Entrevista

“Existem diálogos entre as literaturas africanas em português e a brasileira”

Isaquiel Cori

Jornalista

Faz parte do crescente e heterogéneo leque de académicos que por este mundo se têm interessado pelo estudo e ensino das literaturas africanas em língua portuguesa. Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco é Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), profunda conhecedora das Literaturas Africanas em Português, bem como da brasileira. Em entrevista exclusiva ao Jornal de Angola, (efectuada por email) a estudiosa brasileira fala da sua paixão pelas letras africanas em português, das relações de intertextualidade com a literatura brasileira e traça um panorama das literaturas de Angola, Moçambique e Cabo Verde

17/03/2024  Última atualização 11H07
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O que a levou a interessar-se pela área de estudo das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa?
Eu sempre fui amante de Literatura. O meu Mestrado e o meu Doutorado foram sobre autores da Literatura Brasileira: João do Rio, no Mestrado e, no Doutorado, vários autores, pois analisei Guimarães Rosa, Machado de Assis, Clarice Lispector, Nélida Piñon, Lígia Fagundes Teles, Jorge Amado, investigando como tratavam o tema da velhice. A minha dissertação de Mestrado sobre João do Rio levou-me às religiões do Rio, aos cultos africanos no Brasil e colocou-me em contacto com um Rio de Janeiro marginalizado, onde muitos negros ainda sofriam efeitos das desigualdades geradas pela escravidão. Comecei, assim, a interessar-me pelos Movimentos Negros. No Doutorado, a minha tese, cujo tema foi a velhice, levou-me aos griots, velhos contadores de histórias, ao livro "Entre Voz e Letra: o lugar da ancianidade na literatura angolana”, da Professora Laura Padilha, minha amiga e grande estudiosa das Literaturas Africanas em Língua Portuguesa.
Em 1986, eu viajara a Cuba, pois, nessa época, trabalhava com o Professor Darcy Ribeiro. Em Havana havia encontrado e comprado alguns livros de autores angolanos, obras publicadas pelo Governo cubano. Quando, em 1993, foi publicado o edital para o concurso para as Literaturas Africanas na Universidade Federal do Rio de Janeiro, resolvi concorrer à única vaga, tendo em vista haver percebido que, a par das muitas diferenças existentes entre a Literatura Brasileira e as Literaturas Africanas em Língua Portuguesa, poderia estabelecer importantes interlocuções com autores africanos de Angola, Moçambique, Cabo Verde e Brasil, entre os quais, Luandino Vieira e Guimarães Rosa, Manuel Bandeira e Jorge Barbosa da Geração Pasárgada de Cabo Verde, Eduardo White de Moçambique e Carlos Drummond Andrade, entre outros. Assim, as Literaturas Africanas me tomaram por inteiro e a elas me dediquei desde 1986 e, como docente da UFRJ, a partir de 1993.

 
Quais foram as pontes ou diálogos que identificou entre a Literatura Angolana e a Literatura Brasileira?
Embora sejam muitas as afinidades entre vários autores e obras, a grande questão que levou alguns escritores africanos a se espelharem em determinados períodos do sistema literário brasileiro foi, justamente, a necessidade da busca de uma consciência literária nacional.  É comum, entre os ensaios sobre as Literaturas Africanas em Língua Portuguesa, apontar o Modernismo de 1922 e o Regionalismo de 1930 brasileiros como marcos paradigmáticos das literaturas de Angola, Cabo Verde, Moçambique. Mas, voltando os olhos para o final do século XIX, pode-se constatar que a intertextualidade com autores brasileiros já se fazia, desde essa época, em poetas como: Costa Alegre, de São Tomé; José Lopes, de Cabo Verde; José da Silva Maia Ferreira, de Angola, entre outros.
Apesar de o Romantismo brasileiro apresentar alguns ecos nas Literaturas Africanas em Língua Portuguesa desde o final do séc. XIX e início do séc. XX, é, nos anos 1930, 40 e 50 do século XX, que a intertextualidade com a literatura brasileira se faz mais evidente. Em Angola, António Jacinto, importante poeta da Geração Mensagem, chama atenção para a influência literária brasileira nos jovens poetas angolanos dos anos 1950. Costa Andrade, outro importante escritor angolano, também é incisivo a esse respeito.O poeta Maurício Gomes de Almeida é outra das vozes angolanas dos primeiros tempos de busca de uma literatura autenticamente voltada para Angola que, propondo uma ruptura com os cânones lusitanos, funda uma nova poética, cujos paradigmas passam a ser pautados pelo Modernismo brasileiro.
A presença da literatura brasileira não se dá apenas no momento do "Vamos Descobrir Angola”. Ocorre também na produção posterior. Um exemplo é a poesia de Arlindo Barbeitos, onde se detectam semelhanças com a poética de João Cabral de Melo Neto. Os dois poetas operam com uma linguagem minimalista e descarnada que vai desbastando a retórica. Os poemas expressam, pelo esgarçamento semântico e sonoro dos versos, o dilaceramento de Angola, na época mutilada pela miséria e pela guerra. A poética de Barbeitos se tece entre a ameaça dos "aviões mortíferos”, metaforizados em "pássaros canibais”, e os "fiapos de sonhos” que ainda resistem nos espaços intervalares da realidade angolana, pressionada por conflitos interétnicos e por interesses das potências estrangeiras que ambicionavam petróleo e diamantes. Nos últimos livros de Arlindo Barbeitos há uma triste consciência de orfandade em relação a Angola, onde a imagem das muletas nos versos do poeta expressa a mutilação e o consequente impedimento do acto de sonhar naquele contexto de fome e dor:"a sul do sonho /a norte da esperança / a minha pátria / é um órfão / baloiçando de muletas / ao tambor das bombas / a sul do sonho / a norte da esperança.”(BARBEITOS, Arlindo).
Na prosa, além da forte presença de autores como Graciliano Ramos, de "Vidas Secas” e "São Bernardo”;de Jorge Amado, de "Jubiabá” e "Terras do Sem Fim”; de José Lins do Rego, com as histórias dos engenhos no nordeste brasileiro, há uma grande intertextualidade entre Luandino Vieira e Guimarães Rosa, o que se verifica também ao se analisar alguns romances e contos do escritor moçambicano Mia Couto.

