Reportagem

PGR ordena arquivamento do processo contra director do Museu do Dundo

Armando Sapalo | Dundo

Jornalista

O magistrado do Ministério Público Junto do Tribunal de Comarca do Chitato, na Lunda-Norte, António Ntoko Pinto, ordenou o arquivamento do processo-crime contra o director-geral do Museu do Dundo, Ilunga André, que tinha sido indiciado no crime de furto qualificado de duas peças do Museu Regional do Dundo, jóias e supostas pedras de diamante, por não existir qualquer crime.

04/11/2023  Última atualização 15H25
Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Comarca do Chitato, na Lunda-Norte © Fotografia por: Benjamin Cândido | Edições Novembro

Outros dois funcionários da instituição, igualmente arrolados no processo, foram também inocentados. Entre  as peças constam a  Estatueta  Samanhonga ( Pensador ) e a Máscara feminina "Mwana Pwo”, que  simboliza o rosto da mulher na cultura Lunda Cokwe , uma das oito   que,  na  década de 1990, foram ilegalmente levadas  para a  Europa,   recuperadas depois  pela Fundação  Sindika Dokolo,  a partir do Reino da Bélgica. As mesmas foram devolvidas ao Museu do Dundo, em 2019.

Segundo o despacho de abstenção da Procuradoria-Geral da República, a que o Jornal de Angola teve acesso,    os dois outros colaboradores do Museu Regional do Dundo  que,  em Abril deste ano  tinham sido acusados, por tentativa de furto do referido património, são a chefe de Departamento de Museografia, Marisa Maianga Calonge, e o técnico Osvaldo Boaventura. 

No mesmo despacho, o magistrado ordena  que seja também  notificado o órgão de tutela do Museu Regional do Dundo, no caso o Ministério   da Cultura e Turismo, cessando todos os impedimentos e restrições que lhes haviam sido aplicados no processo.

"Nestes termos  e ao abrigo do artigo  322  nº do Código do Processo Penal,  ordeno o  seguinte:  sejam  os autos arquivados , por não existir qualquer crime, devolução ao   museu dos  meios apreendidos no  processo. Cessam todos os impedimentos e restrições que lhes haviam sido aplicados no presente processo, notifique o  arguido deste despacho , bem como o seu órgão de tutela”, lê-se no documento.

O Jornal de Angola apurou que, além dos artefactos e jóias, a quantidade dos supostos diamantes era de quatro lotes contendo 1.879 pedras  que se encontravam  num  cofre  da Sala de Animação Cultural do museu, facto que também constou do processo.

Os   indiciados foram soltos sob Termo de Identidade e Residência  ( TIR),  a 29 de Abril, por ordem do   magistrado do Ministério   Público junto do Serviço de Investigação Criminal.

Argumentos de abstenção

De acordo com o despacho de abstenção do Processo nº 29096/23, do Magistrado do Ministério Publico junto do Tribunal de Comarca do Chitato, no passado dia 19 de Abril do corrente ano,  por volta das 14h00, os arguidos Osvaldo Boaventura e Marisa Calonge, fazendo-se acompanhar de dois serralheiros, alegadamente, por ordens do co-arguido Ilunga André, arrombaram o cofre onde eram guardadas jóias,  máscaras e supostas pedras de diamante.

Os objectos retirados do cofre foram posteriormente  colocados no gabinete do director-geral, que já estava de viagem marcada para o estrangeiro.

 No  dia seguinte,  mediante uma denúncia,  a informação chegou ao SIC,  facto que levou a detenção dos acusados  e  presentes ao Ministério Público  que,  por sua vez, ordenou a abertura e instrução do processo-crime.

Terminada a fase de instrução, o processo foi remetido ao Ministério Publico junto do Tribunal para deduzir a acusação.

Analisados os autos, prossegue o magistrado, "verifico que os indícios, já fracos desde o início, fragilizaram-se ainda mais e a prova colhida na instrução demonstrou claramente que o facto criminoso não existiu, tratava-se de um facto delituoso aparente”.

