Reportagem

O acidente de motorizada que paralisou a vida de Elisandra

Domingos Calucipa | Ondjiva

Jornalista

O dia 9 de Junho de 2023 vai ficar seguramente escrito na memória de Elisandra dos Santos António, mãe de três filhos menores, devido às sequelas do acidente de motorizada que sofreu nesta data e que mudou completamente a rotina da sua vida.

28/10/2023  Última atualização 08H25
Dados do Departamento de Trânsito e Segurança Rodoviária da Polícia Nacional no Cunene referem que os acidentes de viação envolvendo motorizadas provocaram, de Janeiro a Junho deste ano, 37 mortos e 278 feridos © Fotografia por: Edições Novembro

Decorria a hora 17 daquele dia, quando Elisandra entendeu, como programado, deslocar-se ao mercado de Oshomukuio, no bairro com o mesmo nome, para efectuar pequenas compras para abastecer a cozinha, depois de uma jornada de afazeres domésticos. Saiu de casa, no bairro Pioneiro Zeca, e mandou parar o primeiro moto-taxista que apareceu na rua.   

 Combinado o destino e o preço, subiu na motorizada e meteram-se na via em direcção ao citado mercado. Pois as motos são forçosamente o táxi do momento. A marcha corria normalmente, mas foi depois de passarem a rotunda da entrada da centralidade que a inabilidade e irresponsabilidade do jovem motociclista começou a se manifestar.  

 "Depois da rotunda da centralidade, o motoqueiro estava a acelerar muito. Eu lhe disse para reduzir a velocidade e ele meteu-se a rir e só assustei já estava no chão, ele também. Olhei para a minha perna esquerda e lá estava uma ferida grande bem aberta e muito sangue a escorrer”, lembra Elisandra António. A motorizada que os transportava colidiu com outra que vinha no sentido contrário.

 Elisandra foi socorrida por um jovem de motorizada de três rodas, vulgo Kaleluia, para o principal hospital da cidade. Posta lá, depois de sair do bloco operatório, foi informada de que além do enorme ferimento tinha uma dupla quebra da perna de difícil intervenção a nível local.

 "No hospital disseram-me que tinha que ser transferida para a Namíbia porque ali não havia meios, no caso, o ferro que facilita a ligação dos ossos da perna, porque caso contrário corria o risco de me ser amputado o membro”, conta, acrescentando que no país vizinho recebeu a assistência necessária, tendo permanecido por lá três meses.

 Hoje, limitada à cama, e com ferros na perna, Elisandra diz ter uma evolução satisfatória que lhe transmite alguma esperança em dias melhores, enquanto continua com idas periódicas à Namíbia para controlo ortopédico. A ferida está praticamente fechada, mas admite que no final, possivelmente, vai ficar com a perna defeituosa.

 Para Elisandra dos Santos António, a vida parou no tempo e no espaço, porque deixou de exercer qualquer actividade, incluindo as tarefas domésticas, que hoje passaram para as mãos do marido, funcionário de uma administração comunal no município de Ombadja. Disse que este não consegue ir trabalhar desde a data do acidente.

 Mas o problema provocado pelo acidente não é só este. Elisandra contraiu uma dívida no hospital geral de Oshakati, na Namíbia, no valor de 54.040 dólares namibianos, o equivalente a 2,65 milhões de kwanzas, no câmbio do mercado informal. Contudo, o recurso ao hospital público da Namíbia tem custado muito caro aos angolanos, que lá procuram soluções para os seus problemas de saúde. 

As sequelas na perna de Paulina     

Paulina Felisberto Carlos é outra mulher que viu a sua vida adiada por muito tempo, por causa de um acidente de motorizada sofrido numa das vias da cidade de Ondjiva, que a deixou  defeituosa numa das pernas.

Conta que o sinistro aconteceu no dia 23 de Julho de 2022, por volta das 17h, quando regressava do trabalho, do bairro Naipalala para o bairro Kaxila. Como é habitual, apanhou um mototáxi. Postos no ponto de desvio da via principal para casa, o mototaxista ultrapassou a entrada por alguns metros e entendeu manobrar em plena faixa de rodagem, de onde vinha outra motorizada, tendo acontecido o inevitável choque.

 Transportada para o Hospital Geral de Ondjiva, foi informada que tinha a perna esquerda quebrada duas vezes. Levou gesso na mesma perna, que chegou a permanecer durante oito meses. Depois de uma observação médica, notou-se que os ossos já se haviam unido, mas de forma desajustada, pelo que foi aconselhada a recorrer aos hospitais da vizinha Namíbia, com todos os encargos inerentes.

Na Namíbia, foi informada que já não se podia operar porque os ossos já estavam muito ligados, o que era desaconselhável. "Na Namíbia os médicos disseram que tenho de aguentar mesmo assim com a deficiência. Permaneci lá por três meses. Neste momento estou mesmo assim com os ossos da perna desajustados e ando ainda com muita dificuldade, um ano depois”, detalhou ao Jornal de Angola Paulina Carlos, que admite viver um trauma até hoje.

37 mortos em seis meses

Os acidentes de viação envolvendo motorizadas, na sua maioria em serviço de táxi, provocaram, de Janeiro a Junho deste ano, 37 mortos e 278 feridos, na província do Cunene, de acordo com o Departamento de Trânsito e Segurança Rodoviária do Comando Provincial da Polícia Nacional.

