Reportagem

Doze horas de intenso trabalho no mercado dos Kwanzas

Localizado no município do Cazenga, em Luanda, o mercado dos Kwanzas é conhecido pela variedade de produtos comercializados e preços considerados acessíveis pelos vendedores e compradores

28/11/2023  Última atualização 07H25
Mercado atrai clientes de todos os cantos da cidade capital, por ser um dos pontos de escoamento de mercadorias provenientes das províncias do Zaire, Uíge e Bengo © Fotografia por: Raimundo Biya | Edições Novembro
Logo à entrada vislumbra-se um cenário agitado. Vários vendedores procuram chamar atenção dos clientes para os seus produtos: "Arreiou, arreiou! Amiga pergunta, é de qualidade e a bom preço!”.

No meio da multidão era possível ouvir o som de buzinas, quer de taxistas como de mototaxistas, músicas de origem congolesa e do famoso estilo "Kuduro” e gritos dos lotadores a chamarem pelos passageiros. 

No interior do mercado encontram-se cidadãos provenientes de quase todas as províncias, mas há predominância de pessoas provenientes da República Democrática do Congo (RDC) e das províncias do Uíge e Cuanza-Sul.

O ponteiro do relógio marcava 12horas. A movimentação da população aumentava cada vez mais. Na fila dos alimentos era visível as vendedeiras de peixe escamarem uma quantidade elevada de peixe para os clientes, outras a embalar tomate, pesando quilos de fuba e outros produtos.

Enquanto alguns comerciantes facturavam alegres, uma mulher lamenta por não ter conseguido vender os produtos. "Desde às 6 horas não tenho quase nada. Espero que o dia melhore para poder comprar, pelo menos, o jantar. Nos dias bons até às 13horas já tenho o negócio quase todo despachado”, argumentava com as colegas.

 
Filhos formados com os lucros das vendas

Linda André, uma das vendedoras mais antigas do mercado dos Kwanzas, conta que conseguiu formar os filhos com os lucros das vendas. "É com este dinheiro que consegui formar os meus filhos e montar um empreendimento”, disse, com simpatia, enquanto atendia os clientes.

Vendedora de roupa usada há mais de seis anos, acrescentou que com as vendas garante o sustento da família, abriu um salão de beleza e construiu uma casa. "É possível viver do comércio. Tudo que tenho hoje é fruto deste trabalho. Inclusive a formação dos meus filhos”, sublinhou.

O trajecto de Linda André, do Zango III para o mercado começa às 5 horas da manhã. A sua actividade laboral arranca às 7horas, com a organização dos produtos para receber os primeiros clientes.

Apesar da distância, continua a vender no mercado sem sobressaltos. "Antes de ir para o Zango, eu vivia na Petrangol. Mas como já tenho muitos clientes e uma boa convivência com as colegas, por isso não vou para outro mercado”, acrescentou, reconhecendo que o local oferece condições para os vendedores.

"O meu sonho é de continuar a expandir o meu negócio, me tornar numa empresária de sucesso e gerar mais postos de trabalho para outras pessoas”, disse, orgulhosa.

 
Mestre "Manequim”

À volta da bancada de Pedro Canga, uma fila de pessoas espera que o técnico termine de consertar os seus aparelhos electrónicos. "Ele é bom no que faz, por isso não me importo de esperar”, comenta um dos clientes.

Mestre "Manequim”, como é conhecido, é natural do Zaire e vendedor no mercado há 23 anos. Sempre se dedicou a reparar aparelhos electrónicos, de onde obtém o dinheiro para sustentar a família.

Pai de oito filhos, diz que tem paixão no que faz  e não pretende trocar de profissão. "Penso em dar continuidade da minha formação e obter mais conhecimentos na área em que trabalho”, garantiu.

"Nesta profissão estou muito bem. Já consegui comprar seis carros e construir a minha própria casa. O objectivo agora é dar seguimento a minha formação para melhorar o meu trabalho e continuar a exercê-lo com maior qualidade e satisfazer os meus clientes”, salientou.

Nzunzi Madalena, vendedora de medicamentos tradicionais, natural da província do Uíge, conta que começou a ir com a mãe, no antigo mercado do Roque Santeiro, quando tinha apenas 12 anos, por falta de quem cuidasse dela e da irmã.

A técnica média de Enfermagem disse que ganhou gosto pelo negócio aos 18 anos e passou a substituir a mãe no mercado dos Kwanzas. "Sou vendedora há 12 anos. Aprendi a gostar o que faço. Com o dinheiro que ganho das vendas consigo dar o sustento aos meus seis filhos”.


