Entrevista

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Bastonário Luís Monteiro: “É reconhecido o engajamento de Angola na Associação dos Advogados da SADC”

Roque Silva

Jornalista

Luanda vai ser, durante cinco dias, a partir de hoje, segunda-feira, a capital da advocacia da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC). Ao todo, 600 representantes das 16 Ordens de Advogados dos países-membros da SADC participam na XXIII Conferência Anual da Associação dos Advogados da África Austral, no Centro de Convenções de Talatona (CCT), onde vai, também, decorrer uma reunião da Assembleia Geral da organização, com o lema “Independência dos advogados e juízes para o desenvolvimento sustentável da democracia na região Austral”.

18/09/2023  Última atualização 08H10
Bastonário Luís Paulo Monteiro afirma que o exame nacional de acesso à advocacia trouxe muitos benefícios para a sociedade © Fotografia por: Raimundo Mbiya |Edições Novembro

O que significa, para si, enquanto bastonário da Ordem dos Advogados de Angola (OAA), a indicação do país para albergar, pela primeira vez, uma conferência da Sociedade dos Advogados da SADC e, em paralelo, uma reunião da Assembleia Geral, um dos órgãos sociais da organização que congrega advogados individuais e associações e ordens da referida classe profissional dos 16 países da África Austral?

A presença, em Luanda, de representantes das 16 Ordens de Advogados da SADC reveste-se de um grande simbolismo, porquanto Luanda passa a ser  a capital da advocacia da África Austral, entre os dias 18 e 22 de Setembro, o que  traduz, no nosso entender, a importância que as associações congéneres de advogados passaram a atribuir à Ordem dos Advogados de Angola, tendo em conta o seu engajamento nas actividades da associação mãe da região Austral de África, a SADC Lawyers Association (SADC-LA).

 

Por que razão o país não albergou, em 2020, já que, até onde sei, lhe havia sido entregue esta responsabilidade, na conferência do ano anterior, realizada no Zimbabwe?

O motivo principal da não realização nesse ano da conferência em Luanda foram as medidas de prevenção e combate à pandemia da Covid- 19.

 Como entender o facto de Angola nunca ter albergado antes uma conferência e, também, uma reunião da Assembleia Geral da SADC Lawyers Association, como é conhecida, em inglês, a organização dos advogados da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral?

Não há uma única justificação. Mas, é um erro muito grande as associações profissionais fecharem-se ao exterior. Os efeitos da "não cooperação internacional"  são muito prejudiciais para os associados, para as associações e para os Estados.

 

Como Angola se preparou para receber os dois principais eventos anuais da Associação dos Advogados da SADC?

Foi feito um esforço muito grande a todos os níveis. Tudo foi pensado ao pormenor. Só para exemplificar, cerca de 100 advogados da República Democrática do Congo foram recolhidos por autocarros da transportadora Macon, em Kinshasa e Matadi, com destino ao Luvu e, depois, a Luanda.

 

A República Democrática do Congo é o país que vem com a maior delegação à Conferência Anual da SADC-LA?

Sim. A RDC vem a Luanda com cerca de 100 advogados.

Como tem sido hábito, a cerimónia de abertura da Conferência Anual da SADC-LA é presidida pelo Chefe de Estado do país anfitrião, algo que, em Angola, não vai, provavelmente, acontecer, por estar o Presidente João Lourenço em viagem ao estrangeiro. Caso seja representado, na cerimónia de abertura, o que gostaria de ouvir, de um eventual discurso governamental, em matéria ligada à integração regional?

Dada a qualidade e diversidade das entidades convidadas para esta conferência, não me restam dúvidas de que todos gostaríamos que fossem abordadas questões como a mobilidade dos cidadãos e bens no espaço da SADC. Outra questão tem a ver com a criação do Banco de Desenvolvimento da África Austral.

 

Uma vez que qualquer lema deve ser encarado como um convite à reflexão permanente, na sua opinião, que impacto espera que venha ter o lema para a conferência deste ano na relação entre o poder judicial e a sociedade?