 
Pode falar, igualmente, dos diálogos ou intertextualidades entre as literaturas do Brasil e de Moçambique?
Lembro versos de Noémia de Sousa e de Virgílio de Lemos, que, nos anos 1948-1950, chamaram atenção para a presença de ritmos africanos no samba brasileiro.Pela voz de Duarte Galvão, um dos pseudónimos de Virgílio de Lemos, poeta fundador de "Mshao”, cuja poesia propunha o abandono dos cânones da lusitanidade literária em Moçambique, ouvem-se também ecos de ritmos e tipos característicos do Brasil nos bairros de caniço da antiga capital Lourenço Marques.
Segundo Virgílio de Lemos, a literatura brasileira era muito lida em Moçambique nos anos 1950 e 1960. Havia contacto com os poetas de São Paulo e com a Antropofagia Cultural de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que foram muito importantes para ele compreendera necessidade de ruptura em relação à poesia colonial, antes praticada pelos primeiros poetas moçambicanos. Augusto dos Santos Abranches foi, nos anos 1950, o responsável pela divulgação da literatura brasileira em Moçambique. Virgílio de Lemos tem um poema que se intitula "Essa negra Tembê”, cuja intertextualidade com "Essa negra Fulô”,do poeta brasileiro Jorge de Lima, também é bastante evidente, ractificando o intercâmbio constante ocorrido entre a literatura brasileira e a moçambicana.
A presença do Brasil não se verifica apenas nos anos 1950 e 60. Também na poesia produzida no pós-Independência moçambicano se faz notar como, por exemplo, em Luís Carlos Patraquim, poeta dos anos 1980.
Na ficção, Mia Couto, cuja prosa é perpassada pela dimensão do poético, há intertextualidades não só com Guimarães Rosa, mas também com Manuel de Barros, poeta brasileiro de Mato Grosso, a quem dedica um dos contos do seu livro "Contos do Nascer da Terra”.

 
E relativamente à Literatura de Cabo Verde?
Em Cabo Verde, as marcas da literatura brasileira também foram muito fortes, desde o século XIX, com a poesia de José Lopes, e, principalmente, com "Claridade”, em 1936, que representou uma virada na lírica do Arquipélago. Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Jorge Amado, Gilberto Freyre e outros eram bastante lidos nessa época. Influenciados pelo Modernismo brasileiro, os poetas de "Claridade” romperam com as formas clássicas da poesia, incorporando o verso livre, a não preocupação rígida com as rimas, os temas cabo-verdianos e o uso do crioulo. A poética claridosa fez o testemunho documental do dilema crucial do ilhéu, um ser cindido pelo desejo de ficar e pela necessidade de partir.
Jorge Barbosa, um dos principais poetas claridosos, apresenta grande intertextualidade com o nosso poeta Manuel Bandeira, apropriando-se da metáfora de Pasárgada.
Corsino Fortes foi outro poeta que defendeu o nascer da nação cabo-verdiana, conclamando os emigrantes ao compromisso com o regresso para fortalecer a pátria a ser conquistada. Ensinou ele, em um de seus poemas, "que toda a  partida é alfabeto que nasce / todo o regresso é nação que soletra”. E, para acabar com a fome, alertou para o facto de que Cabo Verde necessitava do empenho de seus filhos. A produção literária de Corsino Fortes representa um grande salto da poesia cabo-verdiana em direção a uma linguagem autenticamente comprometida com o universo ilhéu. O sujeito poético assume os ícones da cartografia insular, os ritmos dos batuques africanos da Ilha de Santiago e inicia o percurso em direção ao resgate dos sons da terra e do mar. A poesia de Corsino apresenta um alto grau de consciência técnica e política. Prima pelo rigor formal e pela contenção da linguagem, lembrando a poética de João Cabral de Melo Neto. Há em seus poemas uma correspondência entre o trabalho estético e o compromisso social. Opera com a força fonémica da palavra, alimento de politização e de metapoesia. Funda, assim, uma poética de reflexão que busca reescrever Cabo Verde com tintas próprias, com o sangue do poeta que goteja cabo-verdianamente ao ritmo dos tambores e fonemas crioulos.
A prosa do Arquipélago também foi, nos anos 1930, 40, 50 e 60, fortemente marcada pelo Regionalismo brasileiro de 30. O romance "Chiquinho”, de Baltazar Lopes, tem, em muitos aspectos, semelhanças com o romance "Menino de Engenho”, de José Lins do Rego. O romance "Flagelados do Vento Leste”, de Manuel Lopes, dialoga com "Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. Como é possível perceber, os elos e os ecos são muitos entre a literatura cabo-verdiana e a brasileira.


