Entrevista

Orlando Bonifácio: “Uma sociedade que faz actividade física é saudável até no ensino e aprendizagem”

Roque Silva

Jornalista

O título que abre esta entrevista é um convite à reflexão, feito por Orlando Bonifácio, professor e treinador de atletismo, numa entrevista concedida ao Jornal de Angola e ao Jornal dos Desportos. Ainda detentor do recorde do salto em altura, apesar de se ter retirado do atletismo, há cerca de 30 anos, Orlando Bonifácio lembrou-se, com nostalgia, do tempo em que se praticava desporto com mais amor à camisola e do papel do desporto escolar na descoberta de talentos para o de alta competição. Na entrevista, Orlando Bonifácio defendeu que se deve repensar no actual modelo de gestão dos recintos desportivos escolares e denunciou a existência de professores que dão aulas de Educação Física sem formação na área

09/08/2023  Última atualização 08H30
© Fotografia por: Adriano Cahuli

Muitos jovens não sabem, certamente, quem é Orlando Bonifácio para o atletismo nacional. Por favor, apresente-se.

Sou Orlando Estácio Miranda Bonifácio, terceiro filho de Miranda Bonifácio e de Cristina Nunes Fernandes da Silva Bonifácio e natural de Caxito (Bengo). Nasci em 1959 e passei a infância no bairro Nelito Soares, começando pelo Bloco 15, Rua da Cela, que faz parte do conjunto de edifícios que estão juntos ao Mercado dos Congolenses. Quando tinha 14 anos, mudei-me para as Bês, tendo vivido na B-5, Rua de Monção, junto ao Hospital Prisão de São Paulo, antiga Cadeia de São Paulo. Sou licenciado em Cultura Física, na área de Treinamento Desportivo, na especialidade de Atletismo, pelo Instituto Superior de Cultura Física Manoel Fajardo, em Cuba, onde estudei de 1987 a 1992. Tenho um mestrado em Atletismo, na vertente de Treinamento Desportivo, também feito em Cuba. Suspendi o doutoramento por desmotivação. Fui professor do curso de Motricidade Humana, na Universidade Jean Piaget, de Atletismo, no curso de Educação Física, do Instituto Superior Politécnico Alvorecer da Juventude (ISPAJ), e de Atletismo, no Instituto Normal de Educação Física (INEF-Luanda), onde fiz o ensino médio. Comecei a praticar atletismo no Atlético, hoje Petro Atlético de Luanda, de onde saí para o clube 1º de Agosto. Fui sub director pedagógico no INEF, treinador, coordenador e chefe do Departamento de Atletismo no 1º de Agosto e integrei-me à equipa técnica da Federação Angolana de Atletismo (FAA), tendo sido director técnico nacional. Sou, até hoje, o detentor do recorde do salto em altura, conquistado nos II Jogos da África Central, realizados, em 1981, em Luanda. Conquistei, ao longo da carreira desportiva, várias medalhas, em Angola e no estrangeiro.

Quando faz mentalmente uma radiografia ao atletismo que era praticado no seu tempo e à massificação que havia na altura, fazendo uma comparação com o estado actual da modalidade, o que lhe vem à cabeça?

Vem muita recordação. Há muita diferença, também porque os tempos são outros. No meu tempo, as pessoas praticavam desporto com mais amor à camisola. A sensação que tenho é de que, no passado, os praticantes nasciam com cultura para o desporto. Nos bairros, as competições eram feitas em várias especialidades. Na escola secundária, os professores de Educação Física encaminhavam os alunos com talento para os clubes. Os talentos eram descobertos nos jogos escolares, que opunham as turmas e as escolas. Os professores tinham à sua disposição locais adequados e material desejado para se trabalhar e eram valorizados. O desporto escolar foi, no passado, em Angola, a base da formação dos atletas de alta competição. E deveria continuar a ser. Mas não nos podemos esquecer dos bairros, que eram os locais onde o desporto era praticado de forma muito intensa. Actualmente, nos bairros, a prática cinge-se mais nas modalidades de quadra, quando, no passado, até praticávamos atletismo em competições promovidas por vizinhos. Infelizmente, há pouco investimento no desporto escolar, facto que trava o desenvolvimento do desporto no país.

