Opinião

Pedintes sabichões

Luciano Rocha

Jornalista

A pobreza não escolhe estratos sociais, bate à porta de analfabetos e letrados, ricos e pobres, sequer de géneros, tão-pouco idades ou decências, arrebanha todos sem distinção, é, pode dizer-se, sem intuitos ofensivos, “democrática”.

22/02/2024  Última atualização 06H05
O tema não é novo, mas tem vindo a acentuar-se ao ritmo dos desenvolvimentos das  sociedades, frequentemente em paradoxo com realidades discriminatórias cavadoras de caboucos imunes a cenários fantasiosos que se desfazem ao primeiro abanão.

O slogan "nem sempre houve ricos e pobres, nem sempre haverá ricos e pobres”, cada vez menos lembrado, foi sendo substituído por "palavras de ordem” mais consentâneas com mundos de hoje, nos quais solidariedade é vocábulo atirado para livros de memórias esquecidas.  Idênticos aos dos tempos em que se comprava tudo a crédito, com dívidas a  engrossarem as páginas dos livros de comerciantes de "aponte aí, quando receber pago”.   São estórias de ontem, que não se repetem hoje.

O Mundo, como se depreende, não era, então, "mar de rosas”. As diferenças sociais, entre outras, transbordavam, mas o sentimento de honradez não ficava atrás. Angola, então ocupada, era exemplo disso. Viver com decência, de poder andar na rua de cara levantada, era algo tremendamente custoso, mas possível, que compostura é forma de estar, ser, viver. Nada tem a ver com soberba. Pelo que evocar aqueles tempos com saudade apenas por ignorância ou... vá lá saber-se porquê.

Naqueles anos, os angolanos dignos dessa designação, viviam - nas cidades, vilas, aldeias, quimbos - com "o coração nas mãos”, que colonialismo era isso mesmo, no máximo da prepotência que transportava, mesmo quando coberto , tal qual lobo disfarçado de cordeiro, com a capa do paternalismo, forma mais revoltante de qualquer ser humano ser tratado.

A contrapor, minimamente, àqueles desaforos, resplandecia a solidariedade aos mais desvalidos pela sorte, com todo o fulgor que a caracteriza, quando desinteressada.

Naqueles anos de não ter saudades, mas jamais esquecer, havia nas cidades, vilas, aldeias e quimbos, exploração infantil ditada pela pobreza. Meninas e meninos não tiveram, a maioria, tempo de serem crianças. Elas, acarreavam, à cabeça, em baldes maiores do que elas, água dos rios, lagoas, cacimbas; nas vilas e cidades, também aprendiam a costurar: eles, essencialmente iniciavam-se em ofícios de mecânica automóvel, bate-chapas, electricidade, alfaiataria. Em qualquer dos grupos sem receberem um tostão, em alguns casos até pagavam. O mais que lhes davam eram reprimendas, chapadas.

Naqueles tempos de não ter saudade, mas jamais esquecer, aprender a ser adulto custava caro. Os meninos, designadamente os sem escolaridade nenhuma, iam para ardinas e engraxadores... de sapatos, saliente-se, para que os destes anos recentes não pensem que havia profissão de bajuladores.

A vida naqueles anos de não ter saudades, mas jamais esquecer, raros eram os que frequentavam o ensino secundário. Estatuto deixado a poucos e, mesmo assim, dividido por barreiras de desigualdades: de género e sociais. Os mais afortunados,  provenientes da pequena - burguesia, principalmente funcionários públicos, escriturários, cobradores, auxiliares de enfermagem, podiam aspirar a andar no liceu, os outros a entrar nas escolas industrial e comercial.

As causas da destrinça reflectiam-se nos pagamentos das matrículas, propinas e material escolar, mais caros no primeiro caso. As desigualdades também eram de género. Nada de misturas. Que num regime político, como o que vigorava naqueles anos, cuja divisa era "Deus, pátria e família”, os bons costumes aparentes tinham de ser preservados. Ai de quem ousasse contrariá-los.

Angola comemora este ano, o 49ª aniversário como país soberano. A maioria dos que lutaram, nos maquís  e na clandestinidade no interior do país, eram jovens integrantes de grupos com origens sociais e académicas diferentes, o que não impediu a concretização do sonho de séculos.

A Angola de hoje é tão diferente”! Na maioria dos casos para melhor, mas, paradoxalmente, em determinadas alturas, nem por isso. As carências que a maioria, cada vez maior, sente para sobreviver são "dores de parto” de um país que continua a pagar com juros as guerras que, até há bem pouco tempo - pouco mais de uma década, acentue-se - teve de travar. Quem as fomentou sabemos alguns de nós quem foram, mas devíamos saber todos, principalmente as gerações mais recentes.

Ainda nos faltam estabelecimentos de ensino de todos os níveis, tal como professores em quantidade e qualidade, mas incomparavelmente mais do que na era colonial. Uma das prioridades, todavia, é apurar e resolver o problema crescente de pedintes, sobretudo na capital do país.  Muitos deles, cada vez mais, autênticos profissionais da mão estendida.

São pedinchões postados, de manhã à noite, em todos os cantos, mormente às entradas de centros comerciais e estabelecimentos de restauração. Já não se limitam a pedir. Dizem o que querem: pacotes de massa, arroz, batatas fritas, sacos de pão, queijo, fruta. Até tostas, sandes, bolos específicos, coxas de frango assado.

Uma coisa são necessidades de quem, de um dia para o outro, perdeu o emprego e respectivo salário, sustento, não raro, de toda a família. Outra, é pela passividade, incitarmos  sabichões, pedinchões.

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