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“Fazia-me confusão ver o tomate ou a manga a estragar-se”

Victória Ferreira

O desperdício de grandes quantidades de produtos do campo como o tomate, que podia ser seco e vendido no mercado internacional a um preço alto, levou Marlene Eunice José a interessar-se pelo processamento de alimentos para exportação.

28/03/2024  Última atualização 07H25
Criadora de produtos alimentares da marca Mavu almeja alcançar também o mercado africano © Fotografia por: Raimundo Mbia | Edições Novembro
"Fazia-me confusão ver o tomate, a manga ou o ananás, dependendo da época, a estragar-se. Os que não eram vendidos podiam ser aproveitados de outra forma. Também gostava de frutos secos e havia escassez na produção local”, disse.

Marlene Eunice José criou a empresa FoodCare em 2018, vocacionada no processamento de produtos naturais, com a marca "Mavu”(areia, terra, na língua nacional Kimbundu) cujo foco principal é a exportação. Começou apenas com quatro produtos, a quizaca, a muteta, o tortulho e a moamba de ginguba, mas hoje produz cerca de 25 alimentos.

Produtos como o polvilho doce, bagre, catato, quizaca crua e cozida fazem parte da lista. A quizaca e a muteta são congeladas para manter a qualidade dos produtos.

A empresa produz outros alimentos a pedido dos clientes, como a rama, a gimboa e a moringa. A empreendedora revela que há, também, pedidos de óleo do caroço de múcua e a palha para fazer chá, que ainda carecem de investigação.

A FoodCare consegue fechar contentores de 20 pés, com 13 a 14 mil toneladas, e de 40 pés, com 23 a 26 toneladas de produtos, num período entre 45  e 60 dias a carregar, dependendo da disponibilidade de matéria prima. "Mas, a meta é fechar em duas semanas e, para isso, são necessárias máquinas com maior capacidade”, sublinhou.

Padrões internacionais

Marlene Eunice José lembra que um dos maiores desafios que teve foi adequar as práticas de processamento aos padrões internacionais.

Uma parte dos produtos é vendida no país e, desde 2023, exporta para a Europa, Estados Unidos e Canadá.

A intenção, disse, é começar a exportar, também, para o mercado africano, havendo já negociações com a República Democrática do Congo e a África do Sul.

Mas, para quem está no começo, o melhor é fazer a exportação através de um representante, ao contrário da distribuição directa, que fica mais onerosa.

Por outro lado, pretende também incluir, brevemente, por causa dos pedidos internacionais, produtos de outras regiões de África, que não se encontram em Angola.

Transformação dos produtos

Para a transformação dos produtos, há uma série de procedimentos e cuidados que tem de observar, desde a colheita ao transporte, para manter o cuidado com a qualidade do produto.

Marlene conta que, no princípio, houve uma certa resistência do consumidor local, que pensava serem produtos estrangeiros, por causa das embalagens, e observa que "o angolano também é capaz de inovar”.

A empreendedora acredita que uma forte aposta na agricultura pode retirar Angola da dependência da importação e alavancar a economia do país.

 "O país foi construído com a agricultura e não com o petróleo. Afastámo-nos da Agricultura durante muitos anos por causa da guerra, mas está na hora de recuperarmos as nossas origens. O país tem uma agricultura rica”, afirmou

Busca de conhecimento

Marlene entende que a busca do conhecimento na área de interesse deve ser o primeiro e maior investimento para um empreendedor.

"A maior parte dos empresários em Angola, jovens como eu, procuram dinheiro para as suas iniciativas, mas, antes, devemos nos preocupar com o conhecimento”, aconselhou.

Para a empresária, "ainda que tivermos um bom financiamento, precisamos saber como aplicá-lo, para termos sucesso”.

"Existe muito suporte internacional, pode não parecer, mas para aqueles que se dedicam efectivamente. Desde que comecei a empreender, tive muitas formações gratuitas, que, infelizmente, não estão disponíveis em português”.

Formada em Relações Internacionais, Marlene tem uma vasta experiência, por ter trabalhado em várias indústrias, no mercado nacional, para além de despachante oficial.

Começou a trabalhar cedo

Natural de Luanda, de 41 anos, é a mais velha de 10 irmãos, começou a trabalhar desde cedo com a mãe, Rita Oliveira, que era pasteleira e fornecia bolos ao supermercado Jumbo, e nas férias ajudava o pai, Joaquim Pedro, que tinha o comércio de frutas e legumes. "Todas as semanas, tínhamos de entregar 1001 bolos ao supermercado. Vivi e ganhei toda uma experiência de produção. Também ajudava com as compras”, lembrou.