Os professores de Educação Física sentem-se desanimados diante das dificuldades por que passam para leccionar?

Os professores de Educação Física não têm condições para trabalhar. A maioria dá aulas em locais adaptados e sem material adequado para a maioria das modalidades desportivas. Os espaços construídos para a prática desportiva e actividade física, como, por exemplo, os ginásios, atendem outro fim que não é a disciplina de Educação Física e muitos foram transformados ou em espaços de acondicionamento de equipamentos ou em áreas administrativas. Existe uma falta de consideração e de respeito para com a Educação Física e, em particular, para com os professores.

A triste realidade que mencionou também é extensiva às escolas que estão nas centralidades construídas em várias províncias do país?

As centralidades são um exemplo da situação decadente da disciplina de Educação Física. Por exemplo, algumas escolas da cidade do Kilamba, em Luanda, dispõem de campos, pistas e ginásios com material para a prática de algumas modalidades, mas não estão à disposição dos professores de Educação Física como devia ser. Há escolas em que os ginásios estão transformados em salas de teatro e de reuniões. E os professores de Educação Física são, praticamente, impedidos de as usar, o que considero uma autêntica desvalorização da classe, do desporto e do investimento público que se fez. Muito material ali colocado, sobretudo para a prática da ginástica, é fixo e está a ficar deteriorado.

Defende que se deve repensar o actual modelo de gestão dos recintos desportivos escolares?

O actual modelo de gestão dos recintos [desportivos] escolares é reprovável, por não lhes retirar o maior proveito. Pode-se, sim, em algumas ocasiões, colocar os espaços à disposição para outros fins, mas nunca proibir de fazer uso o ente para o qual estão destinados.

Qual é a realidade do Instituto Normal de Educação Física (INEF), agora localizado na cidade do Kilamba?

Estaria a ferir a ética se viesse a público para expor as fragilidades de uma instituição de que fiz parte durante mais de 30 anos. Mas temos que admitir que muito do que disse também se regista no INEF. De uma forma geral, os professores trabalham em espaços adaptados nos pátios e campos das escolas, o que é prejudicial para os alunos, devido ao nosso clima, que é muito quente. Seria bom que fossem estabelecidos limites para os professores de Educação Física trabalharem, principalmente os que lidam com crianças e adolescentes. As actividades físicas devem ser moderadas, de acordo com a idade dos alunos. Quando são realizadas a céu aberto e em temperaturas acima dos 28 graus centígrados, pode ser prejudicial para a saúde.

O INEF foi transferido para um local que se pode considerar apropriado para o curso de Educação Física?

O INEF não está no local mais apropriado para albergar um Instituto de Educação Física, por não ter estruturas para a prática das modalidades. Recorre-se aos campos da comunidade. O campo de basquetebol é o mesmo que o de andebol. O voleibol e o salto em comprimento são praticados em locais adaptados pelos professores. O ginásio não está preparado para realizar desporto de sala por ser muito pequeno. Com essas condições, seria melhor que continuasse entre as escolas Ngola Kiluanje e 1º de Maio, porque lá há espaços para a prática das mais diversas modalidades desportivas. Quando usávamos as instalações do IMNE-Marista, só a natação e a ginástica desportiva é que eram feitas na Piscina do Alvalade e no Sporting de Luanda, respectivamente. Às vezes, o atletismo era feito no Estádio dos Coqueiros, para aproveitar a proximidade a esses dois últimos espaços.

Que memórias guarda do INEF?

