Cultura

É possível “Educar os filhos sem bater”?

Logo me lembrei do meu pai a quem ouvia dizer à minha mãe que não devia gritar ou bater nas filhas. Sorri para o senhor, não abri a boca, mas pensei para comigo “eu sou a prova de que resulta, modéstia à parte”; o meu pai nunca me bateu e a minha mãe, pouquíssimas vezes.

10/01/2021  Última atualização 15H36
Comentário ao livro de Nvunda Tonet © Fotografia por: DR
O convite do meu colega e amigo Nvunda Tonet para comentar esta sua obra muito me animou por questões pessoais e profissionais. Como colega, vejo no Nvunda uma geração de psicólogos que pretendem afirmar a Psicologia em Angola, com a melhor formação científica e fundamentação na realidade angolana. O seu dinamismo estimula-me a querer ser parecida com ele, quer pela qualidade do seu trabalho no contexto clínico, académico e, ainda, na publicação de obras de referência.

Ao ler este livro acabei por concordar com o que afirmou, no prefácio, o Dr. Rómulo M. Muthemba: nele vemos palavras que nos orientam para a parentalidade positiva (onde cabe o "educar os filhos sem bater”, mas não só). Assim, no livro são abordadas outras problemáticas desde a separação dos pais à educação de crianças com problemas psicológicos, passando pela coesão familiar, entre outras. Por outro lado, são apresentadas sugestões de livros e de filmes para ler ou ver na linha dos conteúdos abordados.

Nestas linhas que aqui vos escrevo, aproveito a oportunidade para me debruçar sobre um dos temas abordados no livro: "educar os filhos sem bater”. Cresci a ouvir, noutros contextos, até ao dia de hoje "eu apanhei porrada em pequeno e não morri, logo os meus filhos também não vão morrer por apanharem”. Sim, a esmagadora maioria das crianças a quem os pais e familiares batem, não morrem.

Mas o que é morrer? É algo absoluto e físico, meramente? Só estamos mortos, se o nosso corpo perecer? Não sermos recipientes vivos do nosso melhor potencial enquanto Seres Humanos não será uma forma de morte da alma? Se parássemos nos tempos e nos hábitos que não dignificam nem humanizam, continuaríamos presos a padrões que nos podem destruir como Homens, Comunidades e Sociedades. Quando usamos a violência (física, verbal, psicológica, e outras formas) como forma de disciplinar, ensinamos que a força vale mais que a palavra, o auto-controlo, a assertividade, a paciência e a indulgência. Quando usamos a violência, tendemos (muitas vezes) para a repetição da violência, para a alienação do que há de mais humano em nós e, assim, as famílias tendem para o desmembramento; os gritos, a pancada e a ameaça quebram os laços. Em escalada, famílias em desequilíbrio levam a comunidades, a sociedades e nações em desequilíbrio.

É certo e sabido que aprendemos mais pelo que vemos do que pelo que ouvimos. Os nossos pais podem ser fabulosos oradores sobre as melhores formas de educar, mas o seu comportamento é sempre a última "palavra” que o nosso cérebro (e alma) imita. Naturalmente que, para aprendermos a ser pais, primeiro precisamos aprender a ser filhos e irmãos. Ser filho e irmão implica, entre várias dimensões, respeitá-los, prevenir e gerir conflitos assertivamente.

Um filho e um irmão que não aprendem isso em casa, dificilmente aprendem a fazê-lo fora dela. Precisaremos nós de usar a violência como forma de ensinar o respeito? Esta questão nos faz recordar as formas de estar ancestrais usadas por alguns povos perante situações em que o conflito emerge e que acabam por ser exemplos de assertividade que todos nós podemos cultivar; vejamos os exemplos dos Khoisan (de Angola, Namíbia e África do Sul) e dos Inuíte (do Canadá).

No primeiro exemplo, no caso dos adultos, perante situações de conflito, é habitual que, nas comunidades, se escondam as flechas envenenadas que são usadas para caçar e as pessoas se sentem junto da fogueira para falar até encontrarem uma solução, podendo levar até vários dias. No caso dos Inuíte, perante situações de comportamentos desadequados das crianças, os pais não aplicam punições, preferindo esperar que elas se acalmem e, depois, começam a falar com elas como se estivessem numa representação teatral colocando-lhes questões sobre o que as levou a ter aquele comportamento desadequado, por exemplo, a mãe diz para um filho que bateu noutra criança na escola: "por que não me bates?” e continua com outras perguntas "tu não gostas de mim?”, "como achas que me sentiria se me batesses?”, sempre com a intenção de levar a criança a perceber as consequências negativas de usar a violência e a desenvolver empatia para com os outros.

Nestas representações, os pais assumem um tom divertido de brincadeira por saberem que isso faz com que as crianças pensem, falem mais e, consequentemente, aprendam o modelo para se auto-regularem perante situações de conflito. Para entendermos a funcionalidade destas estratégias destes dois povos bastará imaginar o quão agreste é o meio ambiente em que vivem e como é difícil sobreviver ali, seja na savana africana, seja no meio do gelo, neve e frio extremos da proximidade do Pólo Norte canadiano. Qualquer acção mínima de violência entre as pessoas da comunidade pode levar à morte.

Daqui retiramos duas lições fundamentais que estão alinhadas com o funcionamento neurológico de todos os Seres Humanos: por um lado, para gerirmos situações desafiadoras que geram emoções que podem levar à violência, precisamos deixar passar o tempo para nos acalmarmos. Por outro lado, que a linguagem e uso de histórias tem um poder significativo como ferramenta educativa.

Educar e instruir são processos complexos nos quais o amor deve ser temperado com a disciplina. Dizem os mais velhos que no meio está a virtude e, sabemos, que na boca deles apodrecem os dentes, mas não as suas palavras. Como disse Martin Luther King, "... apesar das vitórias temporárias, a violência nunca traz paz permanente”.

Não esqueçamos, ainda, que todos aqueles que receberam alguma forma de violência podem procurar o perdão e ser um exemplo diferente daquilo que viveram, transmutando a dor em amor.
Para concluir, recomendo a todos aqueles que lidam com crianças, desde pais, avós, tios, psicólogos, professores, educadores, etc. a leitura deste livro.

Luanda, Dezembro de 2020

* Doutorada em Psicologia pela Universidade de Lisboa - Ana Maria Rocha |*

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