Entrevista

“Nenhum promotor de eventos resiste se trabalhar com fundos próprios”

Domingos de Brito é uma figura de referência que marcou e tem marcado as noites dançantes da cidade do Lobito. É o criador do projecto ‘Outrora Baile dos Kotas’, que já emocionou milhares de angolanos particularmente os habitantes da cidade portuária do Lobito por conta dos inesquecíveis espectáculos. Na entrevista concedida ao Caderno Fim de Semana, o empresário, ligado à promoção de espectáculos e proprietário da empresa Casa Rosa, conta-nos como surgiu a ideia do conhecido ‘Outrora Baile dos Kotas’, e expressa o seu desejo de querer “fazer do Lobito um palco musical, relembrando as décadas de 1950, 1960, 1970 e 1980”.

03/12/2023  Última atualização 09H53
© Fotografia por: Edições Novembro
O senhor garante resgatar e valorizar a música angolana dos anos 60 a 80 na cidade do Lobito?

Tenho esta vontade de fazer uma viagem ao passado musical, motivando os mais velhos, no caso os kotas, para que não fiquem de fora da diversão. Só que tudo depende dos apoios, pois individualmente não terei pernas para andar. Mas, vamos procurar fazer da cidade do Lobito, um palco musical, recordando as décadas de 1950, 1960, 1970 e 1980.

 Ainda se lembra dos tempos idos e como poderá adaptar-se ao contexto actual?

Perfeitamente. Dançava-se nas farras do antigamente, os estilos "kizombadas” e outros estilos musicais tipicamente angolanos, como o merengue, semba, amaringá e o caduque (que deu origem à rebita).

 Entretanto, a minha pergunta 'Como é que surge a kizomba?'

A kizomba, como dança, tem origem exactamente nessas farras de quintal, com dançarinos de renome como, os irmãos Kamizimba, entre outros passistas lobitangas. Em Luanda, tínhamos, só para citar, o Mateus Pelé do Zangado, João Cometa, que eram os mais conhecidos e escreviam no chão as passadas notórias dos seus estilos de exibição ao ritmo do semba. Estas passadas evoluíram com o tempo para um estilo mais lento, acompanhando também um ritmo menos corrido do semba, típico da década de 70. Um ritmo menos tradicional, mas do agrado dos jovens da época, tornando-se uma mescla de ritmos e de sabores, uma dança plena de calor e de sensualidade, que propicia uma verdadeira cumplicidade e empatia entre o casal de bailarinos.

 
O músico e compositor Gaby Moy foi a figura de cartaz que animou a terceira edição do "Outrora Baile dos Kotas”, realizado em antecipação, na Casa Rosa Promoções, em Benguela, em saudação aos 48 anos da Independência Nacional...

Nesta edição, Gaby Moy partilhou o palco com os artistas locais, como Fedy Kalupeteka e Zé Brás, acompanhados pela Banda Os KS. Tivemos a casa cheia com a presença de figuras destacáveis do Lobito, como a segunda secretária provincial do MPLA e outros responsáveis dos diferentes sectores do município, que dançaram até dizer basta. É bom, quando espectáculos do géneros recebem figuras notáveis da sociedade. Isto engrandece a organização, daí a minha referência às pessoas.

 
Esperava por este impacto tão forte do projecto "Outrora Baile dos Kotas”?

Esperava, sim. Nos  eventos realizados pela Casa Rosa, desde o mês de Setembro do presente ano, que coincidiu com o dia da cidade do Lobito, celebrado a 2 do mesmo mês como a primeira edição, tivemos uma presença impressionante, em que os convidados foram Zeca Moreno, Tony do Fumo Júnior e Augusto Chacaya. Não há quem não goste do "Outrora Baile dos Kotas”. O projecto tem como objectivo recordar o nosso passado musical, ouvindo boa música de artistas nacionais que marcaram o nosso mosaico cultural,    através das suas composições. Gaby Moy sabe interpretar muito bem as músicas do falecido irmão - David Zé.

 
Entretanto, já se pensa no próximo ano...

