Entrevista

“Estou de volta ao estúdio e a trabalhar num novo projecto”

Analtino Santos

Jornalista

Fomos recebidos por Moniz de Almeida a demonstrar os seus dotes de guitarrista, no caso solista, algo que faz fora dos palcos e em estúdio. Como a ocasião faz o ladrão, aproveitamos a oportunidade para “explorar” o artista, que tocou algumas músicas. Foi uma conversa aberta e franca, durante a qual Tchuma falou do início da carreira, de como está a superar a perda do irmão, Beto de Almeida, e de projectos futuros. O encontro com Moniz de Almeida aconteceu dias depois do concerto no Almoço Angolano, em que partilhou o palco com Flay, no Hotel Diamante, no dia 29 de Outubro. Na sala do Standers Talho, Via Expressa, onde actua à sexta-feira, encontramo-lo a dedilhar “Ombela”, por sinal uma música que o entrevistador gosta e serviu para o “pontapé de saída” da nossa entrevista

12/11/2023  Última atualização 09H21
© Fotografia por: Francisco Lopes | Edições Novembro

Moniz, obrigado pela entrevista e este concerto privado. Começo com "Ombela”: o que descreve esta música?
"Ombela” é a chuva, uma música que tem um sentimento muito forte porque fala da mulher trabalhadora, a zungueira na vertente urbana, na rural a mãe com filhos às costas e enxada na mão. Ela diz que água apenas vai molhar os panos e que tem de continuar a trabalhar porque precisa, doutro modo os filhos ficam à fome. Trago aquela mãe que é muito protectora e batalhadora. "Ombela” é uma música que quando canto só não choro porque a fonte de minhas lágrimas, depois de tanto tempo, secou.

Por que é enquadrada a meio dos grandes concertos de Moniz de Almeida?
Olha, eu tenho várias maneiras de montar o espectáculo, com partes mais quentes e animadas e outras mais pausadas. "Ombela” geralmente enquadro na parte da nostalgia, quando pretendo explicar alguma coisa, falar da minha infância, do Beto de Almeida, dos meus pais, enfim, da vida. Também é para a banda descansar um bocadinho, para ficar em palco apenas eu e o Hugo Macedo. É uma parte em que represento mais a minha voz e fico mais melódico. Pronto, "Ombela” é a cara mais verdadeira de Moniz de Almeida.

 É verdade que é filho de Almeida Adelino e Isabel Elise, os dois professores e missionários? Mas queremos saber outra verdade, nasceu no Bié ou no Cuando-Cubango?
(Risos). Esta confusão… Eu às vezes sinto receio de explicar definitivamente de onde sou porque nas duas províncias afirmam isto e quando digo às pessoas ficam decepcionadas. Mas agora gosto de falar porque é algo que não posso esconder. O que se passou é que tive um pai pastor e uma mãe diaconisa. Eu nasci no Bié no dia 5 de Julho de 1969. Pouco depois o meu pai foi transferido para o Cuando-Cubango, e como estavam preocupados com o processo de mudança eles apenas fizeram o registo depois de se instalarem. De documento sou do Cuando-Cubango, mas o meu cordão umbilical ficou no Bié. Mas uma coisa é certa, sou bem querido nos dois lados.

Então, a sua infância foi repartida entre as duas províncias?
A minha infância até aos 14 anos foi toda feita no Cuando-Cubango. Eu apenas conheci o Bié em 1995 quando já era famoso mas na verdade as duas províncias são muito próximas em termos culturais. Falam as mesmas línguas, existem fortes relações de parentesco, por exemplo, eu tenho familiares das duas províncias porque em 1976/77 no Cuando-Cubango não havia muita guerra e muitos bienos foram para lá. Neste período o meu pai acolheu muita gente, por isso tenho família dividida nas duas províncias. Então é esta a verdadeira história dos Irmãos Almeida.

 E os outros irmãos?
O Beto e o Turbo nascem no Cuando-Cubango, o primeiro no Cutato e o outro no Lussati. Agora as minhas duas irmãs mais velhas, Joaninha a e Judith, é que nascem e são registadas no Bié. A Leonor que eu puxo também é do Cuando-Cubango e é aí que começa o problema dos Irmãos Almeida. Nós somos de Angola porque temos o cordão umbilical nas duas províncias. Os meus amigos de infância são todos do Cuando-Cubango, por isso eu falo bem Nganguela, Umbundu e Cokwe. Nós vivemos no bairro chamado Hoji-ya-Henda e atrás da nossa casa tinha um centro de acolhimento de pessoas provenientes de zonas onde havia guerra. Tive muitos amigos dentro do centro e os levava a casa. Muitos deles não falavam português, então aprendi estas línguas. Mas há também quem fale que eu sou do Lubango.

