias actividades, mas é preciso que as outras estruturas estejam interligadas em todos os processos.

 

Como tem analisado a dinâmica da música angolana e se já atingimos os patamares desejados a nível internacional?

Para atingir níveis internacionais, não basta ter boas músicas, mas é preciso investimentos. São esses apoios institucionais que muitas vezes não encontramos no sector público e privado. A música continua a ser um dos maiores veículos para levar o nome do país a ser conhecido pelo mundo, por isso, precisamos de mais investimentos para o desenvolvimento cultural nacional.

 

Os seus temas são carregados de várias mensagens que reflectem exactamente os principais problemas socioculturais e políticos do país. A diferença é que usas sempre uma pitada de humor para suavizar e conseguir que as mensagens alcancem os objectivos sem ferir sensibilidades. Tem sido a sua estratégia e uma das razões de tanto sucesso?

É verdade. As minhas músicas falam, sobretudo, do dia-a- dia. Outrossim, aprendi que a verdade por mais que seja falada com suavidade dói sempre, por isso encontrei essa maneira simples de comunicar sem deixar ressentimentos. Critico como forma de ajudar a encontrar os melhores caminhos para o desenvolvimento do país e a mudança de comportamentos dos cidadãos. Sinto que tenho cumprido com a missão enquanto alguém que usa a música como um instrumento mobilizador para fazer mudanças na vida das pessoas. Ao longo dos anos, trabalhei a sensibilidade para conseguir ultrapassar barreiras e transmitir mensagens positivas no que faço. Quem me conhece, sabe que procuro tirar proveito do meu lado cómico e aplicar nas minhas letras. É a minha forma de ser e estar. É tudo espontâneo, não é nada propositado.

 

Como tem sido a sua rotina e se conseguiu realizar os seus projectos artísticos previstos para o ano passado?

Foi um ano muito produtivo. Tive muitos espectáculos, muitas homenagens e a última foi ter ganho o troféu "Disco de Ouro”, uma iniciativa da rádio FMAFRO, como um incentivo à criatividade para qualquer músico que se considere profissional. Depois do trauma da pandemia da Covid-19, o ano de 2023 não poderia ser melhor. Sinto que existe um carinho especial por mim por parte do público e recebi muitas homenagens esse ano.

 

Quais são as suas principais referências musicais no país e  no estrangeiro?

Tenho muitas referências, mas quero apenas citar aquelas que mais impacto positivo tiveram como influência para a minha carreira. O Bonga e Teta Lando. Sempre quis cantar ao nível deles. No estrangeiro destaco Bob Marley, pelo legado deixado para o mundo. Espero que o meu trabalho possa alcançar a dimensão desses ícones da música nacional e internacional. Quero que um dia as minhas frases sejam lembradas e sirvam também de reflexões para as pessoas. Tenho também um carinho especial pelo rapper  Chuck D e do norte-americano Public Enemy, pelo seu lado crítico. Ele revolucionou a minha mente e procuro fazer o mesmo nas minhas canções. Estou consciente de que não vou mudar o mundo, mas quero deixar um legado positivo às novas gerações. Aprendi que uma mente aberta vê melhor que os olhos.

 

Porque o rap, embora seja o estilo mais conhecido, consumido e ouvido no mundo, não atrai tantos jovens em Angola como o kuduro, kizomba e o semba? Tem muito a ver com a sua existência intelectual ou porque não é um estilo tão imediatista?

A comunidade hip-hop no país é grande. Para se ser rapper é preciso ter mente aberta, ter caneta, habilidades, criatividade, capacidade de transformar o difícil em simples, sabedoria e cultura geral acima da média. Por isso é que muitos desistem do estilo e vão para as animações, apesar de que os estilos kizomba, semba, kuduro, afro e tradicionais exigirem de quem os faça alguma criatividade e sentido crítico, sobretudo nas abordagens. O rap é um estilo musical que obriga de quem o faz a ser muito criativo. As pessoas absorvem as coisas mais rápido. Somos um povo que gosta de dançar e os outros estilos são muito mais animados e consumidos. O rap, por ser mais elaborado nas mensagens, nunca atraiu tanta gente como se pretende. O estranho nisso tudo é que, ainda assim, muitas músicas do estilo rap chegam a ser mais consumidas.

 

Alguma vez pensou em abandonar o estilo rap para se dedicar a um outro estilo. Se sim, por que razões?

Nunca pensei em abandonar o rap, pela capacidade que nos dá de nos adaptarmos  a qualquer estilo musical. Ao longo da carreira surge sempre a oportunidade de mergulhar noutros estilos, mas também exige mais de nós, porque cada estilo tem a sua complexidade e particularidade. Não é fácil adaptar-se a outros estilos. Se calhar posso futuramente experimentar o estilo Nadja. Como digo muitas vezes, mudo sempre de telefone, mas nunca de número. Podemos tentar seguir outros estilos, mas nunca esquecer a essência.