Gostaria que aprofundasse um pouco mais a questão das similitudes ou inter-influências entre as ficções narrativas de Angola e do Brasil…
Chamo atenção para o romance "A Gloriosa Família”, de Pepetela, que explora com acuidade o tempo dos holandeses vindos do Brasil para Angola no século XVII. Lembro, também, o romance "Maio, Mês de Maria”, do escritor Boaventura Cardoso, que apresenta uma ambiência "fantástica” semelhante ao romance "A Hora dos Ruminantes”, do escritor brasileiro José J. Veiga. Cito ainda "Mestre Tamoda”, do mais-velho Uanhenga Xitu, que pode ser trabalhado comparativamente, pelo viés do humor e da ironia, com romances do brasileiro Lima Barreto.
Um outro trabalho comparativo pode ser o de estudar romances brasileiros e angolanos que tematizam a "casa” como metonímia das respectivas nações. Menciono, por exemplo, o romance "A Casa Velha das Margens”, de Arnaldo Santos, que se presta perfeitamente a um trabalho desse tipo, na medida em que, "ao escrever a casa angolana”, opera com a ficção e a história, apresentando uma releitura crítica do passado histórico de Angola.
Uma outra comparação possível é entre os escritores Luandino Vieira, Mia Couto e Guimarães Rosa, "monstros sagrados”, respectivamente, das literaturas angolana, moçambicana e brasileira. As obras desses autores encontram-se no cerne dos paradigmas da modernidade, fundando nas literaturas do Brasil,  Angola e Moçambique uma escritura descentrada, caracterizada pela reinvenção tanto da linguagem, como da arquitectura ficcional. Embora se inscrevam na esfera transgressiva da ficção contemporânea, não rompem com a tradição oral, trabalhando com a memória viva e com o imaginário mítico popular. Os três autores captam aspectos de suas realidades regionais: Guimarães focaliza o sertão de Minas, repleto de jagunços, de lendas e leis próprias; Luandino ficcionaliza a vida nos "musseques” luandenses onde o português, principalmente pela influência do kimbundu, se encontra africanizado; Mia Couto, por sua vez, traz para a sua prosa sonhos e crenças do povo moçambicano, anestesiado pelos anos de guerra e violência.
Na obra de Guimarães, o ideológico não aparece de forma explícita como acontece com a ficção dos escritores africanos por nós estudados. Luandino e Mia Couto trabalham abertamente com o social, abordando a temática da revolução, da Independência, da repressão e da liberdade. Entretanto, não denunciam apenas a fome e a miséria; apontam, também, contradições existentes nas sociedades angolana e moçambicana. Os seus textos não caem, em momento algum, no panfletário, pois, como o de Guimarães, operam mitopoeticamente com a linguagem.
Entre os três autores há uma outra identidade, nos seus discursos estão presentes as ambivalências entre o local e o global, entre o social e o existencial, entre o real e o supra-real. Apesar de acentuarem os traços característicos das realidades focalizadas, "desrealizam” as paisagens, criando espaços imaginários que reflectem mitos armazenados no inconsciente popular. Guimarães ultrapassa a geografia dos Gerais e busca, pelo narrar, um sertão cósmico, fonte de conhecimento e investigação existencial: "o sertão-mundo”, nos avessos da linguagem e do humano. Luandino, na trilha rosiana de recriação verbal, persegue as "belezices estéticas”, conforme sua personagem João Vêncio denomina o trabalho poético com a linguagem. Dentro de semelhante vertente, o escritor Mia Couto traz reinventado o manancial da cultura moçambicana para os seus textos e, sem deixar de denunciar o contexto social do seu país, opera com uma cartografia onírica, em que os sonhos se colocam como elementos imprescindíveis ao despertar político de Moçambique.
Os autores comparados utilizam ludicamente a linguagem, alcançando efeitos inusitados da literariedade sígnica: criam neologismos, invertem provérbios. Usando procedimentos da própria língua portuguesa, fazem combinações sintácticas e léxicas inabituais, como: "aeiouava”, "homenzarrou”, "nuventanias” e muitas outras.
Luandino também tem clareza dos procedimentos que realiza com a língua; as suas pesquisas linguísticas são conscientes: busca palavras arcaicas, nos textos dos cancioneiros, recria o português com expressões do kimbundu.
A par dessa imensa artesania da linguagem, os três escritores têm outra afinidade: os seus textos estão cheios de seres de excepção, como crianças, velhos e loucos, personagens que conservam a pureza e, por isso, captam o mistério poético da existência.
Os velhos têm um papel importante na filosofia de vida africana: são os guardiães da memória, os velhos contadores de estórias que passam aos mais jovens a tradição e os conhecimentos ancestrais. As obras de Luandino e Mia Couto são povoadas de "vavós” e "vavôs”, cuja sabedoria ensina o sentido cósmico de viver.
Em Guimarães Rosa, também a velhice é vista com positividade, pois é o tempo privilegiado em que as personagens atingem "a terceira margem da existência”, ou seja, apreendem a poesia do universo.
Outro autor angolano que apresenta evidente entrelace com a obra de Guimarães Rosa é o Ruy Duarte de Carvalho, cujo romance "Desmedida” dialoga com "Grande Sertão: Verdesas”, de Rosa, e com "Os Sertões”, de Euclides da Cunha.
Muitos outros diálogos podem ser realizados entre escritores brasileiros e angolanos. A poesia de João Maimona foi estudada numa tese de Doutorado da UFRJ, sendo comparada com a obra de Salgado Maranhão. A ironia de João Melo e de Pepetela também foram analisadas em comparação com romances de Machado de Assis. Diversos outros elos podem ainda ser estabelecidos. Nesta entrevista, não há espaço para abordar outras possibilidades de comparação que existem e são muitas.
Comprovados os fortes laços que ligam as literaturas brasileira e angolana, só me cabe enfatizar que o estudo comparativo entre elas deve ser sempre orientado no sentido de afirmar a plena e real liberdade humana, seja ela de ordem social ou existencial, colectiva ou individual, filosófica ou literária, pois, como ensina Guimarães Rosa, "o que existe é homem humano: travessia...”