Por que razão?
Isto porque eu depois dos 14 anos vou para o Lubango, onde estudei no Tchivinguiro, passei na 27 de Março, morei no Mandume. Existe uma proximidade entre os meus amigos do Bié e do Cuando-Cubango porque quando vou para o Lubango muitos também vão para lá estudar. Na Huíla apenas fiquei quatro anos e foi na capital onde vivi mais tempo. Eu digo que tenho várias vivências: ter nascido no Bié, crescido no Cuando-Cubango e Lubango e depois passar quase toda a minha vida em Luanda.

Cuando-Cubango, a origem de tudo...
O meu pai foi para as minas de ouro na África do Sul, porque naquele tempo os jovens iam trabalhar para trazer um Ngumba Ngumba (gravador com disco), bicicleta de marca Humber e máquina de coser Oliva. E quando eles regressavam eram os hippies da cidade com calças compridas e largas. Assim foi o meu pai. Foi no Ngumba-Ngumba que comecei a ouvir os sungura e outras músicas.

E como o então Egas Moniz ganhou o interesse por cantar e tocar?
Mudei o Egas por sugestão do meu tio, porque Egas Moniz era o nome de um colono. Durante a situação de guerra estávamos no Cuxi, na aldeia de Lissantiga, numa casa de pau-a-pique sem água e luz, onde foram dados os primeiros passos na música como Egas Moniz. Felizmente o meu pai foi transferido para Menongue, onde passamos a viver em melhores condições, numa casa do Ministério da Educação que ficava no bairro Hoji-ya-Henda. Nessa altura eu e a Leonor estudávamos no 4 de Fevereiro e fazíamos trinta minutos de casa para a escola. Ao domingo de manhã frequentávamos a igreja e quando faltássemos era como se não tivéssemos feito nada durante a semana. Era importante primeiro recebermos a bênção e depois podíamos fazer outras coisas, isto fazia parte da educação e permitia-nos também cantar e apreciar os coros nas duas igrejas protestantes, a do bairro Pandera ou a da cidade.

Descreva como era o ambiente cultural em Menongue?
Havia um concurso de música infantil na rádio e os prémios eram lata de leite moça, cadernos, lápis-de-cor e outros brindes. Era um dos poucos divertimentos que a província tinha, o outro era o cine Luyana. Lá exibiam filmes e ficava dois meses com o mesmo cartaz (Risos). Na sua maioria os filmes eram soviéticos e às vezes dava um documentário de Bob Marley e Francó onde eu aprendi a tocar viola. Voltando ao concurso, para participarmos preferíamos assistir ao culto na igreja dos missionários, para facilitar participar no programa Piô Piô, e não no bairro Pandera. Deste modo também evitávamos atravessar o rio Laúca.

Quem o motivou a concorrer ao concurso Piô Piô?
Foi a minha irmã Leonor, ela gostava de passar o fim-de-semana na cidade, em casa da tia Elisa. Um dia ela chega com vários prémios: leite, salsicha, lata de atum, quedes, fato olímpico e um rádio para o meu pai, depois de ter participado e vencido o concurso e então pensei "se esta miúda ganhou, eu como mais-velho também devo conseguir”. Assim decidi participar no concurso e no domingo seguinte fui muito cedo e ganhei.

E assim os irmãos começaram a dominar os concursos infantis no Cuando-Cubango?
Sim. Depois houve uma notificação para enviar dois representantes ao primeiro festival infantil da canção, em 1983. O evento foi realizado no Parque Heróis de Chaves e pela primeira vez vi os palhaços Pipoff e Cascadura, andei de avião, um Boeing 737 que muitos mais velhos na província nunca tinham experimentado, comi pescada e vi o mar. Eu, um miúdo com doze ou treze anos na capital já era um grande prémio, nós ficamos no Lar da Juventude, na Ilha de Luanda. No concurso eu fiquei em segundo lugar e a minha irmã em terceiro. O vencedor foi um pioneiro do Cuanza-Norte. Ganhei uma bicicleta e uma televisão e a Leonor uma viola, mas optei por trocar e foi com aquela viola que começou parte dos Irmãos Almeida. Fui um autodidacta. E também através dos filmes que eu antes disse que assistia, no cine Luyana, fui me aperfeiçoando.  Esta entrega na viola teve reflexos no aproveitamento escolar.