Sim! O espaço tem a capacidade de albergar seiscentas pessoas e a minha perspectiva é regressar com o projecto no próximo ano, no mês de Fevereiro, com uma homenagem aos Bongos do Lobito. Queremos fazer uma festa, no dia reservado ao início da luta armada de libertação nacional, 4 de Fevereiro, homenageando este grupo musical que fez muito em prol da música nacional. Sabemos que deste agrupamento, ainda há alguns elementos vivos. Será uma homenagem aos Bongos do Lobito.

 
Porquê este encanto pelo baile dos kotas?

O  "Outrora Baile dos Kotas” é um projecto, que tem por objectivo resgatar e divulgar a música popular urbana angolana. Não existe presente, sem passado. Infelizmente, estamos a esquecer o passado e precisamos resgatá-lo, com a divulgação de músicas que outrora marcaram as nossas vivências. A realização de bailes, como o "Outrora Baile dos Kotas”, tem como finalidade relembrar o que, os mais velhos (kotas), fizeram no passado em grandes salões ou centros recreativos, particularmente na dança.

De onde vem este gosto pela organização de espectáculos?

Desde muito jovem. O meu objectivo é criar ambientes de recreação para os mais velhos (kotas), visto que, os jovens estão bem servidos. A maior parte das festas realizadas ou organizadas em Angola, sem medo de errar, são direccionadas para a juventude, ficando os kotas sem saída para diversão. Muitos kotas são obrigados a aderirem às actividades dos jovens.

 
Tem sido fácil organizar os eventos?

Não! No meu caso, tenho muitas dificuldades em organizar, por falta de apoios. Há vezes em que me arrisco a organizar, com fundos próprios, mas tenho déficit. Nenhum promotor resiste em organizar eventos culturais, com fundos próprios. As despesas ou déficit são maiores que as receitas. E quando as despesas são sempre superiores, o promotor não resiste, desmorona-se.

 
Entretanto, há promotores que resistem...

Em Angola, conheço poucos promotores de eventos que realizam actividades recreativas ou culturais, sem apoios. Os que ainda resistem, têm apoios de instituições como bancos, empresas estatais e  privadas, que são as patrocinadoras. Vejo mal nisso, quando os apoios são para uns e outros não. Por outro lado, não aconselho nenhum promotor cultural a trabalhar com dinheiro emprestado. Esse terá problemas em reembolsar os valores, pois que, nem sempre as actividades dão lucros. As obras da natureza (chuvas) também podem provocar danos incalculáveis. Imaginemos alguém que solicite um empréstimo de 2 milhões de kwanzas, faz o investimento geral com (alimentação e elenco artístico), e no dia do show, uma forte chuva cai na região? Surgem prejuízos enormissimos.

 
Entretanto, continua... Já vai em quantas edições?

É verdade. Do projecto "Outrora Baile dos Kotas”, já vamos na terceira edição. Realizámos recentemente a última actividade do ano de 2023, cuja, primeira edição realizámos a 2 de Setembro, enquadrado nas festividades do dia da cidade do Lobito, com um elenco artístico composto por Zeca Moreno, Augusto Chacayá, Tony do Fumo Júnior, Machema, com o suporte da Banda Os KS. A segunda edição foi realizada no dia 30 de Setembro, isto é, no encerramento do programa das festividades da cidade do Lobito, em que o cartaz musical esteve sob a responsabilidade de Tivinê, Carlos Albano, Botto Trindade, Acácio Bamba e agrupamento os Kiezos. Lembro-lhe que esta actividade esteve prestes a ser anulada por falta de verbas.

 
Conta com parcerias?

Contamos com parceria das Emissora Regional do Lobito (RNA) e Rádio Mais, para a divulgação do projecto. Também trabalhamos com os "KS”, um conjunto que  trabalha connosco há quase 20 anos.

 
De que forma conseguiu manter o evento se não tinha dinheiro?

Já não tínhamos esperanças de realizar esta actividade. Havia muita pressão e expectativas da parte da sociedade lobitanga, por conta da publicidade que fizemos. Por sorte, fomos bafejados com o apoio  do Presidente do Conselho de Administração do Porto do Lobito, Celso Rosas. Facilitou, ou melhor,  patrocinou a vinda do elenco artístico, para animar o show, especialmente no encerramento do programa das festividades da cidade do Lobito. Agradeço o PCA do Porto do Lobito, por nos ter ajudado na realização do evento alusivo às festas da cidade do Lobito.