Ganhar a vida com a venda de jóias

Makondanbuta José e Miguel Sungany, ambos originários da província do Uíge, comercializam jóias de ouro e prata, demonstram boa relação enquanto companheiros de trabalho.

Makondanbuta José, solteiro, técnico médio de Electricidade, reside no bairro Hoji-Ya-Henda e é vendedor do mercado há oito anos.

Diz que o negócio de jóias foi uma escolha perfeita para mudar de vida. "Através deste negócio consegui comprar um terreno e dois carros. Um dos veículos coloquei para fazer serviço de táxi e é uma outra fonte de renda para garantir o sustento da família que está numa outra província”, revelou.

Ao contrário de Makondanbuta José, Miguel Sungany é casado, pai de uma filha e vende no mercado há cinco anos. Disse que apesar dos riscos na cidade, sai de casa às 5horas e chega no local às 6horas. A jornada laboral termina às 16horas.

"O negócio é rentável. Por dia consigo vender 50 a 100 mil kwanzas nos dias em que há muita clientela”, acrescentou. Informou que desde que começou a vender, conseguiu obter a casa própria e realizar o seu casamento.

Aconselha os jovens a nunca terem vergonha de vender no mercado. "O importante é ter uma fonte de renda. O segredo é ter uma boa visão e não ilusão, fazer poupança e ter desejo de continuar a crescer”, sublinhou.


Engraxar sapatos para ajudar a mãe a ter um negócio

Osvaldo Pinto, 12 anos, deixou de estudar por não ter quem pudesse custear os seus estudos. "Desde então, tenho me dedicado a engraxar sapatos aqui, no mercado dos Kwanzas, com o objectivo de juntar dinheiro e comprar um negócio para a minha mãe”, conta.

Com um calção de cor preta, t-shirt preta, chinelas quase desgastadas, uma mochila nas costas e a caixa de ferramentas de trabalho nas mãos, Osvaldo Pinto revela maturidade de um adulto. Começa a abordar os clientes, demonstrando vontade de ganhar o dia.

Osvaldo Pinto vive no Belo Monte, no bairro Ângelo, com a mãe, o padrasto, ambos desempregados, e com a irmã de apenas oito anos. "O meu padrasto vive de biscates e o dinheiro que ganha não chega para custear as despesas de casa. Então decidi, por livre vontade, engraxar e ajudar a minha mãe a conseguir um negócio”, conta.

Acorda às 6 horas e trabalha até às 16 horas. Enquanto engraxava os sapatos castanhos de um cliente, de repente Osvaldo ficou tímido. "Fala para poderem te ajudar”, gritou-lhe uma  senhora ao lado, com uma banheira de laranja na cabeça.

Por dia, explicou, consegue levar para casa, contando com as gorjetas, o suficiente para o jantar e poupar para comprar o negócio para a mãe.

Com um sorriso nos lábios e brilho nos olhos, Osvaldo Pinto revelou que o seu maior sonho é voltar a estudar, formar-se e dar uma vida condigna para a irmã e a mãe. "Sei que o sacrifício de hoje vai gerar frutos amanhã”, declarou.


Preços baixos atraem clientes

Além da diversidade de produtos, organização, e serviços prestados pelos técnicos que reparam aparelhos electrónicos, preços acessíveis é o que tem atraído os clientes.

"Gosto de vir neste mercado por ser bem organizado. Tem áreas de frutas, frescos, materiais de construção, bebidas que pedem no alambamento, roupas, técnicos que consertam telefones, televisores, entre outros”, disse Margarida Paciência.

Outra vantagem, acrescentou, é que não precisa girar muito. Isso ajuda e permite que os clientes façam compras em curto espaço de tempo.

Para Magda Mafuta, o baixo custo dos produtos é o que a faz ir ao mercado dos Kwanzas. "Prefiro vir aqui porque os preços são acessíveis e sempre encontro tudo o que preciso”, afirmou.


Mais movimento no final do mês

Mateus Frederico carrega produtos das pessoas que vão fazer compras no mercado. Faz o trabalho vulgarmente chamado de roboteiro. Diz que o final do mês vem carregado de alegria, por ser o tempo que a maioria das pessoas recebe os salários. "No princípio de cada mês, o mercado tem mais movimento, as pessoas fazem muitas compras e consigo ter lucros consideráveis”, referiu.