E assim os manos começaram a apostar na carreira?
A Leonor apostou noutras coisas. Só mais tarde, quando viu a minha evolução, é que pretendia regressar. Eu estava preocupado a melhorar na execução da viola e ela com a fama, por ter saído no jornal e na televisão. Naquele tempo, lá na província era grande destaque. Pouco tempo depois o meu pai foi transferido para o Lubango. Lá encontrei uma cidade muito organizada, com comida barata e um mundo cultural muito fechado. Nessa fase apenas queria tocar viola.

Foi no Lubango que criou o primeiro grupo?
Formamos os "Love Kaya”, eu, o Beto e o Nando (infelizmente já não estão entre nós) e o Faria que anda por aí. Estou a procura dele porque tem uma música que pretendo gravar, que é da autoria do Faria. Nos "Love Kaya” eu era o Jojó Malafaya e tocava solo e ritmo, o Beto cantava. E mesmo sem espectáculos ensaiávamos todos os dias no centro da cidade, era um grupo de estudantes. Depois o meu pai, preocupado com o aproveitamento escolar, mandou-me fazer o curso agrário no Tchivinguiro e lá encontro o José Mónica "Zangado”, que tinha o sonho de ser músico.

Fale-nos desta parceria com José Mónica…
Ele dizia que queria cantar e mostrou algumas músicas, nas quais fiz algumas correcções, depois criamos o Duo Vulcão para animar eventos de estudantes. Como José Mónica era de uma família com posses, eles criaram as condições para virmos para Luanda, mas um dia, antes da viagem, fui despedir-me dos kambas e no convívio deixei perder o bilhete de passagem. Ele ficou muito chateado porque tinha-me como suporte, por isso prometi que o encontraria em Luanda. Tentamos durante quinze dias nos vôos militares mas sem sucesso, a minha irmã Leonor estava comigo porque pretendia voltar a cantar. Nessa altura os agrupamentos Os Fachos, Os Kiezos, Semba Tropical, e os artistas Carlos Baptista, Toy Salgueiro, Zé Vaiola, Clara Monteiro e outros, haviam participado num festival no Lubango e eles viam-me miúdo… mas o voo para a nossa boleia nada, até ao dia que aparece um avião e consigo embarcar sozinho com a caravana de artistas. Assim começa a minha aventura em Luanda.

Fale do início desta aventura…
Acontece que quando aterramos o aeroporto doméstico estava no Cassequel e não junto dos prédios como na primeira vez que eu vim a Luanda, então, quando as pessoas perguntaram a casa onde ficaria eu confirmei porque sabia que a minha tia vivia nos prédios do Cassenda. Qual foi o meu espanto, saí do aeroporto, comecei a andar e o primeiro prédio que encontrei foi o da Angola Telecom. Subi até ao sexto andar e quando bati a porta saiu um soviético, que começa a falar e de seguida fecha a porta. Eu, um jovem sulano a quem nunca foi fechada a porta, com educação religiosa, desci e fiquei na paragem de autocarro a chorar. Pela primeira vez estava abandonado.

Como saiu deste impasse?
Havia muita solidariedade. Apareceu um militar, Joãozinho, que era cozinheiro da TGFA e perguntou por que um pioneiro estava a chorar. Expliquei a situação e jurava que a casa da minha tia Júlia era naquele prédio… e apenas fiquei convencido quando ele mostrou que aí apenas viviam soviéticos e outros cooperantes. Levou-me para o quartel sem a autorização dos chefes, onde fiquei escondido durante uns dias e neste período saía para explorar as ruas e procurar a casa da minha tia, até que um dia avancei mesmo até ao antigo terminal e encontrei a minha tia a lavar debaixo do prédio.