 
Traz muitos músicos de Luanda, porquê?

Por uma simples razão: é lá, onde existem o maior número de músicos. Procuro sempre aglutinar,  nos eventos, músicos de Benguela e Luanda. Nunca organizei uma única actividade cultural sem incluir um ou mais músicos residentes em Benguela. Na primeira actividade,  estiveram presentes dois músicos de Benguela, Zeca Moreno e Machema, acompanhados pelo agrupamento musical os KS. De Luanda, estiveram Augusto Chacaya e Tony do Fumo. Na segunda edição, estiveram presentes três músicos de Benguela. Botto Trindade, Carlos Albano, Machema e um do Cuanza-Sul, o "Tivinê”. Juntei também, Acácio Bamba, oriundo da província do Namibe. Portanto, todos terão oportunidade de pisar o solo do Lobito, ou em outra parte do país, onde  seja realizado o projecto "Outrora Baile dos Kotas”.

 
Quer dizer que pensa em levar o projecto a outras regiões do país?

Sim! Pensamos em levar este projecto a outras partes do território nacional. Temos recebido convites de responsáveis de governos provinciais, municipais e de instituições privadas. Realço  que temos contactos avançados para que o projecto "Outrora Baile dos Kotas”, seja realizado na cidade de Luanda, na primeira semana de Dezembro do ano em curso. Temos agendada a nossa ida às províncias do Zaire, Huambo e Namibe.

 
Já pensou em fazer do  projecto "Outrora Baile dos Kotas” uma marca do corredor do Lobito?

Exacto. O "Outrora Baile dos Kotas” já é uma marca nacional. Criamos um grupo na rede social WhatsApp, onde de forma colectiva temos feito descargas de milhares de músicas nacionais e internacionais, tocadas ao vivo durante o "Outrora Baile dos Kotas”. O resultado tem sido fantástico, pois temos recebido ideias da criação de núcleos provinciais.


Muitos dos músicos mais velhos reclamam da falta de apoio social?

É verdade. A condição social de muitos músicos é péssima. Daí que, pretendemos fazer visitas aos músicos acamados e quando tivermos fundos, queremos ajudar com o nosso pouco alguns músicos que precisam de apoios. O nosso sonho é transformar este grupo num movimento de acção humanitária e social, sem fins lucrativos.

 
Os mais velhos perderam espaço de convívio?

Sim, perderam os espaços de convívios. Noventa por cento das actividades culturais ou de recreação  estão mais viradas para a juventude e apenas 10 por cento são direccionadas para os mais velhos. Em Angola, temos poucos recintos para os kotas recrear.

 
Os bailes têm tido adesão dos mais velhos?

Sim! Setenta por cento dos presentes são kotas, mas também temos notado a presença de jovens que gostam deste tipo de actividades. Nas actividades dos jovens, os kotas são limitados, devido aos estilos de músicas.

 
Existe uma referência das noites dançantes de Benguela, o mais velho Kamizomba...

É uma das figuras de referência e tem participado dos nossos eventos. É a nossa referência dos grandes bailadores na província de Benguela, especialmente aqui no Lobito. Nós temos ele como o "Rei” da dança, no Lobito. Agora, tornou-se na nossa "divindade” do projecto. Não conheço ninguém da idade dele, que lhe supere dançando.

 
O Lobito tem um histórico na realização de bailes. Falo do Clube Atlético e do Salão no bairro da Canata?

O Lobito sempre foi, depois de Luanda, o local onde a recreação era efervescente. Já foi rica em termos culturais, razão pela qual tinha o segundo  melhor carnaval do mundo a seguir ao Brasil, como dizem alguns mais velhos. Ouvi falar dos bailes no Atlético do Lobito, que eram referência da região sul. É com base no histórico do Clube Atlético do Lobito, que me inspirei no resgate do "Outrora Baile dos Kotas”. Nos anos 2004 e 2005, desejei, com fundos próprios, reparar o Clube Atlético do Lobito, para realizar as minhas actividades culturais. Fui mal sucedido e ignorado. Mesmo assim, organizei, com o Núcleo do Poeira no Quintal da RNA, um caldo que homenageou o cantor Diabick, assim como o Caldo do "M” em 2007. Existiram outros salões como o Recreativo, Giro-Giro na Cajanguela (Canata) do Zeca da Banga.