Mateus Frederico, que trabalha há cinco anos como roboteiro, inicia a sua jornada laboral às 8 horas e cobra entre 500 e 1000 Kz por cada  carregamento, dependendo do peso da carga. Diariamente consegue entre três e cinco mil kwanzas.

Mateus Frederico conta que com o dinheiro que ganha paga a renda de casa, a energia eléctrica e o sustento da família. "Tenho três filhos e é com esse dinheiro que pago a escola dos meninos de 8 e 6 anos”, disse.

Pavimentação de todo mercado

O secretário do mercado dos Kwanzas, Michel Vemba, disse que um dos projectos em carteira  é a pavimentação de todo o mercado. "Queremos melhorar o estado da praça, principalmente por causa da chuvas”, sublinhou.

O responsável referiu que cerca de duas mil bancadas devem ser preenchidas com vendedeiras. Reforça que o mercado apresenta uma organização salutar. Há uma equipa que faz a limpeza todas as semanas e às segundas-feiras faz-se a limpeza geral.

"Temos dois tanques de água de 23 mil litros, porque ainda não temos água corrente no bairro. A reserva que fazemos serve para atender a demanda”, indicou.

Michel Vemba informou que as vendedeiras pagam uma taxa que varia entre 150 a 300 Kz/dia e uma outra de 100 Kz/dia, para a segurança das mercadorias. Os valores das taxas, acrescentou, são depositados na conta da Administração Municipal.

"Os produtos são guardados dentro do mercado. As pessoas que não pagam as quotas de segurança levam os produtos para casa. O pagamento da taxa às segundas-feiras é metade do valor pago nos outros dias, porque as vendedeiras não fazem vendas mas sim limpeza”, explicou.

O secretário esclareceu que para o uso dos banheiros paga-se 50 a 100 Kz, sendo entregue uma ficha para o uso diário.

 
Aulas de alfabetização

Michel Vemba informou que dentro do mercado existe uma sala de alfabetização. "Para além de ensinar os vendedores, damos algumas dicas sobre civismo e como evitar conflitos entre colegas”, disse, acrescentando que são igualmente dadas noções de educação financeira às vendedoras.

A parte interna do mercado, explicou, tem vários seguranças para manterem as devidas precauções no que diz respeito a eventuais desavenças.


Lotador de táxi sentia vergonha no início

No mercado dos Kwanzas encontramos lotadores de táxi, taxistas, moto taxistas, roboteiros (carregadores) e tantos outros profissionais que estão na luta para levar o sustento para casa.

É o caso de Aurélio da Rocha, lotador de táxi. Junto ao táxi "azul e branco”, de marca Jin Bei, chama os passageiros para a Cuca até ao São Paulo.

Aurélio da Rocha explica que começa a trabalhar a partir das 6 horas e há dias que fica muito fraco(pouco ganho).

Diariamente, conta, consegue três mil kwanzas, que serve para comprar o jantar e uma parte para a reserva. "Nos dias normais consigo guardar 1.500kzs e quando não tem muito movimento reservo 1000kzs e no final do mês posso conseguir ter 30.000kzs”, disse.

Aurélio da Rocha referiu que o valor que arrecada mensalmente serve para pagar a energia eléctrica, renda de casa e ajudar a pagar as despesas da filha. "Tenho uma filha de dois anos e para além de dar dinheiro à mãe dela, para ajudar com algumas despesas, pago também a formação para mim. Ainda não vivo com a mãe da minha filha, porque estou a fazer um esforço e criar as condições para a realização da apresentação e o alambamento”, garantiu.

Antes de ser lotador, disse, trabalhava na construção civil como ajudante de canalização. Com a falta de obras, foi convidado por um amigo para fazer parte de uma "placa” e passar a lotar para se ocupar com uma actividade.

Aurélio diz que depois de perder os pais, viu o sonho de estar formado adiado, encerrando o ciclo académico com a 9ª classe por falta de dinheiro. "Os meus pais pagavam a minha formação. Depois de morrerem, não apareceu mais ninguém para continuar a custear os meus estudos. Desejo continuar a estudar e sonho ter um emprego mais digno, mas as condições ainda não são das melhores”, admitiu.

Aurélio da Rocha conta que começou a trabalhar como lotador há três anos. No princípio, lembra, sentia vergonha, mas hoje ganha o dinheiro de forma digna.

Outro lotador é José da Fonseca, de 30 anos, e exerce a actividade há seis meses.  Diz que o trabalho que faz é para sobreviver. "Antigamente trabalhava como serralheiro. Abandonei o serviço porque me stressavam muito no chefe. Mas aqui na placa tive que me acostumar com o stress e entender os colegas”, salientou.

