Reportagem

Um chão que dá tudo à espera de incentivos

Há nos nove municípios do Bié iniciativas que devem ser encorajadas, alargadas e alvo de incentivo em homenagem ao processo de diversificação económica. Há produção em qualidade e quantidade a considerar que esbarra na falta de estruturas de suporte. Uma exposição das potencialidades agrícolas dos nove municípios é expressiva, mas, mais do que isso, demonstrativa de que "o meu chão tem tudo. A fome pode afugentar e minha terra desenvolver".

29/10/2019  Última atualização 10H54
José Cola | Edições Novembro

A pequena exposição, no Instituto Politécnico do Cuito, é eloquente e traz à luz admiração e esperança. Mas a falta de incentivos limita os níveis de produção e expansão para outros segmentos, como seria o emergir de pequenas indústrias transformadoras e medidas eficazes de escoamento, que serviriam de apoio à agricultura familiar.

"O meu chão tem tudo". É esta a forma como a nossa interlocutora começa a conversa com o Jornal de Angola, numa clara referência à música de Dom Caetano, que, para Elisa da Graça, responsável pelo controlo de 12 cooperativas no município do Andulo, cidade e município da província do Bié, com 10 316 quilómetros quadrados e cerca de 319 mil habitantes, nada tem de inverdade. A música dá grande ênfase a uma realidade que ninguém desconhece, mas que poucos aproveitam.
A exposição, em pleno Instituto Politécnico do Bié, é pequena no espaço, mas gigante e rica no conteúdo e no modo como algumas iniciativas de cooperativas locais ganham corpo, por sua conta e risco, sem esperar por crédito algum. Há, nos municípios do Bié, produção de quantidades consideráveis de arroz, trigo, café, milho e feijão. Mas há também produção séria de mel, sabão, madeira e diamantes. As iniciativas são privadas e inexpressivas, porém, re­­presentativas do que pode vir a ser feito em larga medida com maior incentivo, criação de infra-estruturas, pequenas indústrias transformadoras, equipamentos de descasque e de empacotamento de arroz e trigo.
Na exposição, no Instituto Politécnico do Bié, estava uma produção local de sabão, feito com essências naturais, soda e óleo de palma, arroz ensacado por cooperativas do Andulo e mel, devidamente engarrafado, proveniente de vários municípios, com realce para o Cuemba. Havia, na exposição, tubérculos, hortícolas, grãos e frutos, produzidos em quantidades consideráveis nos municípios do Bié. Mas havia também potencialidades minerais vindas do Chitembo, diamantes, naquele município bieno, repleto de florestas, água e campo.
Mas é lá também onde, este ano, 100 toneladas de trigo apodreceram e foram parar ao lixo. É lá ainda onde 100 camponeses das comunas de Soma-Cuanza, Malengue, Cachingues, Mumbwé, Mu-tumbo e Malengue, envolvidos nessa produção, vivem “o trauma colectivo” provocado pelas perdas, ao ponto de pensarem em desistir, num cenário sem celeiros, nem equipamentos. O quadro é dramático e já dura há três anos. O trigo foi parar ao lixo. Milho, feijão, soja, batata e outros tubérculos correm um sério risco de lá irem parar também.
O Bié é uma província terna. Talvez por isso tem a forma de coração. Coincidência geográfica ou não, está no centro de Angola. Tem o Centro Geodésico em Camacupa. É no Bié, em plena Nharea, onde estão as maiores extensões de pinheiros, acácias, cedros e eucaliptos.

Chitembo, diamante e campo
A Cooperativa Chitembo Tchalaza Diamond foi a primeira, no município, a ter o titulo de exploração. A cooperativa, que procurou legalizar-se para operar na exploração diamantífera, tem tido sucesso, embora chegasse a conhecer uma paralisação durante oito meses, aquando da Operação Transparência. O mesmo aconteceu com outras seis cooperativas diamantíferas, entretanto reabertas, nos municípios da Nharea e Andulo. A Operação Transparência foi lançada em Setembro de 2018, para combater a imigração irregular e a exploração e tráfico ilícito de diamantes.
"É estarmos legalizados. Foi, em função disso, que nos tornámos nos primeiros a receber o titulo de exploração", disse ao Jornal de Angola Georgina Nunda, administradora da cooperativa.
Durante os oito meses em que a cooperativa andou paralisada, os equipamentos ficaram em mau estado. Mas nem por isso se resignaram. Segundo a responsável, a co-operativa está a normalizar as operações e marcam-se agora passos positivos numa combinação que não pretende deixar para trás a responsabilidade social e respeito pelo meio ambiente.
O chefe do Departamento de Prospecção e Operações da Cooperativa, Domingos da Silva Luís, lembrou que, tão logo alguns processos estejam ultrapassados, a cooperativa poderá entrar para o mercado da transformação dos diamantes. É apenas uma perspectiva. Pode ou não acontecer. A cooperativa vende os seus diamantes à Sodiam.