Sempre pensei que cada sociedade precisa de ter os seus heróis. A juventude precisa de pessoas que os possam conduzir a tomar as melhores decisões. No começo eram apenas uma forma encontrada para  desabafar, mas depois começou a ficar mais sério. As minhas músicas reeducam-me. Às vezes quando ouço as minhas músicas, procuro melhorar determinados comportamentos. Sinto que as pessoas ainda colocam muita resistência às transformações. Todos querem mudar de atitude, mas ninguém quer aceitar essas mudanças. Ninguém quer sair da sua área de conforto.

 

Alguma vez teve a oportunidade de ser rico com a música, mas que teria de praticar actos ilícitos para alcançar tais objectivos?

(Risos)... oportunidades de ser rico acho que nunca tive com a música. Não sei se é bem essa a resposta, mas o que acontece, muitas vezes, é a necessidade de melhorarmos a nossa imagem. Para isso, precisamos fazer alguns investimentos e muita gente confunde esse processo e faz comparações. Procuramos ser bons gestores daquilo que ganhamos com a música para nos proporcionar algum conforto emocional e espiritual, mas praticar actos incorrectos para ser rico nunca me passou pela cabeça e espero nunca chegar a esse ponto reprovável.

 

Como descreve a sua relação com os demais colegas de profissão?

A minha relação com os colegas é saudável e procuro respeitar o espaço de cada um. Procuro fazer bem o meu trabalho e elogiar o trabalho positivo dos meus colegas. Dou conselhos quando se estão a desviar e procuro fazer bem as coisas, até porque sou um exemplo a seguir por muita juventude.

 

Tem família constituída e que valores procura transmitir aos seus filhos?

Tenho uma família maravilhosa de três filhos. Digo-lhes sempre que há muitas coisas que gostaria de fazer ainda por eles. Tento ser um pai exemplar que procura transformar as palavras em acções. Nunca faço nada sem a opinião dos meus filhos. Isso é importante para fortalecer as relações de afecto com todos os membros da família. Converso muito com a esposa e filhos, digo-lhes que não é fácil ser uma pessoa famosa. Sensibilizar os filhos para nunca se meterem em confusões, por perigar o bom nome da família, procuro sempre transmitir  valores para a vida.

 

O que mais gosta de fazer quando tem algum tempo livre?

Gosto de ver televisão. Ver filmes, séries e música. Gosto de viajar com a família para o exterior do país quando as condições económicas são favoráveis, mas quando não há condições passamos as férias mesmo no país. A vantagem de viajar é o facto de poder estar por exemplo em Paris, e não ser reconhecido e poder fazer algumas coisas sem se preocupar se estamos a ser observados ou seguidos. Fora tens mais liberdade de fazer coisas sem estar muito preocupado com as opiniões alheias. Gosto de comer fúmbua, kizaka, feijoada e não trocaria isso por batatas fritas. Sempre que posso troco experiências com os poucos amigos, mas fiz muitas amizades ao longo desses anos de carreira.

 

Manter o sucesso é um exercício que consome muito de um artista mental e fisicamente. Como tem feito essa gestão?

É verdade,  manter o sucesso é um exercício diário. Chegar no topo todos conseguimos, mas se manter por muito tempo, já é mais difícil. Precisamos de muita disciplina e foco. As atenções são viradas para ti, é quase impossível falhar para não ser julgado. A fama nos obriga a viver sob pressão, uns sabem lidar melhor com essas pressões. Precisamos aceitar quando o momento é dos outros e sair dos holofotes da fama para deixar os outros brilharem. Não precisamos estar sempre na ribalta, precisamos de saber o momento de nos afastar.

 

Quais foram até agora os momentos mais marcantes da carreira e aqueles que gostaria de esquecer?

A música tem me proporcionado muitos bons momentos. Aproveito a música para me divertir, mas também existem aqueles momentos que não têm sido fáceis. Um dos momentos marcantes foi a venda do meu primeiro disco "Mentalidade”, em 2008, no Cine Atlântico, que obrigou ao encerramento do local devido à enchente e à confusão que se instalou. O disco na época bateu o recorde de vendas de mais de 12 mil cópias em três horas. Esse feito obrigou a alteração do local de vendas dos discos para o Parque da Independência. O segundo momento foi a lotação do meu espectáculo no Estádio dos Coqueiros no mesmo ano, o que me valeu a distinção de Melhor Show do Ano e Melhor Rapper, pela Moda Luanda, Rádio Luanda e Casablanca. O terceiro meu grande momento foi na Guiné-Bissau, onde fui o primeiro estrangeiro a lotar o Estádio de Futebol 24 de Setembro.


Em Janeiro de 2020 houve um assalto em frente ao condomínio onde vivia. Como foi gerir aquele momento, mesmo sendo reconhecido e não ter sido poupado?

