Opinião

O preço da indiferença

Kumuenho da Rosa

Jornalista

Semana passada, durante um debate numa das rádios angolanas, ouvi com espanto um convidado, pareceu-me ser um sociólogo, dizer que a sociedade angolana está doente. O meu espanto não foi por causa das explicações que deu sobre o quadro actual da nossa sociedade, no que se refere à adequação aos padrões comportamentais das pessoas e das instituições que a integram.

20/02/2024  Última atualização 06H45

O meu espanto deveu-se à forma absolutamente natural com que os demais membros do painel, incluindo a jornalista que fazia de pivô, receberam o diagnóstico, tão bem feito pelo convidado sociólogo. De facto, a qualquer um chama a atenção (ou ao menos deveria chamar), uma certa tendência de se normalizar o que é anormal, relativizar factos cientificamente provados e exaltar futilidades. A coisa fica ainda pior quando deixamos de olhar para o principal, o nuclear, para nos focarmos no secundário ou periférico.

Tocou-me ouvir os demais membros do painel simplesmente ignorarem uma afirmação tão grave e ainda por cima dita de forma lapidar (a nossa sociedade está doente!). De facto, nada a estranhar quando vemos um pai tirar as primeiras horas da sua jornada laboral para ir tomar satisfações do professor pelo sofrível desempenho académico do seu filho, ilibando-se das culpas, como se o pagamento regular da propina escolar fosse a sua única responsabilidade no processo de educação do menor.

O vizinho, porque tem dois carros, usa o lugar aparentemente vago no estacionamento do prédio e ocupa-o, sem dar cavaco aos demais vizinhos ou ao síndico do prédio.  Ou a vizinha que, de repente, decide fazer dos jardins do prédio o seu quintal privado.

O motoqueiro que usa a passadeira para cruzar as faixas de rodagem ou usa as pedonais, pondo em risco a segurança e a integridade dos transeuntes.

O lojista que vende produtos com prazo vencido, sem se importar com as consequências e com o perigo que representa para a saúde do consumidor final.

O funcionário que aguarda a hora de sair junto ao ponto de controlo biométrico da efectividade ou o que se apresenta no local de trabalho apenas na segunda-feira seguinte, porque o período de gozo de férias terminou a meio da semana.

O chefe que dá inicio à reunião após considerável atraso, sem pedir desculpas e age com total indiferença perante os demais participantes da reunião.

O gestor que não paga salários aos trabalhadores há meses e ainda ameaça com despedimento aquele que reclama.

O prestador de serviço que se atrasa, não cumpre com prazos e ainda abusa da condição de necessitado por parte do seu cliente.

O agente que apenas conhece de cor e salteado as normas que punem o automobilista e se esquece de usar da pedagogia diante de uma infracção do Código de Estrada.

O médico, que alegando cansaço, stress ou falta de condições sociais, se recusa a prestar assistência ou atende de forma negligente um paciente.

O gestor hospitalar que desvia parte do stock de medicamentos para a sua farmácia, um seu negócio particular e manda os familiares do paciente irem à procura de fármacos, alegando falta de medicamentos nos hospitais por culpa do Estado.

Para quem pensa que impunidade é inerente a titular de cargo público, aconselho a consultar um dicionário, porque, em rigor, qualquer um dos casos citados configura o sentimento de impunidade.

Esta situação está intrinsecamente relacionada com a crise generalizada de valores morais e éticos na sociedade angolana, que tem como ponto de partida, salvo melhor opinião, a desestruturação das famílias. Elas próprias transformadas em autênticos pólos de imoralidade e insanidade, por isso mesmo incapazes de proporcionar para a sociedade cidadãos com bases sólidas de princípios e valores.

Podemos considerar que o quadro é caótico, de tal sorte que, sem darmos por isso, começamos a passar, tranquilamente, para a fase da aceitação ou normalização destas práticas. Iludidos pela sensação de que estamos a salvo e que todo este mal apenas afecta os outros. Nada mais errado.

A ideia de inexistência ou insuficiência de punição para práticas que atentam contra a moral pública, mas também contra leis instituídas, torna uma sociedade doente e inapta para o desenvolvimento, para a prosperidade.

Urge debater de forma consequente e desapaixonada este fenómeno, pois, como se vê, somos vítimas e ao mesmo tempo culpados, pela atitude passiva ou activa com que nos posicionamos diante destes episódios que são cada vez mais comuns no nosso dia-a-dia. Mudar esse quadro não será certamente uma tarefa simples, mas sempre vale à pena tentar, pois pagaremos todos o preço da indiferença.

 
*Jornalista

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