Entrevista

“É chegada a hora de nós, médicos dentistas, termos também a nossa Ordem”

Francisco Pedro

Jornalista

Mais conhecido por “Doutor Formidável”, Félix Tchissola é médico dentista, pós-graduado em Cirurgia Oral Menor, com agregação pedagógica para o Ensino Superior e especialista em Odontologia do Desporto. Nesta entrevista fala da importância da Medicina Dentária no desporto, do ensino dessa especialidade e defende a criação da Ordem dos Médicos Dentistas

15/02/2024  Última atualização 11H54
Félix Tchissola defende independência da classe © Fotografia por: DR
Nas jornadas comemorativas do Dia do Médico Angolano, realizadas no mês passado, apresentou o tema "Desenvolvimento Profissional e Saúde Oral no Desporto”. Existe alguma relação entre saúde oral e desporto?

Decidimos apresentar este tema por ser novo no nosso país, impactante e actual no mundo do desporto. As melhores equipas e selecções do mundo já descobriram parte do segredo do desenvolvimento profissional dos seus atletas. Os atletas de alta competição devem estar sempre à altura das exigências da equipa.

A saúde oral tem influência no desempenho do atleta?

Sim. Um atleta com saúde oral precária tem o seu desempenho diminuído em 22 por cento. Se competir com um adversário com boa saúde oral, em princípio já está derrotado. Por outra, uma das actuações da Medicina Dentária do desporto tem a ver com o rendimento do atleta, daí a nossa responsabilidade em falar sobre os factores sociais que podem influenciar o seu desenvolvimento.

Então, a  boa prestação da selecção nacional de futebol no CAN da Côte d’Ivoire é sinónimo de boa saúde oral no seio dos atletas?

Também! Temos feito trabalho a nível da saúde pública, através de iniciativas pessoais e de projectos sociais, que têm surtido alguns efeitos e, este é um deles: cuido da saúde oral de alguns jogadores do nosso desporto e, em particular, da nossa selecção.

Pretende alargar esse serviço para atletas de outras modalidades?

Sim, pretendo cuidar da saúde oral de todos os nossos atletas, independentemente da sua modalidade e equipa. O nosso objectivo é levar a saúde oral a todos, de modo a melhorar a qualidade de vida. Cuidar da saúde oral dos atletas é tarefa de todos, dirigentes, treinadores e dos próprios atletas.

Quais são as principais implicações de uma saúde oral comprometida na vida de um atleta?

Segundo a Associação dos Dentistas Americanos (ADA), um elemento dentário cariado, resto radicular, lesão periapical, gengivite e periodontite, que são infecções causadas por bactérias da estirpe "streeptococus mutans”, "sanginis”, "stafilococus”, podem migrar por via directa descendente para o coração, infectando o endocárdio e  criando vegetação bacteriana na membrana interna do coração e causar a endocardite bacteriana, que é citada como a causa do fim de carreira de muitos atletas e, inclusive, pode levar à morte. 

Essa bactéria sai do dente e afecta outros órgãos do corpo?

Esta bactéria pode se disseminar para o pulmão, em conjunto com outros factores, e é citada como uma das causas da parada cardiorrespiratória dos atletas. Compromete as articulações, inibindo o seu desempenho.

Também pode afectar o cérebro?

Isto acontece na via directa ascendente, ao contaminar o cérebro. Leva ao stress, falta de concentração e equilíbrio psicomotor. As equipas que traçam os seus objectivos para uma determinada temporada dão maior importância à saúde oral e sabem que a diferença entre o vencedor e o derrotado de uma competição, normalmente, consiste nos detalhes

O que quer dizer com isso?

Recentemente, uma notícia abalou o mundo do desporto, que foi a morte de um ex-atleta da NFL (Liga Nacional do Futebol americano), cujo laudo pericial indicou como causa da morte uma sepsia generalizada de etiologia, uma bactéria proveniente dos restos radiculares da cavidade oral!