O INEF já foi um Instituto de referência nesse país, pois os melhores quadros do desporto, sobretudo treinadores, foram formados nessa instituição. Apesar das dificuldades, ainda forma os melhores professores de Educação Física, mas já não com a mesma qualidade e exigência. A atitude de muitos dirigentes leva-me a acreditar que desconhecem o valor do professor da disciplina de Educação Física e o que ela produz no ser humano. O que é estranho é que muitos praticaram desporto. Um grupo de professores do INEF chegou a sentar com uma delegação da Comissão da Assembleia Nacional que vela pelo Desporto e Educação Física, a quem foi apresentada uma maquete para a construção das futuras instalações para o INEF, projecto que não avançou, porque o Instituto acabou por ser transferido para um recinto escolar que está na cidade do Kilamba.

Uma vez que os alunos são expostos a temperaturas inadequadas às aulas da disciplina de Educação Física, têm sido registados incidentes durante as aulas?

Têm sido registados alguns casos, mas não muito graves. São casos controlados. A experiência diz-nos que é sempre bom trabalhar com precaução. Digo isso porque muitos encarregados de educação, pelo desejo de verem os filhos a estudarem, ocultam algumas informações sobre os filhos. E só se manifestam quando se regista um incidente. No passado, para o ingresso no INEF, os candidatos eram submetidos, obrigatoriamente, a testes físicos e médicos, para a avaliação da capacidade. Aliás, num país normal, é assim que se deve proceder. Eu passei por isso em Cuba, nos exames de admissão à universidade, assim como para o acesso ao Ensino Médio, feito, como já disse, no Instituto Normal de Educação Física (INEF). Cá, os testes médicos deixaram de ser exigidos por decisão superior, depois de 1992, se a memória não me escapa. A experiência não tem sido das melhores. Registámos muitos graves incidentes, durante os testes [físicos] e aulas, já depois de o estudante ser apto para a frequência do curso. Mas chegámos a voltar a exigir a realização de testes médicos, por decisão própria, como condição de acesso ao curso de Educação Física, e obtivemos êxitos logo no primeiro ano lectivo. Porém, recebemos uma ordem superior, que foi no sentido de eliminarmos os testes médicos, porque, como se alegou, o cidadão comum não tinha condições de os pagar. De lá para cá, o Instituto Normal de Educação Física tem recebido muitos candidatos sem as condições de saúde que se exigem para frequentarem o curso. Este curso é para formar professores de Educação Física, sendo esta uma razão suficiente para os candidatos serem submetidos a testes médicos.

Como avalia a contribuição do desporto escolar para a captação de talentos para o atletismo em todo o país?

Não é satisfatória. Não tenho dados precisos, mas o que sei e ouço é que a maior parte dos atletas dos clubes não saiu do desporto escolar. É um erro que pode ser corrigido, porque, em muitos países do mundo, o desporto começa com actividades nas escolas, antes de se pertencer a um clube. Se for este o processo, ele chega já refinado ao clube, com conteúdos técnicos e o ABC da modalidade. Se for feito ao contrário, o atleta começa com deficiência técnica. Existem competições interescolares, mas, na minha opinião, a forma como os alunos são, actualmente, instruídos faz com que haja uma barreira no acesso aos clubes. Algumas pessoas que se apresentam como professores de Educação Física não o são. Dão aulas de Educação Física sem terem formação na área. Isso tem que acabar!

É verdade o que acabou de dizer? Está a fazer uma denúncia muito grave.

Chegámos a ter conhecimento de casos de professores de outras disciplinas que, quando encaminhados para uma escola, acabavam por dar aulas de Educação Física por falta de vagas correspondentes à sua área de formação. Isso prejudica o verdadeiro professor de Educação Física, porque pode nunca ser admitido, por estarem as vagas ocupadas por professores que não têm formação em Educação Física e Desporto. Muitas escolas precisam de professores com formação em Educação Física e Desportos. A preocupação já foi reiteradamente manifestada pela Associação dos Professores de Educação Física, que tem vincado o seu posicionamento sobre a forma como o professor de Educação Física deve ingressar no sistema de ensino público, devendo a prova de admissão, como professor, estar relacionada com a sua especialidade, que é Educação Física e Desportos. O professor de Educação Física é banalizado, até ao ponto de qualquer indivíduo apresentar-se como tal, apenas por ter praticado uma modalidade desportiva, durante anos. Ainda hoje se vive este problema, sobretudo, em escolas públicas. Não posso estar contente com isso, por ser absurdo e aberrante.