Quando decidiu enveredar pela área de estudos das Literaturas Africanas em Português, qual era o cenário no Brasil?

Qual é o contexto que determinou o interesse das universidades brasileiras pelas literaturas africanas?
Quando enveredei pela área das Literaturas Africanas, havia poucas obras sobre Literaturas Africanas publicadas no Brasil, embora houvesse uma colecção muito importante da Editora Ática, cujos livros me foram muito importantes. Essa colecção data dos anos 1980, quando houve, no Brasil, um forte interesse por essas literaturas e pelos estudos africanos. Mas, nos anos 1990, quando comecei a leccionar na UFRJ, poucas eram as instituições universitárias que abordavam África. O contexto que ampliou o interesse pelas literaturas africanas nas universidades brasileiras foi o da Lei 10.639, de 9 de Janeiro de 2003. Esta lei, promulgada pelo governo Lula, estabelecia as directrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino básico, médio e universitário a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira”.

Pode mencionar nomes de académicos pioneiros, no Brasil, no estudo das Literaturas Africanas?
Sim, destaco em São Paulo, na USP (Universidade de São Paulo), os nomes dos professores Maria Aparecida Santilli, Benjamin Abdala Jr., Fernando Mourão. No Rio de Janeiro, tivemos José Maria Nunes Pereira, na Universidade Cândido Mendes, que, como Mourão, pertenceu a Casa dos Estudantes do Império. Devo a ele o empréstimo de muitas obras, quando estudei para o concurso da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ. Além do Zé Maria, como era carinhosamente chamado, tivemos na UFF (Universidade Federal Fluminense) a Professora Laura Cavalcante Padilha, grande intelectual e amiga que também foi muito importante para mim. As professoras Elisalva Madruga, na Paraíba, também foi uma pioneira, assim como a Professora Simone Caputo Gomes, que defendeu a sua dissertação sobre Daniel Filipe, na PUC/RJ, em 1979. Na USP, também, houve nomes significativos que sucederam o Professor Benjamin Abdala e a Professora Santilli: os das professoras Tânia Macedo e Rita Chaves. Na Bahia, em Salvador, também foi bastante pioneiro o trabalho da Professora Yeda Pessoa de Castro. Em Belo Horizonte, a Professora Maria Nazareth Soares Fonseca iniciou a docência das Literaturas Africanas na PUC/MG, na mesma época em que iniciei, em 1993, no Rio de Janeiro, na UFRJ. Hoje, muitos nomes se destacam, tendo crescido bastante no Brasil o número de docentes da área dos estudos africanos.

 
Recentemente foi jubilada na UFRJ, mas continua ligada ao ensino, agora sem a carga horária anterior?
Sim. Fui jubilada, mas, tendo recebido, em 15 de Dezembro de 2023, da Reitoria da UFRJ o título de Professora Emérita, continuo a leccionar na Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, no Programa de Pós-Graduação de Letras Vernáculas, ministrando disciplinas e orientando teses e dissertações de Mestrado e Doutorado, supervisionando vários estágios de Pós-Doutorado. Só não lecciono mais em turmas de Graduação. Mas, como ainda tenho muitos orientandos, a minha carga de trabalho, embora reduzida, continua ainda bem grande.

Durante a sua formação fez uma temporada em Moçambique, pelo que conhece muito bem a Literatura daquele país. O que nos pode dizer sobre a Literatura de Moçambique, além do que já disse, com destaque para nomes e obras mais influentes?
Numa resposta anterior já tracei um panorama amplo, focalizando várias obras e autores. Contudo, não falei de todos, pois seria impossível. Agora, cito mais alguns, continuando a não poder esgotar a lista. Há na Literatura de Moçambique, como na de Angola e de Cabo Verde, autores muito bons. Dentre estes, Paulina Chiziane, grande escritora, que, merecidamente, recebeu o Prémio Camões em 2021; José Craveirinha, grande poeta, o primeiro a receber o Prémio Camões em 1991; Mia Couto, de quem já falei, e que foi galardoado com o Prémio Camões em 2013. Há escritores moçambicanos muitíssimo importantes: Ungulani Ba Ka Khosa, João Paulo Borges Coelho, Marcelo Panguana, Calane da Silva e vários outros. Infelizmente, não há espaço para citar todos. Há poetas maravilhosos, além do Craveirinha e da Noémia de Sousa: Virgílio de Lemos, Ruy Knopfli, Glória de Sant’Anna, Luís Carlos Patraquim, Eduardo White, Armando Artur, Nelson Saúte. Das novas gerações há vozes poéticas bastante sensíveis que admiro: Guita Jr., Adelino Timóteo, Sangare Okapi, Mbate Pedro, Deusa da África, Hirondina Joshua, Sónia Sultuane, Álvaro Taruma, Eduardo Quive, Amosse Mucavele, Pedro Pereira Lopes, Nelson Lineu, Leo Cote e muitos outros. As listas são sempre incompletas, pois não temos condições de mencionar todos. Por isso, prefiro não citar as obras desses autores para não incorrer no esquecimento de algum título importante. Apenas destaco dois romances africanos considerados dentre os melhores publicados no século XX: "Ualalapi”, de Ungulani Ba Ka Khosa, e "Terra Sonâmbula”, de Mia Couto.

