Opinião

Cabeçada, uma arma de combate

Madrugada de um dia qualquer, a meio de Dezembro do ano vinte vinte. Minga, nome de carinho atribuído pelo pai e, mais tarde, adoptado pelo marido, desperta completamente suada.

14/03/2021  Última atualização 08H25
O motivo, inicialmente associado à falta de energia eléctrica, era pior: na ausência do cônjuge, cujo destino incerto indicava ter passado a noite em casa da jovem que há muito retirava a paz à esposa, os filhos do casal, de 6 anos (o menino) e 4 (a menina) dormiam na cama dos pais.                
Domingas, a Minga, despertou no meio dos seus rebentos e logo se apercebeu que algo estava errado. Com um gesto peculiar às mães, passou as mãos pelas testas dos meninos e percebeu que ambas estavam escaldantes.           
   
Carregou na tecla "chamar” do seu telefone, no contacto em que lia: "Marido”. Sem sucesso. "O número marcado está desligado ou fora da área de cobertura da rede”, ouvia-se na mensagem automática de uma conhecida e, ultimamente, des(apreciada) operadora de telefonia móvel. A dona da voz que dá vida ao recado automático, sequer imagina o efeito que tal mensagem tem na psique de algumas esposas, namoradas e amantes. 
         
Derrotada na primeira tentativa de conseguir ajuda para levar as crianças ao médico, mas determinada a fazê-lo a qualquer custo, a mãe abandona o leito para fazer uma higiene básica. Veste-se, troca a roupa das crianças e coloca a menina nas costas. O menino, pelas próprias pernas, acompanha a mãe até à vizinha Das Dores, que prontamente ruma, com a amiga dos segredos, ao posto médico mais próximo. Nenhuma das duas leva dinheiro algum para análises ou material de saúde, caso lhes seja solicitado.       
                                   
Mas Das Dores é tia de um jovem enfermeiro, que atende as crianças, ele encaminhando-as ao médico sem cobrar um único Kwanza.                     
O diagnóstico para ambos é o mesmo: gripe. De regresso a casa, sem dinheiro para os medicamentos, recebe uma lâmina de paracetamol da amiga e administra meio comprimido a cada criança.     
                     
Deixa-os com Das Dores e ruma à Cidade do Kilamba, em busca do pão de cada dia. Chega ao destino com os primeiros raios de sol a invadirem o lugar em que diariamente se senta, na rua, debaixo de uma Acácia Rubra, ladeada das colegas de ofício. Nem sempre consegue levar dinheiro para casa.    
                                               
Mas, nos dias em que limpa dois a três apartamentos regressa, satisfeita, para junto da família. Nesse dia, particularmente, precisava de dinheiro para comprar a medicação prescrita pelo medico às crianças. Uma escola ao lado do ponto em que trabalha é o local em que deixa, no fim de cada dia, em mãos do segurança, os seus utensílios de limpeza: balde, panos para o pó e chão, detergente e vassoura.         
                                      
O balde serve, igualmente, de assento. À medida que vão chegando as colegas ao posto de trabalho apercebe-se que o seu nome está arrolado numa fofoca do dia anterior, desde o momento em que fora mais cedo para casa.        
   
Minga era acusada de ter revelado o segredo de uma colega que estava de namorico com um dos moradores do Kilamba, a quem ambas limpavam, frequentemente, o apartamento. A colega, Paulette, era casada, mas cedeu à tentação da carne e do dinheiro, seduzida pela proposta indecente do cliente, que ofereceu o dobro do pagamento da limpeza, para usufruir, também, do carinho e da atenção da funcionária da limpeza. O segundo erro da "seduzida”, depois de ter cedido, foi ter revelado a "aventura” às colegas, que estranharam o facto desta não mais ter regressado ao posto de trabalho, naquele dia. 
                                