Na sua opinião, actualmente, pratica-se mais ou menos desporto, numa comparação com o seu tempo de estudante e atleta?

Estamos a praticar menos desporto. E isso deve ser encarado como um problema social, por não ser benéfico para o futuro do desporto nacional, nem para a vida das pessoas. No passado, a maior parte dos desportistas eram estudantes postos à prova nas competições entre liceus e institutos. Os mais talentosos eram convidados por "olheiros” a integrar clubes federados e assim aconteceu com muitos atletas. Um grande estadista cubano defendia a aposta na construção de muitos institutos de Educação Física e Desporto, porque promovem a saúde e o bem-estar das pessoas, assim como contribuem para a redução das despesas com medicamentos. Uma sociedade que pratica actividade física é saudável a todos os níveis, até mesmo no ensino e aprendizagem.

 

Uma prova de que o atletismo está esquecido das agendas dos governos provinciais é o facto de nunca ter sido incluído em projectos de instalação de equipamentos multiusos nas comunidades para a prática do desporto. O atletismo estaria a pedir muito se os governos provinciais colocassem pistas, mesmo de cinza, em cada município?

Seria um caminho. Ou seja, é o mínimo que deveria ser feito. Poderiam ser construídas pistas de 200 metros e uma caixa de salto. Infra-estruturas desportivas para todas as modalidades deveriam ser construídas em todas as províncias. Mas a realidade mostra-nos falta de sensibilidade e de conhecimento de muitos decisores para com a modalidade e o desporto em si. É necessário saber o que consta das agendas das direcções provinciais dos Desportos. Será que apresentam propostas do género? Os directores provinciais têm conhecimento de desporto? Um outro problema que se deve corrigir é este: Temos, no país, muitos campos de basquetebol, futebol e andebol sem as medidas regulamentadas.

O que mudaria, a curto e a médio prazos, na configuração do atletismo em cada província se for criada uma estratégia multissectorial para a massificação da modalidade?

Com uma pista de 200 metros e uma caixa de salto nos bairros, por exemplo, mudaríamos muita coisa. Seria uma forma de educar o cidadão, de prevenir muitas doenças e de evitar gastos em medicamentos, porque desporto é vida. Eu apostaria mais na formação. Teríamos mais crianças a praticar e tiraríamos muitos adolescentes das ruas.

"O atletismo está a morrer aos poucos e tem défice de olheiros qualificados”

Enquanto treinador de atletismo e, igualmente, professor de Educação Física, nunca descobriu, pelo menos, um talento para a disciplina de Salto que praticou durante anos?

O Vlademir Ricardino, antes de abraçar o basquetebol profissional, foi campeão de salto em altura, nos jogos dos Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP), em 1995, na Guiné-Bissau. A marca feita por ele, de um metro e noventa centímetros, é, até hoje, um recorde para a classe de juvenis. Nessa competição, Angola foi representada por atletas profissionais e por outros jovens que haviam deixado bons indicadores nos jogos escolares. O Vlademir Ricardino, pelo seu biótipo muito forte, estaria em condições de representar o país nas grandes competições internacionais de atletismo. Só que, depois de ter regressado ao país, foi aliciado e optou pelo basquetebol. Por esta modalidade, chegou a representar a Selecção Nacional, o Atlético de Luanda, o 1º de Agosto, Atlético Sport Aviação (ASA) e o Interclube de Angola.

Não surgiram mais pessoas com o mesmo biótipo?

