Entrevista

Filipe Zau: “Somos uma nação em construção e a cultura joga um papel fundamental”

Matadi Makola e Analtino Santos

Em vésperas do Dia da Cultura Nacional, o ministro da Cultura e Turismo, Filipe Zau, concedeu uma entrevista ao Jornal de Angola, na qual aborda a dimensão histórica da efeméride, destaca o valor da cultura na construção do indivíduo e enumera alguns projectos a serem concretizados no sector. Entre as novidades, Filipe Zau adiantou detalhes da exposição a ser inaugurada hoje, às 11h00, no Arquivo Nacional, que reúne peças de marfim recuperadas no exterior do país

08/01/2024  Última atualização 09H00
© Fotografia por: Vigas da Purificação| Edições Novembro

O país assinala hoje, 8 de Janeiro, Dia da Cultura Nacional. Que simbolismo representa a data nos tempos actuais?

Antes de mais, devemos entender culturalmente o país em que estamos. Somos um país multicultural com vários grupos societais, também conhecidos como etnolinguísticos, e um país plurilinguístico. Quer dizer que cada uma destas culturas tem uma personalidade própria e, portanto, ela se afirma por si só enquanto cultura e possuidor de uma língua específica. Portanto, é plurilinguístico com a afirmação destas culturas num todo. Contudo, a cultura nacional é o reflexo de todas estas culturas dentro do espaço territorial onde nós estamos, o Dia da Cultura Nacional reflecte de certa maneira um aspecto que me parece que é extremamente importante, na medida em que, para além do discurso do primeiro Presidente da República, é ele próprio um ícone da literatura angolana e o nosso Poeta Maior, sobretudo após a edição da obra Sagrada Esperança. Uma esperança que tinha a ver com toda uma aspiração de autonomização não só do país, mas da afirmação das suas próprias culturas, não apenas de uma, mas de todas as culturas. Ele levou realmente à União dos Escritores Angolanos nesta data em que os corpos sociais foram eleitos, onde fez um discurso a valorizar o papel e a importância da cultura no desenvolvimento da nação e do próprio país, tendo em conta que a própria cultura, para além do seu factor de identidade, também tem o seu papel de participação do bem-estar social e na economia do país através do desenvolvimento das indústrias culturais e criativas, que também participam de todo um processo que contribui para a receita do país.

As consequências da colonização são muito sentidas na cultura. É um dia que nos remete a esta reflexão?

Devemos dizer que somos uma nação em construção, e a cultura joga um papel fundamental, porque grande parte dos países em África foi traçada pela Conferência de Berlim, em 1884 e 1885, praticamente com régua e esquadro. Portanto, as nações pré-coloniais acabaram por se inserir de acordo com a vontade das potencias coloniais da altura e nós hoje herdamos isto, e as independências dos países respeitaram os traçados fronteiriços das antigas potências coloniais que também não auscultaram de maneira nenhuma as populações que já existiam de modo que todas estas culturas por si só se submetem a uma outra identidade politica que é a nação. Daí a Nação Angolana ser formada por um conjunto de grupos etnolinguísticos societais que formam as culturas nacionais e outras que são transnacionais, reflectida nos países vizinhos. Contudo, a luta das independências criamos os estados e são estes que agora têm que construir as nações, e ao construir a nossa nação é necessário que ela exista porque estado sem nação soçobra. Então, esta é a importância do Dia da Cultura Nacional. É uma afirmação das identidades culturais existentes no nosso país, dentro do mosaico cultural que pertence todo ele a uma mesma nação que se submete por si só a uma identidade politica que é aquela que chamamos a nossa angolanidade, que a acaba por ser simultaneamente uma identidade politica, mas também um sentimento de cultura nacional. Por exemplo, o indivíduo que está em Cabinda ou Moxico pode não conhecer quem está no Cunene ou Luanda, mas sabe que lhe pertence. É este o sentido de identidade que a angolanidade abrange e que ganha automaticamente o mesmo sentido enquanto identidade politica, mas que não perde pela lógica da interculturalidade que é algo que temos de desenvolver através da formação e educação no sentido de pertença.

O discurso do Presidente Agostinho Neto, em 1979, originou este dia. Como interpretamos a sua mensagem actualmente?

O discurso do Presidente Agostinho Neto foi extremamente importante na medida em que tem um conceito que nós podemos chamar de endogeneidade, e quando falamos nela olhamos automaticamente nas nossas tradições, as nossas línguas africanas e necessariamente também não deixamos de olhar para a língua portuguesa, visto que a maior parte dos escritores que nós conhecemos escrevem em língua portuguesa. As línguas, do ponto de vista patrimonial, não têm dono, porque é de quem as fala. Neste sentido a língua portuguesa também nos pertence porque somos usuários e locutores desta mesma e também das africanas que estão aqui. Então, penso que a interpretação deste discurso é olhar para as tradições sim, para as nossas línguas, e a necessidade de as promovermos como identidade cultural, mas não perder o sentido da modernidade. Penso que isto era a grande preocupação, olharmos para aquilo que nos identifica, mas não perder o sentido da modernidade que também temos, alguma noção de alteridade, o outro que é diferente de mim e que eu só conheço quando no confronto com o outro tiver a possibilidade de fazer esta diferença.