Este foi um momento de alívio?
Sim, mas ela estava chateada porque todos sabiam que eu já estava em Luanda mas em parte incerta. Depois fomos a busca das coisas no quartel e passei a viver no Cassenda, com ela. E, sorte das sortes, aí reencontrei o Mónica, que vivia no mesmo prédio. Retomamos os nossos sonhos, começamos a ensaiar e depois o Zé Mónica consegue um espaço no estúdio da Rádio Nacional e lança "Mumuilana”, música de minha autoria. Foi um sucesso e nesta fase eu faço um recuo para o Menongue e venço o Top dos Mais Queridos fase provincial. Regresso a Luanda como representante do Cuando-Cubango e agora o meu estatuto subiu. E lanço "Ame Yola oh Vali”.

Foi bem sucedido nesta experiência?
Com esta música fiquei atrás do último e os músicos não acompanharam bem, porque eles queriam despachar o puto chato que veio do Cuando-Cubango. O lado bom foi que pela primeira vez pisei na Rádio Nacional e a directora Luísa Fançony viu que eu tinha talento. Ela perguntou se eu estava disponível para dar aulas de canto na Sala Piô e assim tive o meu cartão como colaborador da RNA, como artista. Nesta altura eu faço "África luta contra a guerra”, conhecida nas vozes de Lucas de Brito, Lopes Cortez e Gizela.  Algumas pessoas dizem serem os autores dessa música, mas não é verdade, é uma composição minha. Depois deste sucesso a directora perguntou se tinha mais músicas para gravar. Eu estava com muitas obras, numa época em que tornei-me amigo do Simmons Mancini, um puto viciado na guitarra e nós tocávamos de manhã até a noite.

Como grava os primeiros temas na CT1?
A directora depois fez um documento para ir a CT1 contactar o Ferreira Marques. Naquela altura entrar na RNA não era para qualquer um e na CT1 então pior. Recordo eu a chegar e ver o nosso Jesus Cristo, um branco com cabelo até as costas. Saudei-o por duas vezes, mas ele sempre concentrado nos equipamentos. Depois sem olhar perguntou o que desejava e disse-lhe que estava aí por orientação da directora para gravar. Quando ele terminou pediu que cantasse alguma coisa. Fez uma avaliação e agendou a gravação para daí a três meses.

Quais foram as primeiras músicas?
Gravei "Suleme”, "Maria Mulata” e "Ama nhi canho nevale” [o artista pegou a viola, tocou de forma nostálgica e depois chorou]. Olha, estas músicas fazem-me lembrar muitas coisas, eu não imaginava que atingiria este reconhecimento. Quando nós íamos gravar o "Tio Zé” entrou o Eduardo Paim que tinha ido gravar o disco do Paulo Flores em Portugal, ele mandava na CT1 e escutou as primeiras músicas que foram tocadas pelo Simmons e deu o seu toque nas bases do "Tio Zé”.  Eu fui resolver um problema dele no Hoji-ya-Henda enquanto ele gravava.

 Assim surgiu o primeiro sucesso de Moniz de Almeida?
Não. Hoje vou contar a história do "Tio Zé”, a música ficou bonita para mim e para os que estavam próximo, mas quando saiu ela ficou aí, foi uma rocha sem muita divulgação. A minha mãe era amiga da Tia Luzia, a mulher do Nguxi dos Santos que mandava na produção dos vídeos na televisão. Elas falaram do meu caso, mostrei a música para ele apreciar e gostou, mas impôs uma condição para apoiar: "Puto, nesta música você tem de dançar”. Na altura eu nem sabia dançar, tornei-me bailarino por causa do Nguxi dos Santos, foi ele que me incentivou para isso, tirei a camisa e dei aqueles toques. Mas depois do clipe a música ainda continuava rocha…

Como se transforma em sucesso nacional?
Eu tinha parado de estudar e o meu pai aconselhou-me a continuar os estudos e assim regressei à Huíla, na altura do Mundial do Futebol em que o Roger Milla marcou muitos golos. O inesperado aconteceu, o meu pai era director do ISCED, gostava de reunir amigos e outros dirigentes da província para assistirem aos jogos. Foi no intervalo de um deles que todos em casa começaram a ver o clipe e o meu pai, que estava chateado com a minha aposta na música, ficou orgulhoso e dizia que eu tinha juízo. Naquele tempo sair na televisão, e no Lubango… eu era o único e a importância era maior, porque era no Mundial de Futebol, muita gente a ver. E repetiram em muitos jogos. Eu nem sei qual foi a cunha, porque Deus quando te abençoa ninguém te trava.