Descobri, durante as minhas aulas, no INEF do Kilamba, um casal de jovens que só não deu sequência aos treinos devido à distância entre o bairro onde morava e o Estádio dos Coqueiros, onde deveria treiná-lo. A falta de investimento em recintos desportivos mais abrangentes faz-nos perder futuros e bons atletas. Se fosse construída uma pista de 200 metros em cada município, estaríamos a fazer muito pela massificação do atletismo. Parece-me que há muito mais preocupação com outras modalidades, como o futebol e o basquetebol, e prova disso é o facto de estarem sempre a ganhar novas infra-estruturas em escolas e espaços comunitários.

O número de praticantes de atletismo é satisfatório?

Não é satisfatório. O atletismo está a morrer aos poucos, por conta da situação difícil que o 1º de Agosto está a enfrentar. É o clube que mais apostou na modalidade de atletismo.

É um sonho distante a conquista por Angola de uma medalha olímpica no atletismo?

Existem sonhos que são concretizados, mas, em relação ao atletismo, Angola está muito distante, porque ainda há muito para se fazer, começando pela mudança de mentalidade dos decisores. Nem um nutricionista desportivo temos…

Embora seja verdade que, mesmo no seu tempo, não havia tantos saltadores, o que nos pode dizer sobre a decadência, ou mesmo extinção, das disciplinas de Salto e lançamentos no atletismo nacional?

Temos um grande desafio, que é a necessidade de prospecção de atletas e treinadores especialistas para algumas disciplinas do atletismo. Algumas disciplinas, como o lançamento de dardo, peso e disco, ainda são uma realidade nos campeonatos nacionais de atletismo. Mas já não encontramos o lançamento de martelo nem o salto à vara. Os talentos podem ser descobertos, mas vai faltar a continuidade e, para isso, precisamos de especialistas.    

O surgimento de atletas de alto nível não é um trabalho feito da noite para o dia. Então, pergunto-lhe: depende essencialmente de quê o surgimento de mais atletas de alto nível no país?

De uma política desportiva, que se adequa à realidade de um país que almeja alcançar e superar os êxitos do passado, e de acções concretas. Precisamos de investir em infra-estruturas e recursos humanos. Temos que recuperar as pistas que se encontram degradadas nas províncias, construir novos campos (pistas) e laboratórios, assim como apostar na formação, atrair cada vez mais jovens para a prática da modalidade e pagar melhor aos atletas e técnicos. Há escassez de "olheiros” e de treinadores qualificados para dirigirem projectos a longo prazo. Não se pode falar em atletas de alto nível no país quando a maior parte dos treinadores não tem a qualificação específica que se exige para cada disciplina. A maioria dos técnicos que temos só tem conhecimento generalizado sobre o atletismo. E o mais grave é que muitos deles sequer têm formação para monitores. São ex-praticantes, contratados depois de terminarem a carreira. Isso tem que acabar, porque realizam péssimos treinos e chegam a anular a margem de progressão de eventuais talentos. Depois acabamos todos por ser colocados no mesmo saco pela opinião pública.

Os nossos atletas não fazem testes para aferir a condição física e de saúde, no geral?

Existem testes e testes. Existem os genéricos, que são feitos cá. Nesse caso, os que a Ciência do Desporto recomenda são feitos, maioritariamente, em laboratórios no exterior do país, mas não com a regularidade que se exige, por serem caros, o que é extremamente errado.

Quem deve construir esses laboratórios em Angola?

Infelizmente, o Estado habituou-nos a fazer tudo. Mas os clubes deveriam investir nesses equipamentos, porque os atletas são os seus activos.

Desportivamente falando, Angola perde para vários países africanos, mesmo em matéria de investimento, por não ter ainda, por exemplo, um centro de alto rendimento desportivo. O que tem a dizer?