 
Fazemos a mesma pergunta mas em relação a Cabo Verde, que tem uma literatura sobre a qual também escreveu…
Cabo Verde tem uma literatura também muito instigante. Dois autores receberam o Prémio Camões: Arménio Vieira e Germano Almeida. Escrevi menos sobre Cabo Verde, mas organizei uma antologia sobre o mar na poesia cabo-verdiana que foi bastante elogiada por autoras cabo-verdianas, entre as quais Vera Duarte e Dina Salústio.
Sendo Cabo Verde um arquipélago formado por dez ilhas e vários ilhéus, o mar sempre teve uma preponderante importância no imaginário cabo-verdiano. Integrado à paisagem, funciona como uma imensa fronteira líquida e, ao mesmo tempo, como amplo horizonte que se abre ao olhar dos habitantes, os quais apresentam em relação a ele sentimentos contraditórios: ora o entendem como carcereiro de seus anseios por longínquas terras, ora o concebem como caminho lógico para o povo das ilhas, cuja sina marinheira fez do cabo-verdiano um ser, através dos tempos, fadado à emigração e às aventuras oceânicas.
O mar que aprisionava e cercava as ilhas não é mais, a partir dos claridosos, associado às caravelas portuguesas. Passa a ser visto apenas como o Atlântico, cujas águas também banham o Brasil e levam às ilhas as vozes poéticas do Modernismo brasileiro, particularmente as de Manuel Bandeira e Jorge de Lima que tanto marcaram essa geração poética cabo-verdiana, cujos principais poetas foram Jorge Barbosa e Manuel Lopes.
Nostalgia e saudade, expressas pelo ir e vir das ondas e pelo canto dolente das mornas, revelam a não resolução da dicotomia entre ficar/partir, entre aprisionar/libertar. O oceano permanece como fronteira a separar o habitante de Cabo Verde do resto do mundo. Há na poesia dos claridosos uma ânsia de evasão. Já, a geração seguinte, a do poeta Ovídio Martins, propõe a anti-evasão, o ficar para resistir.
A Geração Certeza, em conexão com o realismo crítico português e o regionalismo brasileiro de 1930, faz críticas à seca, à fome e à miséria em Cabo Verde. Os romances brasileiros de José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado foram muito lidos em Cabo Verde, conforme já demonstramos na nossa primeira resposta a esta entrevista. Manuel Ferreira escreve o romance "Hora di Bai”; Orlanda Amarílis denuncia a opressão feminina em Cabo Verde, onde grande parte da elite crioula reproduzia comportamentos absorvidos do colonialismo português.
Cabo Verde tem grandes poetas: Corsino Fortes, Arménio Vieira, Mário Lúcio, Filinto Elísio, João Vário, José Luís Hopfer Almada, José Luiz Tavares e muitos outros. O fim  do ano 1980 e a década de 1990 são marcados por um desencanto na área literária. Em 1991, há a publicação de "Mirabilis: de veias ao sol” (ALMADA,1991: introd.), antologia organizada por José Luís Hopffer Almada, que reúne os "novíssimos poetas de Cabo Verde”, divulgando a poesia cabo-verdiana produzida após o 25 de Abril. O não cumprimento das promessas de justiça social, depois da Independência, gera um desalento que domina também os meios literários. Entretanto, lembrando-se de que, mesmo no deserto, cresce uma planta chamada mirabilis, surge a geração mirabílica, oferecendo-se como resistência poética a esses anos de "mau tempo literário”. Na apresentação da antologia, seu organizador, José Luís Hopffer Almada, define a profissão de fé desses novíssimos poetas, cuja poesia empreende uma profunda reflexão sobre o presente cabo-verdiano.
Entre os poetas da geração mirabílica, há Dina Salústio, Vera Duarte e outras mulheres que fundam uma poética feminina. O interessante é que, em Vera, o mar está intimamente associado ao seu discurso. Vera funda com a sua poesia um universo poético, no qual a mulher almeja ser sujeito do seu próprio desejo. Com essa poética de contestação da submissão feminina, o eu-lírico rompe com a ideia do "cais da saudade” ("cais da sôdade”, em crioulo) que sempre aprisionou as mulheres cabo-verdianas ao espaço circunscrito das ilhas do Arquipélago. Além de Vera Duarte, destacam-se também entre os mirabílicos: Manuel Delgado, Canabrava, David Hopffer Almada, Kaliosto Fidalgo, Luís Tolentino, Dina Salústio, Paula Martins,Vasco Martins, José Luís Hopffer Almada, entre muitos outros.
Na novíssima poesia cabo-verdiana o mar não é mais visto como prisão, espaço de evasionismo ou metáfora utópica da liberdade social. Apresenta-se, agora, como espaço de reflexão, de mergulho nas profundezas interiores e existenciais, como local de passagem e de abertura para o mundo.
A actual prosa cabo-verdiana caracteriza-se por uma grande diversidade de temáticas e estilos. São muitos os autores, vou apenas citar alguns: Germano Almeida, Danny Spínola;Arménio Vieira, Mário Lúcio, Dina Salústio, Vera Duarte e muitos outros.