A cultura joga um papel fundamental na construção do indivíduo…

Penso que o nosso caminho, no futuro, é que este dia possa ser um de reflexo para sermos educados para o sentido de pertença. Sermos educados para a alteridade, para a convivência pacífica com outro e para a diferenciação do que é meu e o que é do outro. Também para o ecumenismo no sentido das diferentes religiões em todo o mundo e que têm de conviver de forma pacifica.

Qual é a programação do acto central?

Será em Luanda. Nós estávamos para fazer no Huambo mas foi alterado. A gala da tradicional entrega de certificação vai acontecer no HCTA. Serão contemplados aqueles que eu chamo até hoje de "operários da cultura". Não gosto da expressão "fazedores de cultura”. Por exemplo, o compositor é um operário ao trabalhar com as letras e os sons. Portanto, é um operário, como é o artífice, o escultor, o artesão, ele molda o som. No meu entendimento isso não é bem o fazedor de cultura, o operário para mim tem mais o sentido do criador, do inovador, porque a cultura tem o sentido dinâmico, resultante do dinamismo cria inovação, a novidade dentro da própria cultura. Por isso, vamos certificar aquelas pessoas das diferentes áreas que nos pareceram que fizeram um trabalho bom. Não será possível reconhecer todos.

Uma fonte garantiu que vai ter três momentos, designadamente no Palácio de Ferro, depois uma exposição muito importante no Arquivo Nacional com peças recuperadas em museus no exterior e a gala…

O Dia da Cultura Nacional não pode só ser para comer e beber, porque serve essencialmente para promover e divulgar a cultura no seu todo. Não é reduzido apenas à lógica da recreação. No Palácio de Ferro vamos ter uma exposição alertando a importância da cultura no nosso dia a dia. Porque quando falamos de educação para o desenvolvimento nós temos três aspectos: primeiro a educação para o trabalho, ou seja, todos nós devemos ser educados para a actividade laboral. Segundo a educação para a cultura, a noção de sentido de pertença, alteridade, ecumenismo, vivência, valores de referências, de patriotismo, de sentido estético e épico. Tudo isto se enquadra num indivíduo que podemos considerar de culto que deve ter todos estes requisitos. Outro aspecto é a cidadania, o exercício pleno. Então, este tripé é que concorre para os fins de uma educação.

E o que teremos no Arquivo Nacional de Angola?     

Por haver museus que ainda estão a ser recuperados e melhorados, é uma exposição de um conjunto de peças que estavam no exterior e fomos recuperá-las em alguns países da Europa e que agora vão fazer parte do nosso acervo museológico, de onde saíram indevidamente. Nós estamos a dar um sinal de acordo com a nossa politica nacional e, com as recomendações da UNESCO, estamos a ir buscar e recuperar aquilo que nos pertence. A própria UNESCO recomendou que o acervo deve ser devolvido porque nós também temos museus. Dizem que nós, africanos, não temos condições para receber aquilo que é nosso, o que parece que eles não conhecem de facto os nossos países. E quando não temos, sabemos criar as condições indispensáveis para termos aquilo que nos pertence e respeitamos necessariamente o nosso sentido de alteridade.

Quantas peças foram recuperadas?

São cerca de cem peças de marfim e, curiosamente, uma cadeira do século XVII ou XVIII. Devo dizer que nós próprios, por apoio enorme do senhor Presidente da República, João Lourenço, fomos a um leilão comprar peças que precisamos, mas que tinham saído do país legalmente. Nós estamos a criar museus e para isso devemos ter o nosso acervo. Lá fora há peças que saíram legalmente e outras que estão em museus e que estamos a solicitar a sua devolução, isto por recomendação das Nações Unidas, nomeadamente pela UNESCO. Não estamos a pedir nada a mais, apenas que haja o princípio da horizontalidade das relações que os diversos países devem proporcionar. Este retorno das peças que são nossas é um sinal de que estamos a dar. Estamos envolvidos neste movimento, a trabalhar com uma organização de pessoas que nos está a ajudar neste sentido do contacto com os diferentes países para a recuperação de peças que nos pertencem. Sabemos que a Bélgica fez uma devolução de um acervo para o Congo e nós, neste momento que Mbanza Kongo é Património da Humanidade, estamos a ver para o Museu dos Reis, que será erguido naquela histórica cidade. Portanto, estas são as razões também para um outro museu que vamos construir, neste caso o Museu da Resistência.