Não é um problema o facto de não dispormos de um centro de alto rendimento desportivo. Nunca o tivemos no passado, mas fazíamos boas marcas. Lembro-me que, na África Austral, ao nível do Atletismo, nós éramos os papões. Tínhamos os Jogos da África Central, com todas as modalidades desportivas, e os zonais só de atletismo, onde não tínhamos oposição. O Governo dava muita importância ao Desporto, ao ponto de ter investido grandemente nos Jogos da África Central, que o país albergou, em 1981, com um nível de organização elogiado, até hoje, pelos países que participaram. O Botswana pode ser visto como um grande exemplo de sucesso no atletismo, nos últimos anos. Está a colher os frutos, por estar a investir muito nos treinadores e nos atletas, e tem presença regular em finais dos campeonatos do Mundo e dos Jogos Olímpicos. Além disso, o Botswana fez um convénio com Cuba, para a formação de treinadores de várias modalidades desportivas. E os atletas com grande margem de progressão têm bolsas de estudo para continuarem a formação, ou nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Isso é que é valorização e investimento.

 As marcas sofríveis feitas por corredores angolanos são a única razão da ausência de angolanos da maioria das principais competições mundiais de atletismo?

Para participarem nas grandes competições, os atletas devem ter mínimos. E cada competição estabelece os seus mínimos. Se essas marcas não forem atingidas, o país é representado por um único atleta. Por isso, Angola dificilmente se faz presente nas grandes competições, por os atletas não atingirem esses mínimos.

 Até onde sei, a Federação Angolana de Atletismo foi criada em 1979 por 25 clubes, um número expressivo que faz prova de que havia uma política de massificação da modalidade. Quantos clubes têm atletismo, actualmente?

Fico triste e com sentimento amargo. O atletismo é das modalidades que deveriam ter mais clubes a praticarem. Neste momento, devemos ter não mais de 15 e, desses, cerca de 10 a competirem de facto, se a memória não me atraiçoa. Nas provas organizadas pela Federação Angolana de Atletismo participam apenas equipas das províncias da Huíla, Luanda, Namibe, Huambo e Benguela. Curiosamente, quando há eleições para a presidência da Federação inscrevem-se associações em representação de clubes que não competem. A província da Huíla, com seis ou sete clubes, tem o maior número de clubes a praticarem atletismo, encontrando-se no lugar a seguir Luanda, com quatro clubes. Porém, compete-se muito pouco. Não podemos continuar a ter o Campeonato Nacional e a Taça [de Angola de Atletismo] como duas únicas competições internas de relevo. Por época, deveria haver, no mínimo, entre 15 e 20 provas para a classe de seniores.

Que opinião teria se houvesse uma iniciativa da Federação Angolana de Atletismo voltada para a naturalização de atletas de alto nível estrangeiros com interesse de envergar as cores da selecção nacional?

Não sou contra a naturalização de atletas nem mesmo de treinadores, desde que tenham marcas que nos possam levar à conquista de medalhas. Seriam bem-vindos, sobretudo treinadores, para reforçarem o nosso quadro de técnicos, porque trariam maior nível de conhecimento. Apesar de termos biótopos para todas as classes do atletismo, podemos, sim, importar atletas estrangeiros, com performances melhores do que as dos nossos atletas e com garantias de contínua progressão. Mas será muito difícil atrair para Angola atletas estrangeiros, tendo em conta as condições que o país oferece aos praticantes de atletismo.

Hoje em dia, está na moda a abertura de ginásios que ao que tudo indica, muitos deles, não são fiscalizados pelas autoridades. Os personal trainers devem ter formação em Educação Física?