Sem me ater muito às questões de fundo a serem discutidas, gostaria, simplesmente, que recordássemos das principais questões que motivaram a realização desta Conferência. O lema  "Independência dos advogados e juízes para o desenvolvimento sustentável da democracia na região Austral” tem sido recorrentemente debatido. Ao reflectirmos, mais uma vez, sobre o assunto, somos  obrigados a formular soluções que se enquadrem no contexto africano e que não ignorem as realidades sociopolíticas da África Austral. Espero que as deliberações da Conferência de Luanda nos conduzam a conclusões para alterar o status quo.

 

Em 2019, o Dr. Luís Paulo Monteiro havia anunciado que a direcção que dirige estava a trabalhar num processo de internacionalização da advocacia nacional a nível da SADC, tendo como foco a promoção de iniciativas no domínio das formações jurídicas e assessorias voltadas para os contratos internacionais. O que é que foi feito, até agora?

Conseguimos, de lá para cá, ter um representante na cúpula da SADC-LA. Advogados angolanos participaram em formações e treinamentos na África do Sul, Zâmbia e Zimbabwe. Recentemente, a Ordem dos Advogados de Angola foi convidada a observar as eleições no Zimbabwe.

 

O domínio de línguas estrangeiras é, julgo eu, essencial para um advogado negociar contratos internacionais. Como está a advocacia angolana em termos de proficiência em línguas estrangeiras?

Estamos a dar os primeiros passos. Ainda não é o desejável, mas estamos muito melhor compreendidos nesta temática.

 

Em Angola, o exercício da advocacia está reservado aos cidadãos nacionais titulares de um curso superior de Direito e, excepcionalmente, aos estrangeiros licenciados em Direito em Angola, desde que, nos seus respectivos países, os licenciados angolanos, em igualdade de circunstâncias, gozem do mesmo direito. Em que países estão angolanos a exercer advocacia?

Temos advogados angolanos inscritos nas Ordens de advogados da Nigéria, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Portugal e Brasil.

 

Os advogados da região Austral do continente africano não deveriam exercer em qualquer dos 16 países da comunidade? Ou seja, a mobilidade de advogados na região não deveria ser um imperativo, no âmbito da agenda de integração regional?

É para lá que se encaminham os pensamentos dos advogados da região. Somos mais de 100 mil.

A nossa Lei da Advocacia já precisa de ser actualizada e, se disser que sim, em quais pontos, por exemplo?

A Lei da Advocacia e toda a legislação complementar. Por exemplo, Os Estatutos da Ordem dos Advogados de Angola estão desactualizados e precisam de ser revistos, em matérias como o alargamento das incompatibilidades.

 

Contratar um advogado pode ser uma missão impossível, para muitos angolanos, a julgar pelos elevados honorários cobrados por advogados. Em Angola, os honorários dos advogados não estão regulados?

Não é bem assim. Primeiro, os honorários devem ser saldados em dinheiro e sujeitos a um ajuste prévio, entre o cidadão e o advogado. Na fixação dos honorários, deve o advogado proceder com moderação, atendendo ao tempo gasto, à dificuldade do assunto, à importância do serviço prestado, às posses dos interessados, aos resultados obtidos e à praxe do foro e estilo da circunscrição judicial. Todos os cidadãos que não estiverem de acordo com o valor dos honorários cobrados por um advogado devem dirigir-se à Ordem dos Advogados de Angola e solicitar um laudo de honorários.

 

Sobre o assunto relativo à pergunta precedente, qual é a visão da actual direcção da Ordem dos Advogados de Angola e, também, da Associação dos Advogados da SADC?

Todos os cidadãos que não tenham posses (financeiras), para pagar os serviços de um advogado, devem dirigir-se à Ordem dos Advogados e expor a situação. Actualmente, a Ordem dos Advogados de Angola acompanha mais de 19.500 cidadãos carenciados, no âmbito da assistência judiciária. Em alguns países da SADC existe um mecanismo chamado de "advocacia pro bono”, através do qual os escritórios de advogados dedicam, voluntariamente, uma percentagem do seu atendimento a causas sociais.