Produção e auto-suficiência
Chitembo é composição vital de diamante, floresta (árvores ombango, ossesse e omanda), campo e nascente do lendário Kwanza, a partir do Mumbué, a 230 quilómetros do Kuito. Chitembo está a 150 quilómetros a Sul do Kuito e é cidade desde 1965, cujas festas são celebradas a 14 de Dezembro, dia da elevação à cidade. É terra de cerimónias tradicionais e culturais, que, não raro, manifestam-se ao ritmo das danças Chilhembe, Macopo, Kianda, Kodoa e Macopo.
Ao Jornal de Angola, o director municipal da Agricultura no Chitembo, Agostinho Epalanga, lembrou que os municípios do Bié têm potencial para a auto-suficiência no que respeita à produção de alimentos, dando o inevitável passo para a auto-suficiência.
"No Bié, não há fome. Temos produção para que isso não ocorra. Hoje, olhamos para a nossa produção, chegamos à conclusão de que no Chitembo a produção não serve apenas para alimentação e comercialização, mas serviria também para a indústria”, disse.
Agostinho Epalanga lem-brou que, nas feiras, geralmente realizadas em Agosto, têm sido vistas as potencialidades de cada município. "A chuva preocupa-nos. Isso levar-nos-á a recorrer aos sistemas de irrigação, que ainda nem todas as cooperativas possuem”, realçou o responsável, que falou, igualmente, do mel produzido pela cooperativa Nascente do Rio Cuanza.
O mel produzido pela cooperativa é tratado, conservado e engarrafado no município.

À espera de indústrias de transformação

A pequena exposição é exemplar e, de alguma forma, mostra os passos a serem dados para o caminho da auto-suficiência alimentar, numa lógica de que os municípios mais produtivos assistam aqueles que, por desigualdades derivadas da natureza, produzam menos ou mesmo nada.
Elisa da Graça, representante da Agricultura no Andulo, lembrou, a propósito do aumento da produção, que, desde a altura em que foi melhorada a entrega de inputs agrícolas e dentro do tempo regular, a produção começou a aumentar, embora seja ainda preciso optimizar todos estes processos. A juntar-se a estes factores estão as orientações que os técnicos do Instituto de Desenvolvimento Agrário (IDA) têm dado sobre como melhorar os métodos de cultivo, o que tem levado ao aumento da produção, ou seja, colhe-se mais num hectare de milho hoje do que antes.
"O que pedimos é que se preste mais atenção à agricultura familiar, porque realmente ajuda no próprio desenvolvimento das famílias".
Para Elisa da Graça, é preciso aliar à produção local, pequenas indústrias transformadoras.
"Era ouro sobre azul se tivéssemos indústrias transformadoras no Andulo e em outros municípios, a acompanhar a produção agrícola. Houve o lançamento de uma iniciativa de pequenas indústrias transformadoras do Andulo, mas até agora não arranca, já lá vão seis meses".
Elisa da Graça refere que os produtos que os agricultores conseguem conservar e ensacar resultam de iniciativa privada dos camponeses, num mercado em que os sacos têm de ser encomendados a preços nem sempre favoráveis. Apesar disso, lembrou, os camponeses querem dar esse passo, querem desenvolver.
Actualmente, o município controla 12 cooperativas legalizadas, enquanto várias outras aguardam por legalização, num território com forte tradição na produção de milho, soja e tubérculos em escalas que mereceriam suporte industrial, segundo Elisa da Graça.
"É impensável falar-se em fome no Andulo, numa altura em que as cooperativas querem dar outro passo: transformar os produtos nas pequenas in-dústrias por instalar", disse.
As cooperativas querem ver o aumento na oferta de inputs agrícolas e Elisa elenca os obstáculos que têm posto em causa o processo de produção: a transportação ou escoamento de produtos para outras áreas, neste momento, é caro e difícil. A comuna de Calussinga, onde existem cinco cooperativas, que produzem cada uma menos de 20 toneladas de milho, feijão e soja, é apontada como exemplo.
Para escoar estes produtos tem sido um problema. "As lavras estão distantes e o transporte do campo para a sede municipal é, na maior parte das vezes, um enorme tormento psicológico", conta.