Podem não ter formação em Educação Física, mas têm de ter uma específica para a actividade de personal trainer. Alguns fazem formação e refrescamento, mas muitos não e cometem atentados à saúde pública. É só vermos como são explicados e feitos exercícios em ginásios. Causam problemas sérios à saúde do praticante. O técnico médio de Educação Física pode exercer a actividade de personal trainer por estudar, entre outras disciplinas, Anatomia e Fisiologia, que lhe dão conhecimentos sobre articulações, ossos, músculos, movimentos e o comportamento do organismo durante a actividade física baixa, média e intensa. Temos conhecimento de que muitos jovens sem qualquer formação estão a orientar pessoas em ginásios, o que é errado. As pessoas devem denunciar para que haja fiscalização sobre esta actividade. Em muitos países, como deles o Brasil, o personal trainer tem de ter formação em Educação Física. Se não tiver, é multado e impedido de exercer a actividade. É o que a Associação dos Professores de Educação Física defende para Angola. Mas essa "regra de ouro” em muitos países vai ser difícil chegar a Angola, devido a interesses de pessoas individuais. Mas o problema, em Angola, está na falta de uma fiscalização rigorosa e actuante, algo de que se precisa, porque quem autoriza a abertura de um determinado ginásio tem de combater com rigor o exercício da actividade quando é feito de forma ilegal.

"Não tenho uma moradia própria e padeço de doença profissional”

Como surgiu o nome "Gira”?

O nome foi-me atribuído por um irmão da viúva do saudoso guitarrista Duia, devido à minha constituição física. O senhor Sousa, nas visitas regulares aos seus familiares, comentava, quando me encontrasse na rua, que eu parecia uma girafa, por ser alto e muito magro. Na época, já treinava atletismo, mas ainda não era atleta de alta competição e jogava muito futebol de rua.

Como foi descoberto para o atletismo?

Fui descoberto na escola Emídio Navarro (actual Ngola Mbande), durante as aulas de Educação Física e num campeonato entre turmas, onde fiquei no segundo lugar na prova de salto em altura. Frequentava a actual 5ª classe, com 11 anos. Fiquei, também, na mesma posição, numa competição entre escolas de Luanda. Comecei a treinar atletismo quando fui orientado por um professor a ir ao campo de São Paulo, onde treinava o Atlético, hoje Petro de Luanda. Como não me sentia motivado, abandonei, passado algum tempo, os treinos e preferi praticar futebol de rua, onde era guarda-redes, por influência de amigos. No liceu, por influência de colegas, passei a frequentar o Centro de Atletismo dos Coqueiros, onde fui colocado a treinar barreira. Nessa fase, o treino era às 17h00, mas nós chegávamos às 15h30, para fazer concurso de salto em altura. E foi com um treinador búlgaro que aperfeiçoei essa disciplina de salto em altura. O Centro de Atletismo dos Coqueiros foi depois encerrado. Por esta razão, regressei ao Atlético, levado pelo já falecido e saudoso João Teixeira, ex-presidente da Federação Angolana de Atletismo. Pelo atlético, competi, no Congo Brazzaville, em 1979, mas já não cheguei a representar internamente o Petro Atlético, porque, na época, fui convocado para cumprir o serviço militar obrigatório. Fiz a instrução e juramento à bandeira no Negage e, na mesma localidade, testes de aviação, com técnicos romenos, em 1980. Recebi, mais tarde, uma proposta para treinar no clube 1º de Agosto, recusada, inicialmente, por mim. O 1º de Agosto voltou à carga, com uma promessa para eu fazer um curso de manutenção, na base da Força Aérea, em Luanda, e treinar ao mesmo tempo. Não fiz o curso porque o meu nome foi retirado da lista, por uma razão que, até hoje, desconheço, e, mesmo assim, fui praticamente obrigado a integrar o 1º de Agosto.

Ainda se lembra do número de medalhas que conquistou?

Para ser sincero, não! Ganhei sempre medalhas, desde o primeiro campeonato nacional em que participei, em 1979, até ao último, em 1987. Venci, maioritariamente, medalhas de ouro, na disciplina de salto em altura. Foram muitas as medalhas conquistadas em competições internas e internacionais. Recordo-me, com mais facilidade, das conquistas de medalhas em provas internacionais, por serem a minoria. Ganhei em salto em altura, salto em comprimento, triplo salto, 110 metros barreiras e estafeta 4x100. Como estudante, em Cuba, conquistei, também, medalhas de ouro em quatro campeonatos provinciais e no campeonato universitário. Pela Selecção Nacional de Atletismo, conquistei ouro na prova de salto em altura, nos II Jogos da África Central, realizados em Luanda, em 1981; ouro em salto em altura, num zonal, no Congo-Brazzaville, em 1980; ouro, no salto em comprimento, e prata, no salto em altura, num zonal, no Gabão, em 1981, e ouro, no salto em comprimento, em Moçambique, em 1985.