O procurador António Ntoko Pinto argumenta que a suspeita de que o cofre foi arrombado com a finalidade de se subtrair os supostos diamantes caiu por terra " porquanto, os arguidos  fizeram-no porque o  funcionário que detinha as chaves e os códigos, o senhor António Wangualilbile, faleceu no  mês  de Março e havia o receio das mesmas caírem em mãos  estranhas” .

A acrescer a esse facto, aproximava-se o Dia Internacional dos Museus, 18 de Maio, e era necessário preparar as festividades, com actividades de exposição de artefactos, daí ter sido necessário a  abertura do cofre, esclarece o magistrado.

Um dos declarantes, ouvido  no mesmo processo, segundo o despacho, foi   Samuel Luís Minerva, um dos  funcionários  do museu que ocupa as funções de chefe de Departamento de Investigação Científica,  confirmou que ele e o arguido Ilunga André haviam se  deslocado até a residência do falecido colega que tinha as chaves e indagaram acerca do paradeiro  das mesmas.

Os familiares do malogrado procuraram as chaves, mas  não as encontraram. A decisão de arrombamento do cofre havia sido tomada numa reunião do conselho de direcção, conforme a acta datada de 27 de Março de 2023, sublinha o despacho do Ministério Público.

Quanto às  supostas pedras de diamante,  foram examinadas por especialistas da Sociedade de Diamantes de Angola ( SODIAM )  e do Corpo Especial de Segurança de Minerais Estratégicos ( CESME ) que  concluíram que as mesmas eram falsas.   Ou seja,  "são simples réplicas para efeitos de exposição, no Museu Regional do Dundo”.  

A suspeita de que o director-geral do Museu Regional do Dundo se preparava para uma viagem  ao  exterior, durante a qual levaria as referidas pedras de diamante  não se  confirmou, mas o mesmo tinha um bilhete de passagem e com a autorização superior do ministro de tutela , para se deslocar à República   de São Tomé e Príncipe, onde participaria num seminário, conforme oficio do gabinete do ministro da Cultura e Turismo.

  Falta de segurança

O Museu Regional do Dundo precisa de recrutar, no mínimo, seis vigilantes para garantirem a segurança e protecção quer da instituição como do acervo, que engloba mais de 10 mil peças etnográficas e 30 mil de história natural (Biologia).

Além dos vigilantes em falta, os técnicos são insuficientes, num universo de mais de 80 funcionários de distintas especialidades que a instituição precisa, de acordo com Estatuto orgânico do Museu Regional do Dundo.

Estão em falta especialistas nas áreas de Biologia, Arqueologia, Antropologia, técnicos em restauração e conservação de peças, guias e trabalhadores administrativos.

Actualmente, o número de trabalhadores é inferior a 20, uma preocupação já reportada ao titular do Ministério da Cultura, Turismo e Ambiente, segundo o director da instituição.

O Museu Regional do Dundo compreende três áreas de investigação, designadamente Arqueologia, História Natural (Biologia) e Etnografia.

Depois da conclusão das obras do depósito geral, vai ser feito um novo inventário do actual acervo com a finalidade de aferir o número de peças existentes.

O acervo de arqueologia nunca foi inventariado, mas há perspectivas de que esta actividade seja feita após a  conclusão das obras do edifício que vai albergar o depósito-geral do Museu.

As autoridades da Lunda-Norte  sempre defenderam que, para se garantir maior protecção do vasto acervo disponível, e sobretudo nas salas de exposição, é urgente a contratação de mais quadros para a instituição.

Máscara Mwana Pwo

A máscara "Mwana Pwo” traduz uma face de mulher. O termo "Mwana Pwo” significa rapariga. Essa máscara simboliza a beleza e a figura da mulher.

O uso coincide com zonas de antigo regime social de matriarcado, sendo frequente no nordeste da Lunda-Norte. Embora represente uma mulher, o bailarino desta máscara, como de todas as outras, é sempre um homem.