Dois bandidos estavam com armas brancas e de fogo, levaram-me dois telefones, a carteira com todos os documentos e dinheiro. Existem sempre aqueles invejosos que se sentem mal com o sucesso dos outros. Aquela pessoa que você ajuda a dar o emprego é a mesma que te pode fazer mal. Os jovens que me assaltaram eram jardineiros do condomínio onde vivia, acompanhavam todos os meus passos e no dia do assalto chamaram pelo meu nome. Disseram para não fazer alaridos e se manter calmo que nada de mal me iria acontecer. Me mantive sereno, porque sabia que tudo aquilo que levavam eram coisas materiais e nada comparado com a vida. Tudo se trabalha e o mais importante era estar  vivo e junto da minha família. No entanto, não deixa de ser triste, porque pensámos sempre que essas pessoas que vêm de baixo como nós seriam os anjos da guarda, mas infelizmente não é bem assim.

 

Como gostaria de ser lembrado quando tivesse que partir para a eternidade?

Gostaria de ser lembrado como uma pessoa honesta, um exemplo a seguir e ser a inspiração para muitos jovens angolanos. Quero ser lembrado como um cidadão modelo. A juventude precisa de boas referências e tenho procurado ser esse modelo para a sociedade.

 

Como fazedor de opinião e que usa a música como uma fonte de transmissão de conteúdos positivos à sociedade, que recado deixa para a juventude cada vez mais imediatista?

Tenho uma música nova que fala dos imediatistas. O tema "Não Vale Nada” já está nas plataformas digitais do Spotify e YouTube. O tema reprova o imediatismo. Aconselho os jovens a escutarem pela mensagem que nos transmite.

Muita coisa mudou e hoje existem cada vez mais jovens preocupados em ter uma ocupação. A juventude quer a sua auto realização, já não querem continuar em casa dos progenitores por muito tempo. O mais importante é ver a juventude focada em objectivos.

 
Hoje como vê as dinâmicas da sociedade angolana? Tem a mesma opinião de 20 anos atrás? O que melhorou e o que precisa  continuar a ser feito?

Precisamos melhorar as políticas de empregabilidade e criar mais postos de trabalho, desenvolver o sector industrial e do comércio, transformar os produtos do campo em benefícios para as comunidades, construir mais estradas para fomentar o rápido desenvolvimento da sociedade. São desafios que devem envolver todos e não apenas o Executivo. Devemos fazer mais e reclamar menos, devemos ser proactivos, ajudar com ideias inovadoras, alertar e cobrar dos governantes o que prometeram durante as eleições, mas sem precisar de praticar actos de violência e arruaça. Não basta somente criticar, é importante também apresentar soluções. Se cada um de nós fizer a sua parte, já seria um passo em frente.


Perfil
A  trajectória do músico

Yannick Manuel Ngombo nasceu a 30 de Janeiro de 1982, no município de Makela do Zombo, província do Uíge. Começou a dar os primeiros passos na música rap em 1988, em França. De regresso ao país, em 1994, fundou o grupo Afroman com  Mumu e Kites.

Mumu já faleceu e Kites emigrou. Actualmente, o grupo Afroman é somente representado pelo próprio Yannick, que conservou o nome em memória do seu amigo e colega de grupo, o malogrado Mumu.

Ao longo da carreira ganhou o primeiro prémio em 2001, com a música "Tá Calor”, sendo o primeiro rapper a ganhar o "Top Rádio Luanda” sem ter um álbum lançado no mercado, que era impossível naquela altura.

Depois de vários sucessos, lançou o primeiro álbum "Mentalidade”em 2008, que teve impacto nacional e na diáspora, sobretudo na comunidade africana. Bateu o recorde de mais de 12 mil cópias comercializadas em apenas três horas.

Com o disco "Mentalidade”, que foi  tema de debate até no parlamento angolano, é o   primeiro músico no estilo rap a cantar no Palácio  Presidencial, tendo apenas dois meses e meio de vida do álbum.

Yannick Afroman teve o desafio de fazer o seu grande show no Estádio dos Coqueiros, que teve uma enchente jamais vista em Angola em termos de espectáculos.

Logo em seguida ganhou o prémio de "Melhor Show do Ano” e "Melhor Rapper”, pela Moda Luanda, Rádio Luanda e Casablanca.

O resultado de vários anos de carreira e o conjunto das obras foram os critérios que o consagraram, no dia 8 de Dezembro de 2023, como o vencedor da primeira edição do troféu "Disco D’Ouro”, uma iniciativa da rádio FM AFRO.

Depois de ter ficado em segundo lugar na edição de 2009, Yannick Afroman venceria, dez anos depois, o Top dos Mais Queridos, em 2019, com a música "Bakongo”, tema extraído do seu disco "Outros Mundos”, lançado em Dezembro de 2018, que faz referência à importância da valorização da cultura e das tradições angolanas.

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