 

Em Angola, a advocacia não é equiparada a uma actividade comercial, daí a proibição do recurso à publicidade por parte dos advogados. Qual é a sua opinião sobre o assunto: é possível haver um dia mudança de regra?

O importante a reter é que os advogados podem fazer publicidade informativa. É considerada publicidade informativa a colocação de um site na Internet que apenas refira os nomes dos advogados, a sua especialidade e o endereço de escritório. Não constitui, também, publicidade o uso em publicações da simples menção do nome do advogado, do endereço do escritório e de horas de expediente.

 

Como o senhor bastonário enxerga, como direito humano fundamental, a igualdade de género na advocacia?

Na Ordem dos Advogados de Angola 37 por cento dos inscritos são mulheres. A Ordem dos Advogados de Angola tem, actualmente, inscritos 10. 524 associados.

 

A África do Sul é o país da SADC com o maior número de advogadas...

A África do Sul tem cerca de 30 mil  advogados. Angola tem 10. 524 advogados, sendo 5.661 advogados [efectivos] e 4.863 advogados estagiários.

 

No âmbito da defesa da igualdade de género, a Ordem dos Advogados de Angola tem feito algum trabalho, junto das instituições académicas, no sentido de atrair mais mulheres para a advocacia?

A advocacia é uma profissão liberal que requer muitos custos para a sua instalação e exercício. A opção por esta profissão é voluntária.

 

A qualidade do candidato a advogado é, desde 2020, avaliada num exame nacional, quando, anteriormente, era avaliada por via de um período de estágio de 18 meses, que era passível a uma prorrogação por igual período. O que mudou com o exame nacional?

O exame nacional de acesso à advocacia trouxe muitos benefícios para a sociedade, para a Ordem dos advogados de Angola e para os candidatos. Sente-se na sociedade  que os cidadãos têm procurado e confiado as suas causas com maior confiança aos advogados. A Ordem passou a organizar melhor o processo interno de auto-regulação, utilizando as estatísticas do exame nacional. Por exemplo,  sabe-se  que, durante o ano de 2023, a Ordem  tem para inscrever 2.523 estagiários. Por conseguinte, tem de  ter um número mínimo de 250 advogados patronos disponíveis para acompanhar os estágios e preparar turmas para  formação  (curso) de três meses durante o tirocínio. Cada patrono só pode acompanhar o estágio de até 10 estagiários. Por sua vez, os  candidatos para serem admitidos viram-se na obrigação de  estudar matérias sobre ética e deontologia profissional, que não são ministradas nas Faculdades de Direito. O Estado, se quiser saber como está a  qualidade dos cursos  de Direito ministrados  em Angola, já pode solicitar à Ordem informação sobre a cotação das Faculdades. Como vê, entre outras,  são inúmeras as vantagens do exame nacional da Ordem.

 

A Covid-19 provocou, em todo o mundo, um grande impacto na vida laboral, com o surgimento de novos métodos de trabalho. Sabe-se que, em vários países, como a África do Sul, por exemplo, a Covid-19 forçou o sistema judicial a abraçar a era digital. O senhor é favorável ao estabelecimento de audiências de julgamento virtuais?

Para lá caminharemos. Aliás, é uma promessa que consta das políticas a empreender no sector da  Justiça. Os benefícios são inúmeros, principalmente, em matérias como a celeridade processual. A morosidade processual é a principal causa da crise da Justiça.

 

Foi no seu primeiro mandato em que se registou a maior presença de advogados angolanos numa conferência da SADC Lawyers Association. Trata-se da conferência realizada, em 2019, no Zimbabwe, para onde viajou uma delegação integrada por 21 advogados. Há uma razão especial para este facto?

Fez parte de toda a estratégia montada  que elevou, hoje, Luanda a capital da advocacia da África Austral.

 

Qual é a mentalidade que existe entre os advogados angolanos sobre a existência da SADC Lawyers Association e a importância que é conferida à organização regional de advogados?