Cunhinga busca soluções para conservar e escoar

Cunhinga, um município da província do Bié com 1509 quilómetros quadrados e cerca de 69 mil habitantes, é limitado a Norte pelos municípios de Andulo e Nharea, a Este pelo município de Catabola, a Sul pelos municípios de Kuito e Chinguar e a Oeste pelo Bailundo e Mungo. Até 1975, a vila chamava-se Vouga. Emília de Fátima, representante da Agricultura, fala das potencialidades do lugar, marcado pela grande produção de ananás, feijão, batata-rena, repolho e alho. Apesar da grande quantidade de feijão, o preço do quilograma está a custar 600 kwanzas.
Segundo Emília de Fátima, a procura tem aumentado consideravelmente nos últimos meses, mas não é interna. São outras províncias que buscam, no Cunhinga, grandes quantidades de feijão para revender em outros lugares. Apesar da considerável produção, que varia entre 10 e 15 toneladas por hectare, Emília de Fátima considera necessário aumentar o nível de fornecimento de adubos. O município produz entre 20 e 25 toneladas de batata e entre 25 e 30 de ananás.
Para a responsável, a dor de cabeça tem sido a conservação das gigantescas quantidades de produtos que podem apodrecer dois ou três dias depois da colheita.
"Nem sempre é possível vender tudo. Além do problema da estrada que liga a comuna do Belo Horizonte, no município do Cunhinga, 70 quilómetros a Norte da capital da província do Bié, à sede e outros municípios", disse.
A comuna do Belo Horizonte, com uma população estimada em 20 mil habitantes, na sua maioria camponeses, produz, tradicionalmente, milho, feijão, mandioca e gergelim. As vias, segundo a responsável, nunca mais estiveram em boas condições.
A pequena exposição narrada no início do texto, cheia de produtos agrícolas, alguns dos quais bem ensacados (arroz, feijão, soja, trigo e cevada) e outros conservados em potes de vidro devidamente rotulados (mel, doces de morango e polpa de toma-te), sabão feito com óleo de palma, foi objecto da visita do Chefe de Estado, João Lourenço, no dia em que falou para os jovens da província, a 19 de Outubro.

Chinguar: Agricultura e indústria devem casar-se

Osvaldo Cangombe, engenheiro agrónomo e director municipal da Agricultura no Chinguar, um município da província do Bié com 3054 quilómetros quadrados e cerca de 299 mil habitantes, defende que "agricultura e indústria devem casar-se", em nome do desenvolvimento do país. Porque, além de evitar que produtos sejam deitados, por apodrecimento, o enlace promoveria a diversidade, na oferta.
O Chinguar é conhecido pela produção de batata-rena, o seu cartão de visita, não só pela qualidade, mas também pela quantidade. Produz, normalmente, grandes quantidades, segundo o director muni-
cipal da Agricultura. Por exemplo, no sector familiar, está a ser possível tirar dez a 15 toneladas de batata-rena e de 4 a 6 toneladas de milho por hectare. Com isso, está a ser possível combater a fome e a pobreza no seio das famílias camponesas. Além dessa cultura, o Chinguar é também grande produtor de cereais, sem olvidar a produção de tubérculos e hortícolas. É bom notar que a vida faz-se nos municípios mesmo quando quase tudo está em falta em termos de estruturas de suporte.
"O que falta, para que migremos da agricultura de subsistência para uma agricultura que case com a pequena indústria transformadora, são políticas públicas inovadoras e voltadas para o apoio ao cam-po. É preciso que surjam, nos nossos municípios, pequenas indústrias transformadoras da nossa batata, tomate, maracujás, morangos, milho e trigo", disse Osvaldo Cangombe.
Para o responsável, "só com isso teremos estabilidade e certeza de que poderemos produzir sem o receio de meter grandes quantidades no lixo, principalmente, quando há enormes excedentes. Isso não é bom para ninguém, não é bom para as famílias camponesas, que são afectadas, não só material, mas também, psicologicamente. Se um dia fossem instaladas pequenas indústrias transformadoras nos municípios, seria muito bom, principalmente para o Chinguar", explica.