Alguns estudos publicados por um jornal de desporto britânico mostraram que os jogadores do Barcelona e do Manchester United não marcavam mais golos porque tinham problemas de saúde oral.

"O ensino da Medicina Dentária é ministrado totalmente por instituições privadas”
O que tem a dizer sobre o ensino da Medicina Dentária no país?

O ensino da Medicina Dentária no nosso país é ministrado totalmente por instituições privadas, por razões desconhecidas. Mas a nossa mensagem é que o Estado também deveria tê-lo na grelha de cursos das suas instituições de ensino superior. Desta forma, poderia avaliar a sua qualidade.

Acha que o Estado não considera este curso prioritário?

Fico preocupado com a discrepância na qualidade do ensino nas diferentes instituições de ensino superior! Estamos a mercantilizar demais o ensino. Não é possível que, em algumas instituições, o curso seja ministrado em período diurno ou seja, das 8h às 18h, e noutras em apenas meio período. Em algumas instituições nem mesmo laboratórios de pré-clínicos e clínicos possuem, deixando muitos estudantes à mercê da prática clínica. Tudo isso resulta da falta de regulamentação.

Então, cada instituição ministra o curso como bem entende?

Infelizmente, o ensino da Medicina Dentária, no país, apresenta duas faces, tal como uma moeda metálica. Felizmente, temos instituições que formam profissionais de qualidade nacional e mundial a nível da Licenciatura. Lamentavelmente, temos aquelas instituições que nem deveriam ser legalizadas para leccionar tal curso, por falta de condições. Devemos ter sempre em atenção que quando se permite irregularidades no ensino da Saúde, estamos a soltar um assassino em potência!

Quantas instituições de ensino superior leccionam o curso de Medicina Dentária?

Hoje, alguns empresários descobriram esta mina de diamante e vão surgindo cada vez mais instituições que possuem, na sua grelha de cursos, a Medicina Dentária. Louvamos a iniciativa, porém, é preciso descentralizar o ensino e dinamizar os currículos. Devem agregar, sobretudo, algum valor científico e não unicamente documental.

Neste aspecto há, também, problemas?

O que temos vindo a assistir é mais a continuação do Ensino Médio nessas instituições, do que propriamente uma formação universitária, em que a componente científica é preeminente e de salutar importância.

Perguntava sobre o número de instituições de ensino superior com cursos de Medicina Dentária…

Temos, no país, 12 instituições de ensino superior que leccionam Medicina Dentária (Odontologia), das quais nove em Luanda e apenas duas têm o reconhecimento ou aprovação da Ordem dos Médicos de Angola, órgão que actualmente licencia a actividade médica e dentária.

O que tem a dizer a essas instituições?

Como docente e pesquisador, devo incentivar as instituições de ensino que têm feito o possível para manter alguma qualidade no processo de ensino e aprendizagem teórico-prático. A Medicina Dentária é uma área que Angola deve prestar alguma atenção, se deseja descobrir as suas riquezas, pois é o curso no ramo da Saúde com maior custo financeiro e exigência psico-prático.

É preciso incentivar e enaltecer o programa do Ministério do Ensino Superior, que visa dar maior qualidade ao ensino superior no país. Este ano, as instituições foram obrigadas a se organizar melhor em todos os aspectos, no período de preparação do ano lectivo, com semanas de avaliação interna, incluindo inspecção e fiscalização. É isso que se precisa. Portanto, quem já faz bem, que faça melhor e, o contrário, que se alinhe.

Ou seja, deve haver inspecções regulares…

Para um processo contínuo de qualidade e não mercantilização do ensino da Medicina Dentária, é preciso que haja inspecção continuamente. O médico dentista deve ter, necessariamente, "cabeça e mão”, a nossa tradicional linguagem na clínica prática da universidade, que significa: capacidade de buscar, absorver e tornar prático o conhecimento. A nível mundial, ela por si só, quando bem regulamentada, já resolve mais de metade dos problemas de saúde da população, no que concerne à empregabilidade, investigação, farmacologia odontológica e outros.