Gostaria de poder responder a esta interessante pergunta depois de saber o resultado da troca de experiência entre os advogados angolanos e os seus pares, na conferência de Luanda.

 

O Tribunal da SADC, uma estrutura criada, em 2006, para julgar crimes locais e transfronteiriços, está suspenso, desde 2010, por decisão dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral. Qual é a visão da SADC Lawyers Association em relação à matéria?

Não faço parte dos órgãos sociais da SADC-LA. Logo, não poderei me pronunciar como tal.

 

Em Angola, a advocacia é uma actividade profissional largamente atractiva em termos de remuneração?

A advocacia é uma profissão que requer muito trabalho e persistência.  Só os resilientes se mantêm nela. Em Angola, temos um grande número de advogadas e advogados que vivem da advocacia.

 

Embora não faça parte de nenhum órgão social da SADC-LA, como magistrado forense não tem uma opinião formada, que possa partilhar com os leitores do Jornal de Angola, sobre a suspensão do Tribunal da SADC?

O Tribunal da SADC foi suspenso após cinco anos de funcionamento, isto é, em 2010, por decisão  dos Chefes de Estado  e  de Governo  da organização,  com a expectativa de voltar a funcionar 12 meses depois. Desde então não houve pronunciamento político dos Estados da região sobre o andamento da questão. Penso que é altura de se fazer a revisão dos estatutos, atribuições e competências do tribunal da SADC para que volte a funcionar. A  suspensão "ad aeternum" das actividades do Tribunal da SADC deixa transparecer que os governos da África Austral não estão comprometidos com a promoção dos direitos humanos, da boa governação e da democracia, assim como com o combate ao crime. É preciso mudar essa imagem. E mais: A falta do tribunal regional da SADC, que julgue violações dos direitos cometidos pelos próprios Estados na África Austral, é um obstáculo aos países para promoverem  os princípios difundidos universalmente, presentes na Carta da ONU, no Protocolo da SADC e demais tratados e nas  constituições dos Estados-membros.

 

Com uma população estimada em mais de 200 milhões de habitantes, a África Austral só tem um pouco mais de 100 mil advogados no activo? O défice de advogados não fragiliza o Estado Democrático de Direito e a cidadania?

Advogar é interceder em favor de alguém. Democracia significa  "poder do povo” ou "governo do povo”. Seguindo esta lógica, significa dizer que quanto menos advogados existirem numa comunidade de pessoas, menos defensores de direitos intercedem por ela.

 

A Administração da Cidade do Kilamba promoveu, há dias, uma Feira Jurídica, com consultas jurídicas prestadas por escritórios de advogados, algo que tem acontecido também noutras partes do país. Isso não é uma experiência de "advocacia pro bono”?

É exactamente isso a "advocacia pro bono”, aquela  que promove a inclusão dos menos favorecidos. É  a prestação gratuita de  serviços jurídicos de forma organizada em favor de instituições sociais sem fins económicos e aos seus assistidos, sempre que os beneficiários não dispuserem de recursos para a contratação de um  profissional.

 

É raro haver, numa ordem profissional, apetência de algum bastonário em actividade pela continuação no cargo, por via da alteração dos Estatutos. No caso da OAA, nunca se levantou a possibilidade de aumento do número de mandatos?

Penso que seis anos é tempo suficiente para se realizarem as promessas constantes do programa eleitoral. Veja o caso do meu mandato (2018/2023). Implementámos as representações da Ordem em todo o país; implementámos o exame nacional de acesso à advocacia; organizámos o sistema de assistência judiciária em todo o país, acompanhando, presentemente, mais de 19.500 cidadãos, e, como você referiu, internacionalizamos a Ordem, tornando Luanda na capital da advocacia da África Austral, pela primeira vez.

 

 Que novidades defenderia, para uma eventual alteração dos Estatutos, por exemplo, na matéria relativa à necessidade de alargamento das incompatibilidades?

O alargamento das incompatibilidades aos deputados à Assembleia Nacional. Enquanto representantes de um órgão de soberania, não deviam exercer advocacia.

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