 
E a mesma pergunta é igualmente, válida para Angola…
Penso que, em outras questões desta entrevista, já abordei um pouco a importante trajectória da Literatura angolana, cujos poetas e escritores são muitos, dentre os quais vários se destacaram ao longo dos anos. Na produção poética angolana das últimas décadas, uma heterogeneidade de tendências reflecte a dispersão da poesia que oscila entre a revitalização de formas orais da tradição  e a ruptura/e  ou recriação em relação a alguns dos procedimentos  literários adoptados por gerações anteriores.
A par do desencanto frente a um social prenhe de contradições, muitos poetas, actualmente, continuam, entretanto, a escrever versos, a maioria dos quais se oferece como instância crítica de reflexão acerca dos sofrimentos do povo angolano. Fundir a consciência do próprio fazer literário a uma reflexiva análise do contexto social é um dos procedimentos recorrentes da poesia angolana pós-2000.
Nas origens das letras angolanas, "sonhar a terra” constituiu-se como uma das primeiras quimeras, embora, na poesia do século XIX, essa utopia se tenha expressado segundo os valores nativistas. Nas primeiras décadas do século XX, a poesia ressemantiza metaforicamente a terra com elementos do imaginário ancestralafricano. Mas é com os poetas do grupo dos "Novos Intelectuais de Angola” que se dá o salto decisivo rumo à formação de um sistema literário voltado para a realidade da própriaterra, erigindo-se, assim, o sonho do "Vamos Descobrir Angola!” É, nos anos 1950, com a geração poética da Revista "Mensagem”, constituída pelos poetas Viriato da Cruz, António Jacinto, Agostinho Neto, entre outros, que a poesia angolana se consagrou, cantando as gentes e as tradições de Angola, exorcizando também opressões sofridas durante o colonialismo. Nos anos 1960 e início do 70, muitos poetas se voltaram para os ideais da Revolução e cantavam as armas como metáforas da luta pela Independência almejada. Paralelamente a esse viés poético, existiu, entretanto, na cena literária angolana desse período, uma safra de poetas afastados dos paradigmas guerrilheiros e voltados para o próprio chão angolano. A poesia desse grupo buscava recuperar "os hábitos da terra”, os ecos longínquos da memória ultrajada, a cartografia de processos poéticos emergentes que operassem com a eroticidade da língua portuguesa recriada por "saberes, sabores” e ritmos angolanos. É o caso, por exemplo, de grandes poetas, entre os quais Ruy Duarte de Carvalho, Manuel Rui, David Mestre, Arlindo Barbeitos, cuja produção apresentava como principal característica a consciente opção pela metapoesia. Sintetiza bem a posição dessa geração o conhecido verso de Ruy Duarte: "o texto como esforço de existir”. Afastando-se da poética de combate, a poesia desse grupo, voltada para a redescoberta ética e estética do poder da palavra e da imaginação criadora,  caracterizou-se pela consciência crítica acerca do acto de escrever, por um mergulho abissal nas entranhas da própria poesia, embusca de procedimentos inovadores. O poema passou a ser, assim, o lugar do encontro do poeta consigo mesmo, o local, portanto, da descoberta existencial, política e literária.Nesse sentido, deu passagem à poética dos anos 1980, definida por Luís Kandjimbo como "Geração das Incertezas”, e à poesia dos anos 1990 e primeiras décadas dos anos 2000, cujos traços recorrentes são a decepção e a angústia diante da situação de Angola que não conseguiu resolver a questão das desigualdades sociais dentro do país.
Além dos grandes poetas anteriormente citados, Angola tem outras vozes poéticas muito importantes: João Maimona, João Melo, José Luís Mendonça, Paula Tavares, Luís Kandjimbo, Lopito Feijoó, Amélia Dalomba, João Tala, Zetho Gonçalves, David Capelenguela, Fernando Kafukeno, Nok Nogueira, Abreu Paxe, Ondjaki, Hélder Simbad, Cíntia Gonçalves (Marquita 50), Gociante Patissa, Job Sipitali, Tchiangue Cruz, entre outros. É impossível citar todos.
Dentre as produções pós-2000, também destacamos dois significativos movimentos literários: o Levarte e o Litteragris. Cabe também ressaltar a "Poetry Slam” caracterizada pelas "batalhas” de poesia vocal, ou seja, a "spokenword”, em que novas vozes femininas angolanas vêm surgindo com força, havendo, inclusive, o grupo "Muhatu”, vocábulo que, em kimbundu, significa "Mulher”.
Quanto à prosa de ficção angolana, de acordo com Inocência Mata (2006) e Luís Kandjimbo (2001), ficou consolidada, principalmente, no período pós-Independência, levando-se em conta a produção de grandes romancistas, autores também de contos que ficaram consagrados na literatura angolana, como, por exemplo, "A História da Galinha e do Ovo”, de Luandino Vieira (Prémio Camões/2006, honraria recusada pelo escritor), Arnaldo Santos, Pepetela (Prémio Camões/1997), Manuel Rui, Boaventura Cardoso, Uanhenga Xitu, Ruy Duarte de Carvalho, Henrique Guerra, Henrique Abranches, Dario de Melo, Fragata de Morais, José Luís Mendonça, João Melo, Roderick Nehone, José Eduardo Agualusa, João Tala, Carmo Neto, Isaquiel Cori. Da geração mais jovem lembramos alguns escritores que vêm se destacando: Ondjaki, Adriano Mixinge, Albino Carlos, Kalaf Epalanga, Benjamim Mbakassy, Mwene Vunongue, João Fernando André, entre outros.
Da prosa feminina angolana registamos os nomes de Rosária da Silva, Maria Celestina Fernandes, Isabel Ferreira, Marta Santos, Sónia Gomes, entre outras. Ressaltamos, ainda, importantes escritoras angolanas que residem fora de Angola: Ana Paula Tavares, Djaimilia Pereira de Almeida, Yara Monteiro, Aida Gomes.