Qual é o perfil dos professores?

Mais de 90 por cento são angolanos e cada vez menos docentes estrangeiros, não por vaidade mas porque já existem quadros nacionais com bastante competência para ensinar, desde licenciados, pós-graduados, mestres e doutores. Precisamos, sim, de docentes estrangeiros que venham agregar valor ao nosso ensino. Infelizmente, muitos desses, com alguma razão, preferem ficar nas clínicas porque o ensino, lamentavelmente, é ainda um parente pobre na questão remuneratória. É urgente o investimento neste sector da Saúde. Devemos todos ter, como padrão preventivo e curativo, que a saúde começa na boca e que as doenças, principalmente tropicais, têm manifestação bucal.

Há, com certeza, necessidade de haver incentivos para a investigação…

Sem dúvida. Precisamos de incentivos para investigar, escrever e publicar obras nossas, para a consolidação da Ciência Odontológica. Devemos definir, com maior urgência, uma denominação única para o curso nas diferentes instituições de ensino superior e terminar com a discrepância de uns dizerem Medicina Dentária e outros Odontologia, apesar de ser a mesma formação.

Como avalia a qualidade dos profissionais formados nas nossas instituições de ensino superior?

Temos algumas instituições de ensino superior cuja qualidade dos licenciados é destacada a nível dos PALOP. Essas instituições deveriam ser incentivadas. Precisamos estudar continuamente, temos muitos conhecimentos calcinados, sem actualização. Devemos tirar da mente que já estudámos o suficiente! Quem se forma em Saúde está condenado a actualizações constantes. Infelizmente, temos na nossa praça profissionais cujo conhecimento adquirido já está ultrapassado há mais de 20 anos.

Mais uma, vez está a dizer que o Estado deve apoiar esse processo?

Sim. É preciso o Estado facilitar o processo de actualização do médico dentista. Por exemplo, além do curso de especialização em cirurgia bucomaxilofacial, promovido pelo Ministério da Saúde, cuja iniciativa louvamos, os dentistas deveriam continuar a formação em diferentes áreas a nível da pós-graduação, dentro do país.

"Seremos sempre gratos à Ordem dos Médicos”
Faz parte de um projecto que visa criar uma ordem profissional independente, a Ordem dos Médicos Dentistas. A Ordem dos Médicos não atende as vossas necessidades?

A Ordem dos Médicos é para os profissionais afectos a ela e tem um estatuto, que descreve o seu âmbito de actuação, os direitos e deveres. É uma casa que merece a nossa mais alta estima e que acolhe alguns médicos dentistas, pelo que, seremos sempre gratos por nos manter amparados nos momentos precisos. Mas, é chegada a hora de nós, médicos dentistas, termos, também, a nossa Ordem, porque é assim nas outras latitudes

Precisamos vencer os limites e começar a estruturar esta classe, que se agiganta todos os meses. Existe uma Ordem de Médicos Dentistas em Portugal, no Brasil(Odontologia), nos Estados Unidos(Medicina Dentária), e porquê nós não a temos? Porquê estarmos atrelados num espaço alheio, quando podemos ter o nosso?

Ou seja, considera necessária a independência da classe?

De facto, para cumprir verdadeiramente o nosso papel de Ordem, precisamos alcançar a independência da classe. A saúde oral é definida, hoje, como o indicador-chave da saúde em geral, do bem-estar social e da qualidade de vida em qualquer idade, profissão ou sociedade. A relevância desta definição deveria levar-nos a uma reflexão profunda sobre o que temos, somos e queremos. É certo que todos os dentistas querem a sua própria Ordem e é nossa missão corresponder a estes anseios da classe.                     

O que o país vai ganhar com a institucionalização da Ordem dos Médicos Dentistas?

As classes profissionais têm o dever de se organizar para ajudar o Executivo a estabelecer melhores políticas de saúde bucal para o povo. É uma quimera presumir que teremos uma saúde pública oral forte sem uma Ordem plenamente estabelecida.