Fale-nos um pouco do que será o futuro Museu da Resistência…

Vai desde o contacto que tivemos de resistência à colonização e ocupação estrangeira, de acordo com as nossas fontes, podemos dizer desde 1482 até possivelmente a saída dos sul-africanos. Vamos enquadrar, estamos neste momento a trabalhar nos termos de referência e equacionar todo o projecto do Museu da Resistência, com apoio do Presidente da República para este trabalho como vamos ter também. Para além do Centro Cultural do Huambo que vamos inaugurar agora estamos também a trabalhar no nosso Centro Cultural de Luanda

Um dos desafios deste ano é inscrever o semba na lista do Património Mundial. Como está este processo?

Já veio um representante da UNESCO que trabalhou juntamente com o Carlos Lamartine, Dionísio Rocha, Marito Furtado (Banda Maravilha) e o Instituto do Património Cultural. O dossier está a avançar, mas já perguntam pela kizomba. Qual é o mais antigo e tem maiores referências? É e por aí que temos de começar. Quantas pessoas estão a escrever como deve ser e reconhecidamente? Vejamos o livro do Carlos Lamartine, ajuda a trabalhar em estudos correctos e referências correctas sobretudo para que os próprios indivíduos que vêm da UNESCO que entendem as coisas cientificamente. Não porque acho ou digo, mas é preciso que nós na nossa vida passemos a separar o que é opinião e o que é ciência, porque muitas vezes as pessoas pensam que a opinião deles é já ciência. A UNESCO representa educação, ciência e comunicação, então eles regem-se por estas regras e quando não sabemos fundamentar suficientemente fica muito difícil nós fazermos passar aquilo que é do nosso próprio domínio de conhecimento para um domínio universal maior.

No discurso de fim de ano falou de uma actualização da Lei do Mecenato. Como o ministério prevê trabalhar nesta área?

O ministério foi sentindo algumas necessidades, como a questão dos patrocínios de toda a maneira e para todas as pessoas ser impossível, não há orçamento que resista a isto. Há coisas obrigatórias que nós temos de fazer, como pagar salários, cumprir com as rubricas dos projectos que temos que fazer durante o ano, mas não há nenhuma rubrica para patrocínio e dar a toda a gente, isto não existe. Podemos muitas vezes dar o nosso patrocínio institucional ou eventualmente apoiar um ou outro projecto de interesse nacional. As empresas têm uma responsabilidade social e é dentro dela que devemos muitas vezes dar respostas a algumas preocupações da cultura. Então, a primeira coisa que procuramos fazer é a carteira profissional para que preferencialmente sejam os artistas que exercem esta profissão a ter esta possibilidade de empregabilidade. Foi a forma de organizar a classe. Com a carteira profissional ele desconta para a sua segurança social, então é um funcionário e está a garantir no futuro a própria reforma. Temos artistas que envelhecem e morrem numa certa idade em condições difíceis. Falamos com a Associação dos Resorts de Angola e promovemos a assinatura de um protocolo com a UNAC-SA. E estimulamos os restaurantes a fazerem também a mesma coisa e ter uma tabela definida para os artistas puderem ter as suas actividades e assim, mediante os contratos que estabelecerem, protegerem-se do ponto de vista social. Por essa razão começamos a colocar ao Ministério das Finanças uma discussão que levasse as pessoas a criar uma agenda cultural dentro destes hotéis e terem facilidade na questão dos impostos, isto fez rever a questão da Lei do Mecenato para criar esta relação.

Centro Cultural de Luanda no antigo Roque 

O Centro Cultural do Huambo vai jogar um papel importante na promoção do circuito cultural da região Centro-sul?

Sim, porque a maior parte das coisas estava fixada aqui em Luanda e nós conhecemos que quando falamos de cultura a gente não sai do corredor Luanda- Malanje. Tal como disse logo no princípio, é preciso ver que Angola é um país multicultural e as culturas em princípio devem ser promovidas de forma horizontal. Quer dizer, no Leste tem tchianda, mas não é só o Gabriel Tchiema, porque outras tem outras pessoas a desenvolverem o estilo que temos de conhecer. Se conhecemos muito que toca semba em Luanda, por outro lado conhecemos poucos da tchianda, no Huambo temos de conhecer mais além da Edna Mateia, o Bessa, Handanga.

É preciso desconcentrar esta ideia que o artista é apenas em Luanda e que só se afirma vindo aqui. Nós já estamos a tentar fazer isto com o carnaval, porque independentemente do acto central ser em Luanda todas as províncias na mesma altura realizam o desfile.

Onde será erguido o futuro Centro Cultural de Luanda?

Estamos a ver o local e os termos de referência, mas muito provavelmente, quer o Centro Cultural de Luanda, quer o Museu da Resistência, vão ser erguidos ali onde era o mercado do Roque Santeiro.

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