Como é que chega ao estudo deste ou daquele autor? A presença na media ou há um circuito de recomendação?
Depende muito. Algumas vezes leio artigos e vejo notícias de obras publicadas. Outras vezes, as obras me são recomendadas. Sempre que viajo, vou às livrarias, à União dos Escritores Angolanos, à Associação de Escritores Moçambicanos, à Associação de Escritores Cabo-Verdianos. Procuro autores desses países e também da Guiné-Bissau, de São Tomé e Príncipe e peço sugestões de obras publicadas.

 
Dedicou quase toda a sua vida académica ao estudo e divulgação das Literaturas Africanas em Português no Brasil. Hoje pode dizer que valeu a pena? Se fosse possível recuar no tempo escolheria a mesma área de estudo?
Eu dediquei grande parte de minha vida à Literatura Brasileira. A partir de 1993, entreguei-me totalmente às Literaturas Africanas. Penso que valeu sim. Escolheria,novamente, as Literaturas Africanas. Como diz Mia Couto, a África vaza a alma da gente e não há volta.

 
Durante o seu percurso académico sentiu algum tipo de reconhecimento institucional nos países africanos cujas literaturas  tanto estudou e promoveu no Brasil?
Sim. Sempre que viajei a Angola, a Moçambique, recebi livros para poder desenvolver o meu trabalho no Brasil. Em Angola, fui convidada a integrar à Academia Angolana de Letras como Sócia Correspondente. Em Moçambique fui convidada a fazer parte da Comissão de Honra da Fundação Fernando Leite Couto. Fiquei muito honrada com essas duas honrarias.

 
E como é a sua relação com os autores?
De muito respeito, de grande admiração e amizade. Procuro divulgar as suas obras em artigos, em congressos, em entrevistas. Fiz dentre muitos escritores africanos grandes amigos.

 
Pelos vistos teve sempre o cuidado de escrever sobre obras e autores de que gostou. Qual é a razão dessa opção? Foi para evitar dissabores?
Sou uma pessoa muito emotiva, mas, ao mesmo tempo, também muito racional. As paixões me movem, porém também a lucidez e as reflexões são de grande importância para mim. Assim, procuro sempre escrever sobre o que me toca profundamente. Os afectos me impulsionam. Mas, afectos não como sentimentos. Entendo o afecto como potência criadora, como força vital que nos faz sonhar. Não como um sonho romântico, mas como uma força interna que nos empurra para a vida, para as realizações, para a beleza das artes. Escolho obras e autores que me emocionam e me levam a pensar sobre o mundo, sobre a história, sobre a política, sobre o ser humano, sobre a natureza.


Do conjunto dos autores angolanos que estudou, quais são as principais características da literatura angolana?
Há uma diversidade de tendências. Muitos escritores, actualmente, continuam, entretanto, a escrever acerca da História de Angola e dos problemas vivenciados pelo povo angolano. É, pois, como resistência, que a literatura sobrevive emAngola, ora trilhando os caminhos da sátira e da paródia, ora os da metalinguagem e do erotismo, ora os dos mitos e da História. Os sonhos sempre nutriram o sistema literário angolano e, nos tempos presentes, embora esgarçados, ainda constituem uma espécie de energia subterrânea que impulsiona a imaginação criadora, combatendo, assim, o imobilismo cultural. Obras, tanto da poesia, como da prosa, que fundem a consciência do próprio fazer literário a uma reflexiva análise do contexto histórico-social, são representativas das tendências recorrentes da literatura angolana das últimas décadas.
Ultimamente, a história tem dado à memória uma grande relevância, demonstrando como os actos rememorativos se relacionam com o fazer histórico. A Literatura, por sua vez, também vem priorizando as relações entre escrita, memória e esquecimento. Os romances angolanos contemporâneos, por exemplo, assim como os moçambicanos, os cabo-verdianos e os guineenses, têm trabalhado com escritas de memórias, sejam essas reinvenções de narrativas orais individuais e/ou de registos da memória social colectiva. Alguns dos romances produzidos neste milénio se constituem como escritas que revisitam e colocam em questão aspectos da História, da Geografia e das culturas locais. Outras características da prosa contemporânea angolana são a tensão entre tradição e a modernidade; a ressignificação do património oral; o trabalho com a meta ficção historiográfica, cujo olhar pós-colonial repensa o passado; a ironia e a sátira que, em alguns autores, fazem questionamentos mordazes, contribuindo para o desenvolvimento da consciência crítica dos leitores não só em relação ao contexto angolano, mas também ao do mundo globalizado.
Há narradores e personagens muito originais em romances de vários autores, entre os quais Pepetela, Luandino Vieira, Boaventura Cardoso, Manuel Rui, Uanhenga Xitu, Arnaldo Santos, José Luís Mendonça, Adriano Mixinge, Ondjaki, Agualusa, entre outros.

