Opinião

Frontalismo

O calendário segue o seu curso normal, sem se ater às irregularidades que vai registando e cuja responsabilidade cabe a todos nós, habitantes deste Planeta, feitos num oito por causa de uma pandemia que desde há um ano nos virou do avesso.

07/02/2021  Última atualização 11H23
Nem a janela  aberta  com o surgimento das vacinas está a permitir ver a profundidade do túnel aberto pela crise pandémica que evidencia, de modo chocante, as diferenças que foram sendo criadas ao longo de séculos e que, de forma redutora, se distinguem entre Norte e Sul, com todas as nuances que isso implica na vida das populações que vivem num ou noutro lado.

Ontem, de entrada na Redacção, dou com uma conversa coloquial. Apanhei a parte em que se dizia que o movimento de migração africana continuava em direcção, essencialmente, à Europa, apesar  dos maus  indicadores que a Covid-19 está a deixar no chamado Velho Continente. A conclusão foi que, apesar dos mais que evidentes riscos, são ainda muitos os que preferem deixar os seus territórios, não por força da globalização, mas por não confiarem nas suas lideranças, na busca de soluções que tragam o verdadeiro desenvolvimento, a educação, a saúde, as oportunidades, o emprego, a equidade.

Não tendo assistido a toda a conversa, antes e depois, ficou-me, contudo, a ideia  de uma desesperança crescente entre os africanos, que todos os anos vêem a sua organização continental reunir-se, tomar decisões, que, depois, na prática, não têm resultados perceptíveis para a vida dos seus  povos, ao contrário do que acontece com outros blocos geo-políticos. E isso ocorre mais por haver um enorme fosso entre o discurso e a acção, do que pela inexistência de algum orgulho panafricanista, por que tanto lutaram vários líderes da libertação colonial.

A ambição, ganância, o egoísmo e a cegueira têm adiado o sonho de independência e conduzido ao abismo projectos políticos que poderiam resultar em progresso e desenvolvimento, mas que, infelizmente, num bom número de exemplos, acabam num claro neocolonialismo ou substituição de antigos colonos por novos endinheirados, pouco preocupados com  a sorte dos seus povos, que manipulam e reprimem no cumprimento das suas agendas pessoais ou de grupos, em nome das quais delapidam o erário que exportam para fomentar o crescimento de outros paraísos, onde julgam poder vir a gozar o exílio dourado dos últimos dias das suas vidas.

Numa altura em que se acentuam os sinais de desigualdades no combate à pandemia da Covid-19, espera-se que o anúncio da zona livre de comércio continental possa ser motivo mais que encorajador para que África seja olhada com outros olhos, merecendo tratamento adequado no acesso às vacinas, à semelhança de outros alegadamente mais poderosos. É que em política não se alinha por  amizades, move-se por interesses. O   mercado africano representa um filão que nenhuma potência pode ignorar, nas suas equações de procura de recursos ou de consumo.

A insegurança é, sem dúvidas, um dos calcanhares D’Aquiles, que impede o livre comércio, a livre circulação, afasta investidores, retarda o desenvolvimento e potencia a falada migração. E a insegurança deriva, essencialmente, da falta de uma visão global dos problemas de cada país, da sua discussão aberta, inclusiva, contrária à prática egoísta e narcisista do quero, posso e mando, ignorando-se as realidades e especificidades próprias que resultam em actos de rebelião contra os poderes instituídos. Aqui parece haver muito músculo e pouco cérebro, subentendendo-se que basta a repressão, para silenciar movimentos sociais que vão germinando naturalmente ou impulsionados por entes julgados sérios. Estes assumem-se como alternância e, na sua caminhada, arrastam até agentes paramentados, não estranhando, pois, que o fanatismo tribal, étnico, religioso e outros sejam causas para a insegurança em vários países do nosso continente.

Não é por acaso que a capital angolana vai acolher  uma segunda mini-cimeira sobre a situação na República Centro-Africana, que se soma a tantas outras que Luanda já recebeu, para tratar da segurança quer da própria RCA, quer  do grande vizinho RDC, do Sudão, do Uganda, do Rwanda e outros. Os interesses pessoais e de grupo têm-se sobreposto aos nacionais e quem vence acha que ganha tudo e quem perde não se conforma e tende a fazer vingar a sua derrota de forma violenta, sob os argumentos mais diversos, que acabam sempre em extremismos nada recomendáveis para a unidade e reconciliação nacionais.

Luanda não tem sido placa giratória da diplomacia regional apenas pelos seus encantos, de cidade moderna e ruralizada - ultimamente pouco convidativa para quem nela vive ou a visite, pela crise do lixo que mais cedo do que se possa pensar vai acentuar a crise sanitária -, mas por ser a capital de um país que tem seguido um processo de paz com sucesso. E é este exemplo que se tem procurado transmitir aos demais países, apesar das especificidades de cada conflito, não devendo, contudo, levar a embandeirar-se em arco, seguindo uma política de avestruz quanto a situações que ocorrem intramuros e que merecem a reflexão e ampla discussão, para não se virem a tornar focos de insegurança, que, juntos a actos deliberados de sabotagem, atrasam o bem-estar das populações, incentivando o descontentamento que a incerteza pandémica tem potenciado.

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