É grata aos pais pela educação que recebeu, a formação e o princípio do trabalho árduo.

A empresária participa, desde 2021, em feiras internacionais para conhecer o mercado, levar amostras dos produtos e manter contactos com possíveis compradores. "Visitei as áreas de venda dos produtos africanos na Bélgica, França, Espanha e Portugal, onde conheci todos os vendedores, e em Nova Iorque, nos EUA”.

A recente exportação para o Canadá foi solicitada pelo próprio cliente, que manteve contacto com a empresa após conhecer os produtos. O Brasil, disse, também é um mercado a atingir.

Crédito para a compra de máquinas

A FoodCare beneficiou, em 2021, de um crédito, cujo valor Marlene Eunice José não revelou, que permitiu comprar máquinas e meios para se manter firme no negócio. Ainda assim, considera que é preciso apostar, cada vez mais nas mulheres, no acesso ao crédito.

"A mulher angolana é muito sacrificada e não tem as mesmas oportunidades de acesso ao crédito como os homens. Mas, os estudos indicam que as mulheres são mais céleres a pagar o crédito”.Marlene José define a mulher angolana como excepcional, "um estudo a nível mundial indica que somos  as que mais empreendemos, mas o número de empresas que começam e morrem até mesmo a senhora da banana é elevado devido às dificuldades que vivemos”.

Crise da Covid-19

Como todo e qualquer negócio, Marlene também teve os seus altos e baixos. Em 2020, a empresa foi afectada pela situação da Covid-19, mas hoje, cinco anos depois da criação da mesma, considera que passou pelo "vale da morte”, altura em que as startups morrem, mas agora segue em franco desenvolvimento.

"Lançámos a empresa em Janeiro de 2020 e, em Março, começou a Covid-19. Foi difícil, tinha o pessoal formado e sem poder trabalhar, mas como não queríamos perder, tivemos de pagar mesmo assim para mantê-los. Foi também importante para fazermos as vendas online”, lembrou.

Apesar das dificuldades, houve um grande crescimento na fase da Covid-19, com a ajuda das novas tecnologias. "Como não podia deixar de ser, a Internet, aliada às novas tecnologias, ajudou muito e permitiu a expansão do negócio, mesmo sem muito investimento no marketing, apenas a promoção dos produtos boca a boca”.

A FoodCare emprega directamente  19 trabalhadores e 39  indirectamente. A equipa tem formações online e presenciais com a empresa SGS, que faz o acompanhamento técnico para manter os padrões internacionais.

Empreender não é fácil

Mãe de duas crianças gêmeas, Marlene enfrenta inúmeros desafios nesta jornada empreendedora, o que diminui o tempo de qualidade com a família, pois com pouco pessoal qualificado, ela ainda tem de se desdobrar e ser o bombeiro onde for necessário.

"Empreender não é fácil, tem de saber gerir o stress, o que estou a aprender agora. É muito sacrifício, porque a princípio temos pouco pessoal capacitado, e temos de ser o bombeiro em todas as áreas. Exige muita adaptabilidade e experiência para ter a bagagem necessária”.

 
FoodCare quer mudar de instalações para um espaço maior

Desafio é aumentar a capacidade de produção

O desafio da FoodCare para este ano é mudar de instalações para um espaço maior, aumentar a capacidade de produção e o número de colaboradores, para fazer face à procura, incapaz de ser correspondida actualmente. Aumentar a capacidade de matéria-prima, bem como fortalecer a cadeia de valor são outras preocupações.

Tem uma capacidade instalada de 35 toneladas por mês, mas devido às chuvas intensas, registadas no país, têm dificuldades com a aquisição da máteria-prima e não conseguem atingir o mesmo nível de produção.

"Temos o carro em Malanje, mas está parado, porque chove. Isto dificulta, porque ficámos sem produção. Os produtos são frescos e têm de ser todos agendados e a hora da recolha, às vezes, falha. Este é mais um dos desafios que temos”, sublinhou.

Toda a produção é local, sem o uso de aditivos ou conservantes. Apenas as embalagens padronizadas são importadas.

Networking com mulheres africanas

Na busca incessante de aprender e trocar experiência, Marlene tem mantido o networking com muitas mulheres africanas empreendedoras, principalmente da África do Sul e Nigéria.

A empresária diz que admira o engajamento delas, e que muitas conquistaram os supermercados nos EUA. Destaca, ainda, o índice de mulheres muito bem formadas, sobretudo na Nigéria. "Infelizmente, o mesmo não acontece em muitas regiões de África, onde as barreiras culturais e tradicionais impedem o crescimento da mulher”, lamentou.

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