O Mundial de 1990 afastou a rocha...
Sim. Depois de quinze dias o meu pai recebeu um telefonema de Luanda. Como não tinham o número de casa, a única referência era o ISCED, onde ele trabalhava. Diziam que a música estava a tocar muito em Luanda e noutras províncias e que havia um contrato para actuar nas festas de Malanje. Eles tinham cinco mil kwanzas para me entregar. Este foi o valor do meu primeiro cachet, que era muito dinheiro. O meu pai falou desta proposta comigo. Quando cheguei a Luanda peguei nos cinco mil e tirei três mil para comprar uma motorizada Simpson Honduro 70. Fui a Malanje com a Banda Zimbo, Diabick, Robertinho, Givago, kota Elias diá Kimuezo, Zé Max, Turma Cómica dos Segredos… era uma caravana com grandes artistas. Mas eu não esperava o tipo de recepção… No autocarro as pessoas gritavam "Moniz de Almeida” e isto não agradou aos colegas que me tratavam como miúdo. No espectáculo colocaram-me nos primeiros momentos para cantar "Suleme” e "Maria Mulata” e quando soltei o "Tio Zé” mandei a população entrar no campo e isto estragou o evento, porque quando acabei de cantar ninguém mais cantou e o Comissário Provincial, Liberdade, e os espectadores abandonaram o espaço. Depois desta actuação começaram a respeitar-me e a organização disponibilizou um carro para me apoiar.

E de que forma o miúdo começa a gerir a carreira?
Nesta fase o Adão Filipe fica meu promotor, mas já nos conhecíamos nos Makotes, onde eu fiz também teatro como actor e tocava guitarra. Com ele fizemos um dos maiores espectáculos de Moniz de Almeida: três dias no Karl Marx, tendo como convidado Mamborrô, que vinha do Brasil. Foi aí que o Ruca Van-Dúnem surgiu para refazer "Suleme”, "Estamos a sofrer mal”, "Amani”, "Tio Zé” e outras músicas que acrescentamos para o disco "Tio Zé”.

Como Beto se junta a Moniz em Luanda?
Primeiro ele vem para um concurso de música infantil, que ganhou. Também lá estavam os Impactus 4, Walter Ananás e o Dom Kikas. Ele quis ficar em Luanda mas eu o aconselhei a voltar e a preparar-se melhor. E quando ele regressou vem com muita força, com "Paciência”. Eu o apresento ao Lanterna para fazerem juntos o trabalho, sem a minha interferência, eu apenas participo na parte final da música. Ele também lançou outra música que fez sucesso, "Minha prima é boa”.

Nessa fase os dois irmãos estão a despontar, e em 1991 Moniz de Almeida vence o Top dos Mais Queridos...
É verdade. Em 1991 eu entro no Top dos Mais Queridos como representante de Luanda e nesta altura tenho cinco músicas de sucesso. Para concorrer gravo com o Mónica "Matabicho Chá Chá” e ganho, numa gala realizada no Electro do Huambo, mas há uma música que ajudou muito, foi "Paciência” com o coro "Vou comer então aonde”, de Beto de Almeida com a minha participação, que deixou confusa muita gente. É importante dizer que naquela, e mesmo até pouco tempo, existiam músicas não concorrentes que influenciavam na votação final e esta música do Beto estava a bater muito. Então foi juntar o útil ao agradável porque ganhamos todos, tanto que os prémios para ficar hospedado no Panorama e a viagem para o Brasil dei ao Beto e fiquei apenas com o carro. Foi nessa altura que veio a ideia do Adão Filipe para montarmos "Os Irmãos Almeida”.

Foi difícil largarem as carreiras individuais, para um projecto colaborativo?
Não. Pensamos bem e depois fomos falar com o Valentim Amões,  que apoiou com 50 mil dólares para gravarmos o primeiro disco. Nós ficamos seis meses em Portugal e ainda voltamos com 12 mil dólares. Editamos 5 mil discos, onde temos "Vigarista”, um semba dado pelo Ferreira, hoje oficial superior da Polícia. Nós não pensávamos fazer, mas como o Beto era muito abelhudo ouviu o Minguito, é assim que continuarei a tratar o agora inspector. Ele era um mestre a tocar guitarra. Foi um disco que marcou e trouxemos o semba numa fase que   poucos faziam semba. Mas quando veio o disco não fez grande sucesso. Três meses depois começamos a participar em vários festivais. Fizemos o "Pico”, "Almesy”, "Invisível”, os projectos "Pomba Branca” e "Angola em Paz”.