A máscara, segundo os mais velhos da cultura Cokwe , é, possivelmente, a mais estimada dos povos do Leste de Angola. A máscara tem nas orelhas e na parte nasal, canudos de caniço entalhado que representam um dos mais antigos adornos do corpo, a par das tatuagens de padrão lunda e cokwe.

Por baixo do queixo da máscara vê-se a gola de rede que serve para prender ao rosto do bailarino que se reveste da mesma rede. "Mwana Pwo” é um símbolo da graça do sexo feminino e os bailarinos desta máscara são profissionais.

Pelo realismo da sua beleza e requinte, "Mwana Pwó” constitui uma das mais belas e conhecidas máscaras de Angola.

O Museu  do Dundo, criado há 87  anos, é ainda hoje uma fonte de conhecimento dos valores mais profundos da cultura material e espiritual dos povos da região Leste de Angola.

O trabalho aturado de estudos e pesquisas realizado nas décadas de 1940 e 1950 do século passado, relativamente aos povos do nordeste de Angola, com especial destaque para os Cokwe , tornou  a instituição , nessa época, num verdadeiro centro de investigação de referência na África Subsariana.

 Apesar da etnografia ocupar uma posição privilegiada, como atestam as colecções de elevado valor artístico e cultural do seu vasto acervo, o Museu Regional do Dundo é uma instituição multidisciplinar, por abarcar no seu programa de trabalho as áreas de antropologia, zoologia, botânica, geologia e arqueologia.

Dados em posse do Jornal de Angola dão conta que a  actual exposição de longa duração comporta as salas de pré-história e arqueologia, de organização social,  política,  actividades económicas,  artes , parte  lúdica  e  uma área  intermédia , destinada à  exibição de filmes etnográficos.

Fazem igualmente parte da exposição as salas dedicadas à religião, iniciação masculina e medicina tradicional,  percurso histórico da indústria mineira ,  colonização e resistência à ocupação colonial.

Em 2015, o Ministério de tutela e a Fundação Sindika Dokolo firmaram uma parceria para a recuperação das peças roubadas no Museu  Regional do Dundo  e levadas  clandestinamente  para a Europa.

Em Novembro de 2018, a Fundação Sindika Dokolo  entregou  as oito  peças ao então Ministério da Cultura,  das que tinham sido ilicitamente exportadas  e que pertencem ao acervo do Museu Regional do Dundo.

Na  sequência da  recuperação das peças, foram apresentadas, publicamente, em Bruxelas, capital da Bélgica, durante uma conferência de imprensa em que estiveram representantes do Ministério de tutela e da embaixada de Angola naquele país.

A apresentação  ao Museu Regional do Dundo e comunidades locais  da região  Leste de Angola aconteceu a 12 de Abril de 2019, na comunidade do grupo etnolinguístico  Lunda e Cokwe.

A  principal fonte documental que serviu de base para a localização  e identificação das peças foi  o livro de Marie-Louise Bastin, intitulado "Art décoratif Tshokwe”,  publicado em 1961.

A Fundação Sindika Dokolo, responsável pela recuperação das peças, teve a colaboração de outras instituições especializadas  como o Museu de África  Central  de Tervuren, na Bélgica,  a  Interpol  entre outras instituições internacionais.

As referidas peças, entre as quais a  Máscara Mwana Pwo, encontram-se na sala de exposição permanente ( longa duração ), onde os visitantes podem apreciar o potencial do acervo do Museu do Dundo.

Do acervo  museológico recuperado pela Fundação  Sindika Dokolo  constam a cadeira              Cokwe  (Ngundja),  a Máscara feminina (Mwana Pwo), a Máscara (Cihongo),  Estatueta Cokwe Luena (kaponya wa pwo), Taça de comida do  tipo Panda (Ymbia Kaponya wa pwo), Cachimbo Cokwe (Pexi wa Makanya) e Banco redondo  (Citwamo  ca xiki mutwe  wa mukixi  wa cihomgo).

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