A nível mundial, as ordens regulam e fiscalizam o exercício das profissões, incentivam a investigação científica e produção de conhecimentos, promovem a saída profissional e orientam a formação dos profissionais da área. Neste momento, precisamos deste exercício feito por uma Ordem de Medicina Dentária reconhecida e aprovada.

 Em Outubro do ano passado, houve um seminário para médicos angolanos e demais países da CPLP, com o CEO da American Dental Association (ADA), onde foi escolhido para ser moderador.

Foi uma surpresa. Nunca imaginei que o trabalho que faço a nível da classe dos médicos dentistas e da filantropia em Saúde, nas comunidades, tem tanta visibilidade, de tal forma que a cientista Andréa Aguiar me escolheu, entre muitos, como moderador do seminário com o CEO da ADA, Dr. Cohlmia. É bom que os profissionais de Saúde saibam a dimensão da figura do Dr Cohlmia, bem como da ADA, nos Estados Unidos e no mundo. Eles detêm a palavra mais importante e pioneira no que concerne à aprovação terapêutica, de pesquisas, descobertas médicas, etc, no campo da Odontologia. Ao contrário da nossa realidade, fazer Medicina Dentária nos EUA, além de não ser acessível para todos, leva sete anos de licenciatura, mais dois em relação ao curso de Medicina. Foi pela primeira vez que o Dr. Cohlmia falou para um país de língua portuguesa, para médicos dentistas, médicos e estudantes de Medicina, num universo de mais de 100 pessoas.

Foi uma experiência única…

Foi um masterclass inédito, pois, deixou de falar para a maior referência de Odontologia da CPLP, o Brasil, tudo isso graças ao projecto internacional "Somus Unidade”,  que levou a proposta à Liga Internacional Multidisciplinar de Pesquisa Científica, com o objectivo de ter uma classe unida e respeitada.

Graças a marterclass, que decorreu via online, em Outubro do ano passado, a medicina dentária de Angola é conhecida na ADA, a maior referência da medicina dentária no mundo.

Falou do projecto "Somus Unidade”. O que é isso?

O Projecto "Somus Unidade” significa, para nós médicos dentistas, o seguinte: "conhecimento, actualização, solidariedade e optimismo”. Traz assuntos actualizados com muito conteúdo, professores altamente qualificados, com conteúdos novos e com muita vontade de ensinar e partilhar ciência e experiência. Incentiva à leitura diária e os títulos (de doutor ou mestre) que temos a frente dos nossos nomes nada fala sobre nós.

Este projecto tem sido um aprendizado universitário (Faculdade de pós-graduação), pois nos actualizamos sobre diversas temáticas de Medicina Dentária, que fazem notícia no mundo. Temos vídeo-conferências todas as terças e sextas-feiras, a partir das 18horas. Incentivo os alunos a participarem nessas aulas, a fim de se diferenciarem no mercado com procedimentos e técnicas novas e cada vez mais eficazes para dar conforto aos nossos pacientes.

O projecto está aberto a todos os interessados?

O Projecto "Somus Unidade” é para todos os angolanos. Tem formações de alto nível com temáticas actualizadas e com os melhores professores do mundo. Temos incentivado os médicos dentistas a saírem da zona de conforto para participar activamente nas aulas, a fim de tirarem maior proveito das mesmas. A patrona do Projecto "Somus Unidade”, Andréa Aguiar, disponibiliza livros, artigos científicos e as aulas, de forma gratuita, para todos os profissionais e até estudantes. Por isso, agradecemos esta magnífica pessoa, a Dra. Andréa Aguiar, por este esforço desmedido em prol da nossa classe.

PERFIL

Nome: Félix Eduardo (Tchissola)

Naturalidade: Saurimo, Lunda-Sul

Formação: Licenciado em Medicina Dentária

Pós-graduação em Cirurgia Oral Menor; Agregação Pedagógica para Ensino Superior,especialista em Odontologia do Desporto

Actividade Profissional: Médico dentista e professor na Universidade Jean Piaget de Angola

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Entrevista