 
Fazem falta aos estudiosos da sua área de estudo, brasileiros e de outros países, contactos, ligações, intercâmbio com universidades e académicos dos países africanos, e nomeadamente, de Angola?
Com certeza. Os diálogos são imprescindíveis. Quando comecei a ensinar Literaturas Africanas, não havia quase nada na Internet. Michel Laban, com a sua generosidade e grandeza intelectual, me ajudou muito. Eu escrevia para ele perguntando os significados de muitos termos das línguas africanas e ele respondia com a maior paciência. Também Ana Paula Tavares, Manuel Rui, Pepetela, Boaventura Cardoso, Virgílio Coelho, Fernando Kafukeno, Conceição Barata, Mena Gioveth, entre outros, me auxiliaram sobremaneira. O mesmo ocorreu em Moçambique, por parte de Lourenço do Rosário, Mia Couto, Fernando Leite Couto, António Sopa, Nelson Saúte, Fátima Langa, Calane da Silva e muitos mais. Em Cabo Verde, devo a Vera Duarte me mostrar a diversidade de algumas Ilhas, de obras literárias e de escritores cabo-verdianos. Estudiosos das Literaturas Africanas, entre os quais, Ana Mafalda Leite, Inocência Mata, Laura Padilha, Rita Chaves, Tânia Macedo, também contribuíram bastante, na medida em que trocaram ideias comigo. Amélia Mingas convidou-me, em 2013, para leccionar no Mestrado de Letras da Universidade Agostinho Neto, o que muito me honrou e enriqueceu meus conhecimentos sobre Angola. Essas trocas e intercâmbios foram fundamentais.

 
E não farão também falta encontros, ligações, intercâmbios entre estudiosos das literaturas africanas de todo o mundo? Tem havido esses encontros?
Claro que fazem muita falta. Nesses eventos, conhecemos escritores, conseguimos comprar livros que, infelizmente, não costumam circular entre os países, como deveriam. Participei de muitos eventos em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Portugal e outros países. Com a pandemia, os eventos rarearam. Agora estão retornando, entretanto, as passagens aéreas ficaram muito caras após a Covid-19.

 
No Brasil qual é a saída profissional dos cursos de Literaturas dos Países Africanos de Língua oficial Portuguesa?
A lei 10.639, de 09/01/2003, criou a obrigatoriedade do ensino das Literaturas Africanas e da Cultura Africana em todos os níveis de ensino, em todo território brasileiro. Assim, a saída profissional é o magistério em escolas do ensino básico, médio e universitário.

 
Jubilada que está, como será a sua rotina? Continuará a estudar a escrever? Pensa viajar?
Eu fui honrada com o título de Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o que me permite continuar a leccionar e orientar na Pós-Graduação. Tenho, actualmente, nove orientandos. Ainda não consegui sentir o gostinho da jubilação. Aprecio muito, também, diversas artes: cinema, pintura, escultura, música. Penso em continuar a oferecer, anualmente, em um dos semestres, uma disciplina de Literaturas Africanas na Pós-Graduação em Letras da UFRJ. No outro semestre, penso em viajar, ler, estudar, organizar eventos, mostras de cinema, exposições de pintura, escultura.

 

Tem livros por publicar?
Por escrever?
Tenho muitos artigos sobre obras literárias que apresentei em congressos. Penso  reuni-los em livros. Mas, ainda preciso organizá-los. Agora, espero ter um tempo maior para mim.

 

Eventualmente uma pergunta provocatória: para que serve a crítica literária?
Na verdade, serve aos próprios críticos que se deliciam com o prazer de suas análises e interpretações. Contudo, se os ensaios forem escritos com arte e poesia, usando uma linguagem sem excesso de terminologias teóricas, ou seja, um discurso que todos consigam entender, acredito que podem captar novos leitores, incentivando-os a ler mais, a pensar, a ter uma aguda consciência crítica.

 

O que é que mais a preocupa neste Mundo em que vivemos?
O individualismo exacerbado pelo consumo capitalista, a falta de ética, a violência urbana, a ausência de respeito em relação à natureza, ao meio ambiente, o descaso com a cultura e com a educação em muitos dos nossos países. Quando fui a Cuba, em 1986, a frase de José Martí que mais me tocou foi: "Só um povo culto será um povo livre”. Precisamos de pensadores como este cubano, como Amílcar Cabral e outros líderes que sempre defenderam o direito à cultura para todos.

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