Quer falar do seu irmão Beto de Almeida?
Eu digo que a morte de um rei leva muitas pessoas, traz muitos problemas. Apareceram muitos comentários acerca de mim, bons e maus. Tive de estar firme para conseguir ouvir tudo e não responder. Hoje já consigo falar, mas não detalhadamente, porque não me interessa. Eu sempre olhei para frente e estou a vencer uma batalha. Algumas pessoas chegaram a dizer que Moniz de Almeida pode gravar disco que não vai bater e nem vamos tocar. Estou aqui, tenho espectáculos quase todos os dias e lancei o "Bilo”, então, eu sou um vencedor. A perda do Beto para mim foi a pior coisa que poderia acontecer na minha vida, porque desmontou todos os projectos que tínhamos. Uma coisa é quando fazemos planos sozinhos e outra quando é a dois. Eu  contava que partiria primeiro porque ele era muito mais novo. Foi uma cena muito triste, uma pancada muito grande, mas ainda apareceram pessoas achando que eu teria gostado que isto acontecesse. É impossível fazer mal a uma pessoa que começaste a segurar desde criança, a ensinar. Eu o trouxe para Luanda, fizemos todo o caminho juntos e nos tornamos famosos.

Sei que não é fácil lembrar Outubro de 2013…
Tínhamos um espectáculo em Kaluquembe, onde aconteceu a queda em palco. As pessoas falam de coisas que não sabem. Eu é que tive a ideia de chamar uma avioneta, junto dos amigos, e o vice-governador na altura mobilizou alguns empresários. Ele quando foi para o avião ainda estava bem e depois vieram muitos comentários que não gostei e até hoje não esqueci. Mas as pessoas estão identificadas e perdoadas. Eu fiquei perplexo e confuso, eu chorava por muitas coisas: ter perdido um irmão, um camarada, amigo, confidente, um colega… havia as fofocas e eu não estava preparado como hoje. As pessoas inventaram muitas intrigas e provocaram problemas graves na família, mas felizmente as coisas passaram. Foi o derrubar de uma torre, o destratar de uma pessoa. Acho que as pessoas devem ter um bocado de mais calma, não podemos falar por emoção.

Pela entrega nos espectáculos, Beto de Almeida está presente…
Não existe espectáculo que eu faça em que não fale de Beto de Almeida. As pessoas choraram um ou três dias mas eu vou chorar toda a minha vida. Todos os dias eu vivo o problema do Beto, porque anda comigo, porque eu sou profissional da música, sempre que subo num palco estou a ver o Beto à minha frente. As pessoas tiveram óbito de uma semana e eu tenho toda a minha vida, é algo que só vai acabar quando eu bazar. Quando canto "Guilhermina”, isto é Beto, tal como "Vizinha”, "Minha Viola”… fiz um grande esforço para conciliar esta perda. Os "Irmãos Almeida” são um símbolo ou património nacional, então, respeitem.

Curiosidades de algumas músicas
"Morainha”
: "Lembro o Mateus Cristóvão, na altura director da Rádio Luanda, a perguntar se sabia o que estava a acontecer, porque nas reportagens que fizeram nas festas de final de ano, todas estavam a tocar esta música. Hoje é ela que encerra os meus espectáculos e é inspirada no meu velho, por causa do Ngumba-Ngumba; naquele aparelho tocava este tipo de música e eles dançavam. Eu acho que nós, "Irmãos Almeida”, devemos ser os primeiros angolanos a fazerem sungura, que estava praticamente esquecida. É importante dizer que este estilo também existe cá no Sul de Angola e chamamos "mongoma”. O que se passa é que ficamos muito fechados com o semba mas temos estilos como a txianda, quilapanga... O pessoal do Quénia evoluiu mais na música sungura. Esta música, entre nós, apenas tocaram duas pessoas, o Lito Graça e um moçambicano na guitarra e baixo, mas toda a base de guitarra e do solo é toda a minha.
"Tio Zé”: Aquela guitarra que dá o açúcar também é minha.
"Kussokola Adobes”: A letra é do Namanga de Deus e tem arranjos de Maya Cool, mas com o tempero dos "Irmãos Almeida”, porque nós levamos as músicas quase prontas. Eu penso a percussão, baixo, solos, ritmos e compasso.
"Vamue”: o Chico Madne tocou, é um tema que fala de coisas chocantes, situações que vivemos, e retrata a caminhada durante a guerra no Bié e Huambo.
Tradução livre de Vamue: "Alguns vieram, outros ficaram, mas nós conseguimos e chegamos por causa de Deus. Uns foram levados pelas águas e nós estamos aqui, queremos o nosso Huambo e Bié de volta. Toda a família chora por causa desta guerra. Deus nos ajude todos os dias, as pessoas estão a morrer, quando é que vai surgir a tal paz para andarmos a vontade, temos muita fome, aqui está a chover, vou dormir aonde?”.