Alguma vez foi convidado a representar as cores de um clube no estrangeiro?

Em 1982, o Sport Lisboa e Benfica e o Sporting Clube de Portugal mostraram interesse por mim, mas não de forma directa. Informação de que tomei conhecimento através de atletas de ambos os clubes. Em 1983, nos Jogos Universitários, realizados no Canadá, e, em 1987, num estágio, em Portugal, o Sport Lisboa e Benfica voltou à carga. Em 1987, eu já tinha uma proposta para estudar, como bolseiro, em Cuba. Mas importa aqui dizer que eu e o Gualberto Paquete fomos contactados, para ficarmos no Canadá, por um treinador da selecção canadiana, que esteve nos Jogos Universitários.

O que faz, actualmente?

Presto assessoria não remunerada a alguns colegas, professores de Educação Física e treinadores de vários clubes, quando estes têm alguma dúvida. Estou aposentado da Educação, desde 2020, e, por causa do estado em que me encontro, a andar de canadianas, tive que me afastar do 1º de Agosto. Vi, há pouco tempo, o meu nome numa lista de funcionários do clube que seriam aposentados, mas, até agora, ninguém me diz nada. Embora seja do conhecimento do clube o meu estado de saúde, nunca fui chamado para abordar o assunto, e não me pagam salários há mais de dois anos. O que seria de mim se não tivesse sido funcionário do sector da Educação?

Qual é, actualmente, a sua condição social?

Não é má, mas também não é das melhores. Acho que, por aquilo que fui e sou para o atletismo, a minha vida deveria ser muito melhor. Mas é o país que temos! Na minha condição, existem outros. Não tenho, por exemplo, casa própria…

Que problema de saúde tem que o faz andar de muletas?

Tenho uma doença profissional, causada pela actividade física. Ando com apoio a canadianas, desde 2018, porque tenho a cartilagem gasta. E foram, primeiro, algumas pessoas que deram conta de que eu não andava direito. Fui submetido a uma intervenção cirúrgica, em 2013, no Hospital Américo Boavida, em Luanda, por uma equipa de médicos portugueses e integrada por excelentes ortopedistas angolanos. Aplicaram-me uma prótese e uma camada. Mas, devido à minha actividade profissional, a camada gastou, o que me levou ao estado em que me encontro, a andar de canadianas. Com o apoio de familiares, cheguei a Espanha, onde me foi informado de que devo fazer mais uma intervenção cirúrgica para correcção. Mas não tenho condições financeiras para custear as despesas. Escrevi algumas cartas, solicitando apoio, a algumas instituições, mas os pedidos foram indeferidos. Enquanto há vida, há esperança. Mas caso não consiga, o que devo fazer? Morro assim...

Biográfia: Orlando Estácio Miranda Bonifácio

 

Idade

64 anos

Nacionalidade

Angolana

Naturalidade

Caxito (Bengo)

Estado Civil

Divorciado

Profissão

Professor e treinador de atletismo

Altura

1 metro e 81 centímetros

Passatempo

Música, leitura e ver programas de televisão 

Prato preferido

Cacusso com feijão de óleo de palma

Religião

Católica

Melhor treinador que teve

Yuri, de nacionalidade russa

Ídolos (atleta e treinador no atletismo)

Dwight Edwin Stones (antigo recordista mundial do salto em altura) e Matos Fernandes

Clubes do coração (nacional e estrangeiro)

Clube Ferroviário de Angola, 1°Agosto e Sport Lisboa e Benfica

Músicos (nacional e estrangeiro)

Rui Mingas e Martinho da Vila

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