Sendo novo na actividade, José da Fonseca reconhece que os colegas têm ajudado bastante a manter firme. O dinheiro que faz é entregue aos companheiros, que fazem a partilha para beneficiar todos.

Diferente de Aurélio da Rocha, José vive com os tios, no Cazenga. Tem um filho, que vive em Malanje, com a mãe. "Conheci ela em Malanje e, depois de perder a minha mãe, tive que vir para Luanda para conseguir um trabalho, mas as oportunidades não foram das melhores”, lamentou.

A convivência com os colegas, disse, tem sido boa. "Procuramos nos compreender uns aos outros. As complicações no trabalho sempre existiram mas evitamos nos stressar e cada um faz o seu trabalho”, sublinhou.

 
Na estrada a partir das 4 horas da manhã

Quatro da manhã é a hora que Daniel Luciano sai de casa para ganhar o pão, sem olhar para os riscos que corre, para dar o sustento à família. É motorista há mais de dez anos.

"Tenho um chefe e presto contas a ele semanalmente, no valor de 75.000 Kz. Neste todo tempo de trabalho não tenho tido a sorte de ficar com um veículo um ano, o máximo é seis meses que fico com as viaturas. Por esta razão, não consigo ter o meu próprio carro”.

Reconhece que os desafios são enormes mas o objectivo é o sustento da família. "Dos valores que arrecado como taxista, consegui adquirir um terreno e construir a minha casa”, acrescentou Daniel Luciano, que faz um duplo trabalho como motorista e cobrador.

"Quando estou sem carro para conduzir, faço o trabalho de cobrador. Como filho de camponês, quando não tenho nem veículo para labutar, vou para o campo”, disse.

Daniel Luciano contou que parou a formação académica na 7ª classe e começou a trabalhar como taxista com 27 anos. "A formação é um dos objectivos. Quando as condições melhorarem, vou continuar a estudar”, garante Daniel Luciano, que está com 37 anos, tem duas mulheres e cinco filhos.

"As minhas esposas fazem negócio e são boas gestoras. Com o dinheiro que ganho do táxi consigo sustentar as duas famílias. Perdi a minha primeira mulher com quem tive uma filha, mas tenho duas actualmente”, revelou.


Mototaxistas pedem uma paragem fixa

Sentado na motorizada, esperando por passageiros, António Manuel, mototaxista do mercado dos Kwanzas, conta que diariamente consegue três a cinco mil Kwanzas. "Para além dos três mil Kz, que é o dinheiro do patrão, se eu conseguir fazer mais os outros valores, este será o meu lucro. Presto contas semanalmente ao dono da motorizada de 15.000 Kz”, salientou.

António Manuel garante com o dinheiro que ganha consegue ajudar em casa. "Conservo sempre algum dinheiro. Vivo com os meus pais e tenho que ajudar na alimentação da família e uma parte jogo kixikila para poder ter uma outra fonte de renda”, informou António Manuel, que não estuda por falta de condições.

"Parei na 8ª classe, mas agora, com esse trabalho que faço, vou voltar a estudar, no período pós-laboral, de modo a conseguir um trabalho melhor”, prometeu.

Jaime Pereira, outro mototaxista, que para além das viagens normais cobre distâncias mais cobrando entre 1.500 e 2.000 Kz por viagem, refere que os dias com mais rendimentos são os do final do mês.

Com esposa e cinco filhos, o desafio de Jaime tem sido maior do que do colega António Manuel. Jaime Pereira conta que com o dinheiro que ganha paga a renda de casa, sustenta a família e paga a formação dos filhos.

"Temos o sábado como o nosso dia, mas que também não compensa. Enfrentamos grandes desafios durante o dia. Graças a Deus tenho um patrão que entende as dificuldades que encontro ao exercer o trabalho”.

Durante o dia paga a ficha diária no valor de 200 Kz. "Muitas vezes não compensa porque o local onde estacionamos as motorizadas nunca são apropriadas e temos que remover sempre por causa da passagem dos outros veículos”, lamentou.

"Pedimos à administração do mercado para nos dar um lugar fixo para as nossas paragens. Onde estamos agora não é um lugar apropriado. Muitas vezes temos que tirar as motos por causa do congestionamento dos outros veículos”, apelou.

Jaime Pereira lembrou que a convivência entre os colegas tem sido salutar e demostram união. "Não temos motivos de queixa, conseguimos nos entender a todos”, garante.


Celeste de Melo e Armindo Canda

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