 
Como avalia o movimento cultural na cidade do Lobito?

O movimento cultural no Lobito, tende a melhorar, se nos atermos às realizações de algumas actividades culturais.

 
O Carnaval do Lobito já foi uma referência mundial...

O carnaval do Lobito atingiu a nota máxima, quando foi classificado como o segundo melhor carnaval a nível mundial. Infelizmente, actualmente no Lobito está com baixo nível de produtividade. Faltam apoios e políticas para o resgate da mística do melhor carnaval de Angola.

 
Anunciou recentemente que vai ser candidato às eleições presidenciais do carnaval do Lobito. O que o motiva a dar esse passo?

Quero dar o meu máximo, para ajudar a sair do marasmo em que se encontra o Carnaval do Lobito. Já manifestei publicamente a minha intenção em ser o candidato às próximas eleições da Associação Municipal do Carnaval do Lobito.

 
Que resultado ambiciona com esta candidatura?

Ganhar, obviamente. Porque só vou fazer a diferença se ganhar.

 
As danças continuam a representar a cultura nativa no carnaval?

Nem todas. Algumas danças representam algumas regiões do nosso município. É o caso do grupo da Hanha do Norte, que tem o seu estilo de dança regional. Felizmente este ano, voltei a fazer parte como membro do corpo de jurados do carnaval provincial, e notei este pormenor.

 
Considera, então, que é um homem de cultura?

Sim! A cultura está no sangue. Sou filho de um passista, sobrinho de dois disco jockey daquele tempo. Falo do Adão Maiado, da Rádio Escola e do Rufino João Barros, que tinha muitos discos. Ainda criança, gostava de meter os discos a tocar, sem autorização. Os que mais me influenciaram para o gosto na promoção cultural, são os senhores Fiel Didi, na altura no Kudimuena (Cacuaco) e o Kito Dias dos Santos no Kudissanga Kua Makamba (Sambizanga). Isto aconteceu nos anos 1980, antes de ingressar para o serviço militar obrigatório.

 
A sociedade civil lobitanga participa?

Sim, envolvem-se. Há vezes que aparecem em grande número e em outras ocasiões em número reduzido. Infelizmente, existem músicos no município, que não dão para negócios, mas sim para cantarem em actividades patrocinadas.

 
O Lobito precisa de muitas casas de dança?

Logicamente que sim. Tive o grande privilégio de participar do registo eleitoral, assim como no Censo da População de 2014, e tenho os dados da população do Lobito. Por isso, afirmo que o Lobito precisa sim de mais salões e ou recintos de recreação. Os salões que existem estão mais voltados para festas familiares, casamentos e aniversários. O único salão construído de raiz para recreação e espectáculos é a Casa Rosa Promoções.

 
O senhor é de Luanda alguma inspiração com o projecto Caldo no Poeira?

Sim. Sou muito próximo aos jornalistas da RNA, Sebastião Lino, Carlos Bequengue, Hilário Wanguizuba e outro pessoal ligado ao projecto Caldo no Poeira. São profissionais que influenciaram o meu gosto pelo projecto radiofónico. Razão pela qual criamos o Núcleo do Caldo do Poeira do Lobito, que era coordenado na altura pelo anterior Director da Emissora Regional do Lobito, Ribeiro dos Santos Tadeu.

 
De que forma veio para ao Lobito?

Vim parar ao Lobito, no cumprimento do serviço militar obrigatório. Fui transferido da localidade de Cahama - Cunene, e colocado em Junho de 1991, na cidade do Lobito, mais concretamente na BCA 2, como especialista de víveres. A minha formação foi feita na Escola de Especialistas Menores de Logística Comandante Francisco Ngombe no Grafanil. A minha formação de oficial foi feita na Escola de Formação de Oficiais comandante  Nicolau Gomes Spencer, na cidade do Huambo, na especialidade de Logística, em 1986. Felizmente, fixei residência no Lobito, desde 1991. No Lobito, casei e tenho a minha família. Sinto-me um kamutangre. Gosto do Lobito e aqui morrerei.

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