De acordo com os dados daquela instituição a que o Jornal de Angola teve acesso, no período em referência foram registados 184 acidentes de viação, com um aumento de 22 sinistros, quando comparados com 2022. Quanto às consequências, o balanço revela um aumento de 23 mortes, no primeiro semestre do ano passado, para 37 este ano, ao passo que o número de feridos passou de 200 para 278 sinistrados.          

Contactado pela nossa reportagem para abordar os índices de sinistralidade nas estradas da província, o chefe do Departamento de Trânsito e Segurança Rodoviária da Polícia Nacional no Cunene, superintendente-chefe André Domingos Mandela, apontou entre as causas das fatalidades o excesso de velocidade, com 101 casos, falta de prudência, com 22, manobra perigosa, com 13, e travessia irregular de peões.

André Domingos Mandela disse que com a ausência de táxis, as localidades da província, particularmente a cidade capital, Ondjiva, viram-se povoadas de motorizadas, que passaram a fazer a vez de táxi, cujos condutores, normalmente oriundos do interior ou de províncias vizinhas, não têm o mínimo conhecimento das regras de condução.

  "Há muitos acidentes envolvendo motociclos em função da maioria dos motociclistas desconhecer o Código de Estrada. Conduzem à sua maneira, da mesma forma que dirigem nos caminhos fora da cidade. Para eles, basta saber guiar uma motorizada para ser o suficiente para virem à cidade fazer táxi, porque o mercado está apetecível para ganhar dinheiro”, observou o oficial superior da Polícia Nacional.

   Para mitigar a onda de acidentes e danos à integridade física de citadinos, a Polícia Nacional tem destacado permanentemente reguladores de trânsito nas principais vias da cidade para orientar os moto-taxistas e peões, por ausência de sinalização e passadeiras.

 A corporação indica ainda que tem massificado a sensibilização aos moto-taxistas e alunos nas escolas, sobre a importância do uso do capacete, o respeito dos limites de velocidade e do número de passageiros a transportar num motociclo. 

Mais de 800 registos no hospital geral

Quatro a sete casos resultantes de acidentes com motorizadas dão entrada diariamente no Hospital Geral de Ondjiva, na sua maioria com fracturas e ferimentos graves, revelou a directora clínica daquela unidade, Eufrazina Oliveira, contactada pelo Jornal de Angola.

  Dados dessa unidade sanitária indicam que de Janeiro a Setembro deste ano foram atendidos 804 doentes com problemas de fracturas, muitas delas graves, e outras lesões, em consequência de acidentes com motociclos na via.

  De acordo com os registos, a faixa etária mais afectada é dos 15 aos 34 anos, com um total de 419 sinistrados no referido período.    

   Os números, na constatação do sociólogo Sebastião Caterça Bastos, demonstram o quanto as estradas da cidade de Ondjiva se tornaram num cenário desastroso, com a proliferação de motorizadas, meio adaptadas para o serviço de táxi na urbe.

Apelo à revisão da proibição de importação de veículos usados

O sociólogo Sebastião Caterça Bastos lançou um apelo ao Executivo a reavaliar o Decreto que proíbe a importação de viaturas usadas com mais de cinco anos, uma medida que, no seu entender, está a impedir muitos cidadãos de adquirir viatura própria, assim como a prejudicar a vida social, dada a presença massiva e desordenada de motorizadas nas vias, em detrimento dos táxis, meio de transporte público convencional.

   Na constatação do sociólogo, a proibição da importação de viaturas usadas e o consequente agravamento das taxas aduaneiras tornaram as motorizadas um transporte obrigatório na cidade de Ondjiva, dada a acentuada incapacidade dos residentes de adquirir viaturas novas, quer fora como dentro do país.    "Os cidadãos da cidade de Ondjiva, incluindo os funcionários públicos, estão em constantes riscos de acidentes, ao fazerem-se transportar em motorizadas, vulgo moto-táxis, nas suas movimentações diárias. Os transportes públicos, como autocarros e hiaces, fazem longo curso, ligando a outras localidades”, observou Sebastião Caterça Bastos.

  Segundo a fonte, Ondjiva, a capital da província do Cunene, era uma cidade de bem viver há cerca de 10 anos, mas hoje tornou-se descaracterizada por circularem mais motorizadas, e de forma desordenada, do que viaturas.

   "As motorizadas tornaram-se os maiores ocupantes das vias públicas, mas ao mesmo tempo um dos maiores problemas sociais por estarem a ceifar vidas, porque grande parte dos condutores não domina o Código de Estrada”, adiantou o sociólogo, para quem basta se sair de casa para presenciar acidentes envolvendo motorizadas, o que não acontecia com os táxis que em regra são dirigidos por indivíduos habilitados.

 E para agravar os riscos, disse, muitos mototaxistas transportam mais de um passageiro na motorizada, às vezes incluindo cargas.

  No seu entender, hoje já não se coloca a narrativa de que estava a entrar no país muita sucata, quando já existe uma indústria que está a reaproveitar todo o tipo de metal ferroso, daí ver-se por todo o canto do território nacional a recolha desses materiais. 

   "É desprestigiante para o país quando um turista entra em Angola a partir na fronteira de Santa-Clara, por exemplo, e se depara com um serviço de táxi feito por motorizadas, e maioritariamente por meninos que mal se apresentam. Penso que esse turista não teria o prazer de cá regressar um dia, porque nos outros países não é assim”, rematou o sociólogo.

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