Minga, inocente, tenta explicar que nada tem a ver com o facto de aquela conversa ter chegado aos ouvidos da cunhada da aventureira, que por sua vez contou ao marido desta, seu irmão.                     
                       
Paulette acusa a mãe das crianças adoentadas e demonstra a intenção de agredi-la. Na ausência da acusada, que largou mais cedo no dia anterior, todas limparam as mãos e convenceram Paulette que a surra que apanhou do marido foi provocada por Minga. "Minha irmã, não tenho nada a ver com a tua vida, com quem namoras ou deixas de namorar. Eu não quero confusão, os meus filhos estão doentes, lhes deixei com a vizinha, só quero trabalhar para comprar medicamentos”, defendeu-se.

A acusadora, cheia de ódio, agride a colega, que se defende e corresponde aos empurrões e chapadas sofridos. Minga, corpulenta, traja vestido verde e bolero branco. Única menina no seio de cinco irmãos, cedo aprendeu a prender os pés no chão para não ser derrubada numa luta corporal. Com a xará, irmã mais velha do pai, aprendeu a dar a cabeçada que desferiu na adversária.  O barulho da briga atrai moradores, que assistem à desavença, das varandas. Na rua, uns tentam tirar Minga de cima de Paulette, outros zombam da segunda, que quer lutar mas é fisicamente inferior à colega. Há, ainda, um terceiro grupo, de jovens, que filma a contenda para partilhar nas redes sociais. São chamados "Geração dos Likes", pensou instantaneamente a cronista. "Vou te estragar toda, hoje. Você não luta comigo”, diz a autora da cabeçada, entre outras palavras menos urbanas.           
                    
"Sua falsa, não tinhas nada que contar ‘na’ minha cunhada. Tens inveja de mim, mas essa luta não acabou. Isso não vai ficar assim”, prometeu a vítima da cabeçada, cujo cabelo foi desmanchado e boa parte arrancado pela opositora.
"Não liga a essa maluca, tem demônio. Já ganhaste a luta, não lhe responde mais. Evita só e vai embora para casa cuidar dos teus filhos”, aconselha uma colega a Minga. 

Ao lado, Paulette arranca um galho de uma acácia e, ignorando todos os conselhos das colegas, surpreende Minga com uma paulada na cara. Minga cai, Paulette sobe para cima dela e agride-a com bofetadas. Várias pessoas separam-nas. Paulette mostra satisfação por ter conseguido dar o troco. Minga sacode o casaco branco, manchado com a areia húmida do jardim.  
                   
As colegas a acompanham à escola em que guarda o material de trabalho. O amigo segurança permite a sua entrada para lavar-se. No lado oposto, outro grupo convence Paulette a acabar com aquela briga. Segundo as colegas, houve um empate. "Eu não vos disse que ela não me bate? Eu também cresci no bairro, não deixo qualquer uma me bater assim, tipo criança. A próxima vez ela vai pensar bem antes de ser fofoqueira”, ouve-se a aventureira dizer. Minga e o seu grupo decidem sentar-se debaixo de uma árvore mais distante, para evitar brigas com Paulette. Lá, aparece, finalmente, um cliente. O grupo prioriza a mãe das crianças, que entra para a viatura do morador do Kilamba, deixando para trás todos os conflitos em que esteve envolvida naquela manhã. Não se sabe, ao certo, se o valor cobrado para a limpeza do apartamento chegou para comprar a medicação das crianças. Mas, no dia seguinte, Minga regressou ao mesmo local, mais tranquila, sorridente e bem-disposta.              
                  
Quem a visse assim, jamais imaginaria que, no dia anterior, usou a sua principal arma de combate, a cabeçada, um "instrumento de combate” muito comum entre os lutadores angolanos, para neutralizar a sua adversária.                              
Resta saber se a cabeçada é uma arma branca, preta, vermelha, amarela ou, simplesmente um arco-íris. Verdade seja escrita: a julgar pelo estado em que deixa a vítima, quem sofre uma cabeçada, vê a vida e, até, as estrelas, coloridas. Ainda que em plena luz do sol ardente.

Edna Cauxeiro

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