Moniz de Almeida tem novidades?
Sim. Depois de muito pensar, estou de volta ao estúdio e a trabalhar num novo projecto. Tenho quase prontas seis músicas, mas comecei com esta para medir a pulsação dos amantes da nossa música. É também uma forma de preservar o legado do irmão Beto de Almeida.

Quem trabalhou consigo nesta música?
Hugo Macedo, um dos mais antigos e sempre presentes colaboradores de muitos sucessos musicais dos "Irmãos Almeida”. Ele é um irmão, esteve sempre presente em todos os momentos, apesar de ser rabugento e eu às vezes ser complicado, nos entendemos bem em palco e em estúdio, por isso ele está na direcção do trabalho. Com Hugo Macedo na direcção musical, arranjos, teclados e programação, outros integrantes da Banda Sem Receio participaram na gravação. Tivemos o França Kamalengue na guitarra ritmo e solo, no baixo Samú, na percussão Valdo e na bateria Jefte.

O que mais trará o disco  "Reflexão” e para quando o seu lançamento?
Com  este disco pretendemos fazer a tournée "Reflexão” no interior e exterior do país, assim como preparar um documentário sobre o percurso dos "Irmãos Almeida”, com depoimentos de colegas e amigos. Vamos recorrer às administrações municipais e demais parceiros para conciliarmos os concertos com palestras e outras actividades sociais e de cidadania, para juntos reflectirmos "Angola”. Quanto a datas, estamos a preparar as bases com ajuda de alguns amigos e depois apareceremos. Mas vamos continuar a trabalhar e na altura certa diremos, porque estamos de forma independente.

A saga dos "Irmãos Almeida”

Moniz de Almeida é filho de Almeida Adelino e de Isabel Elisse, ambos missionários e professores, natural do Bié, mas registado no Cuando-Cubango, onde começou a cantar aos 12 anos, no coro da Igreja Evangélica, no bairro Pandera, com os irmãos Judith, Sérgio e Leonor. Com esta em 1983 representou a província do Cuando-Cubango no Concurso Nacional da Canção Infantil.

Na fase de adolescente acompanha os pais à Huila e enquanto estudante da Escola Agrária do Tchivinguiro conhece José Mónica "Zangado” e formam o Duo Vulcão. Realizam espectáculos locais e depois partem para Luanda. Em 1987, com Eduardo Paim, grava "Tio Zé”, depois das músicas "Mulata”, "Garina”, "Sofrimento” e "Sulemue”. Com estas e outras músicas traça o percurso que o leva à vitória no Top dos Mais Queridos, em 1991.

Nessa altura, por sugestão do jornalista e produtor musical Adão Filipe, com o surgimento do irmão, Beto de Almeida na cena musical, formam a dupla "Irmãos Almeida”. Antes de conquistar a capital do país com "Paciência”, o irmão mais novo conquistou o Lubango como Beto do Violão. Os dois irmãos lançaram álbuns a solo. Moniz lançou "Tio Zé” e Beto "Cara de pau”. Da discografia dos "Irmãos Almeida” encontramos: "Kimbanda”, "O Pico”, "Almeisi”, "Nha Vitória”, "Ao Vivo no Brasil”, "Correction”, "Best of +5” e "Invisível”. O artista pensou deixar a carreira artística com a morte de Beto de Almeida em 2013 e hoje o palco é  também uma  forma de preservar o legado do irmão.

Os "Irmãos Almeida” pertenceram ao movimento de artistas nacionais muitas vezes convocados para actuar nos pontos mais avançados de combate durante o conflito armado, assim como para concertos nos mais prestigiados palcos nacionais e digressões internacionais. Outro irmão, Turbo de Almeida, às vezes era convidado para as actividades da dupla.

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