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Quem são os jihadistas que aterrorizam Moçambique?

Os militantes do grupo jihadista islâmico Al-Shabaab que atacaram a cidade de Palma, no Norte de Moçambique, na semana passada, matando e ferindo vários residentes e também trabalhadores dos projectos de exploração de gás na região - o que levou a gigante francesa de energia Total a suspender os trabalhos no local - têm aterrorizado a província de Cabo Delgado ao longo dos últimos três anos.

31/03/2021  Última atualização 08H31
© Fotografia por: DR
As origens
Em Outubro de 2017, cerca de 30 homens armados lançaram uma operação contra três es-quadras da Polícia em Mocímboa da Praia, uma cidade portuária na província de Cabo Delgado, uma região predominantemente muçulmana na fronteira com a Tanzânia.
"Todos nós sabíamos que eles eram perigosos, mas nunca pensámos que fossem capazes de travar uma guerra", disse um imã local, que então morava em Mocímboa da Praia - cerca de 80 quilómetros a Sul de Palma.

Três anos depois, o conflito já criou raízes e o grupo Ahlu Sunnah Wa-Jama (ASWJ), também conhecido por Al-Shabaab, desencadeou uma crise humanitária semelhante à provocada pelos tempos de guerra civil em Moçambique (1977-1992).
Os ataques do grupo jihadista já provocaram, pelo menos, 2600 mortos, metade deles civis, e originaram quase 700 mil pessoas deslocadas.

No ano passado, os rebeldes islâmicos começaram a aumentar a frequência e violência dos seus ataques e a publicar vídeos de combatentes a agitar bandeiras negras e a jurar lealdade ao ISIS, o autoproclamado Estado Islâmico. Em Agosto passado, tomaram novamente a cidade de Mocímboa da Praia, que ainda está sob o controlo do grupo.


O ataque de Palma
As tácticas do Al-Shabaab envolveram queimar aldeias e decapitar habitantes locais enquanto as tropas moçambicanas lutam para recuperar terreno na remota província florestal, com a ajuda de companhias militares privadas.
Com o ataque da semana passada, os rebeldes assumiram o controlo da vila de Palma, a apenas dez quilómetros do centro nevrálgico do mega projecto de gás natural que representa um dos maiores investimentos de África, liderado pelo grupo francês de energia Total.

Os rebeldes armados invadiram Palma, uma vila costeira de cerca de 75 mil habitantes, desde três direcções diferentes, na tarde de 24 de Março. Moradores e cerca de 200 trabalhadores da planta de exploração de gás viram-se obrigados a fugir e procurar refúgio no hotel Amarula, de onde tentaram depois sair para as instalações do projecto de exploração de gás, com pelo menos sete deles a serem mortos numa emboscada.

As autoridades sabiam do ataque iminente "porque havia informações de que um ataque iria ocorrer pelo menos três dias antes", mas não fizeram nada para evitá-lo, refere à agência francesa AFP o investigador sénior do Instituto de Estudos de Segurança (ISS) Martin Ewi.
Testemunhas disseram à Human Rights Watch que os rebeldes "dispararam indiscriminadamente contra pessoas e edifícios", deixando vários corpos caídos na rua.

O ataque violento e calculado quebrou um hiato de três meses nas acções dos jihadistas e ocorreu exactamente duas semanas depois de o Departamento de Estado dos EUA ter catalogado o Al-Shabaab como um grupo terrorista li-gado ao EI, ao qual terá "jurado lealdade já em Abril de 2018".
Os serviços de inteligência norte-americanos colocaram na lista negra o nome de Abu Yasir Hassan, atribuindo-lhe o papel de líder do ISIS-Moçambique.


Mais sofisticado
Milhares de soldados moçambicanos foram destacados para Cabo Delgado, mas a capacidade de Moçambique para combater a insurgência há muito que é questionada, com analistas a apontar para a falta de treino e equipamento das tropas governamentais. O Governo contratou uma empresa militar privada sul-africana, Dyck Advisory Group (DAG), que também está a ser alegadamente ajudada por agentes de segurança russos da Wagner.

Os EUA anunciaram, este mês, que militares americanos passariam dois meses a treinar soldados em Moçambique para ajudar o país a combater a insurgência jihadista. Alexander Raymakers, analista sénior para África da empresa de inteligência de risco Verisk Maplecroft, com sede no Reino Unido, sugeriu que os jihadistas "usaram o hiato de três meses nos ataques" para preparar uma operação de "alto nível" a Palma.
"É uma demonstração clara de que o Al-Shabaab aumentou constantemente as suas capacidades militares, cresceu em sofisticação e mantém a iniciativa".


 Sofrimento
de famílias em Pemba

Gafuro Amade não tem comida que chegue em casa para quando acolher a família em fuga dos ataques terroristas de Palma e que espera ver em breve em Pemba. "Não tenho comida", refere. "Se almoçar, jantar vai ser difícil" e vice-versa.
Na pequena casa de Mieze, arredores da capital provincial, onde vivem 12 pessoas, podem agora chegar mais 15.
Parte vai dormir "no quintal, com apoio de lonas", refere, mas deixando o assunto para depois, porque para já quer saber se a família está viva e a caminho de Pemba em navios que estão a evacuar a zona e vão chegando à capital provincial.

Na sede da Cáritas há 'kits' compostos por bolachas e água à espera de indicações das autoridades para serem entregues a quem chegar, explica Betinha Ribeiro, membro da organização humanitária.
Segundo refere, a maioria das pessoas que até agora chegaram a Palma em embarcações, desde domingo, integravam os projectos de gás e aguarda-se a chegada da população que precisará de maior apoio, depois de passar dias sem comida, nem água. O material já empilhado na sede da Cáritas dá para quase duas mil pessoas, mostra Betinha Ribeiro.

Fonte da petrolífera Total disse à Lusa que um navio vai transportar cerca de mil pessoas, população que está refugiada em Afungi, junto ao recinto do investimento, vai ser transportada num navio para Pemba, dando prioridade às pessoas mais debilitadas.
Na capital provincial as diferentes organizações humanitárias estão a mobilizar-se para acolher esta nova vaga de deslocados.

Gafuro Amade está desde domingo a caminho do porto de Pemba para saber de novidades, e promete não arredar pé, tal como fazem dezenas de outras pessoas que passam o dia ali à espera.
Francisco Jonas, também não tem comida suficiente para a família que espera reencontrar, mais de 10 pessoas incontactáveis depois da fuga de Palma.
"Comer todos os dias? Com a comida que tenho? Isso de-pende de Deus", refere, sem saber como reorganizar uma vida já sem recursos para ter farinha ou arroz. "Ainda não tenho respostas, mas confio no Governo e no que vão organizar", refere.

Alfan Cassamo explica que a Covid-19 veio agravar a situação da província de Cabo Delgado.
A pandemia está a tirar comida da mesa porque "há menos emprego", menos oportunidades numa terra onde já eram parcas e que apostava tudo na economia em redor da exploração de gás - que o ataque em Palma voltou a pôr em cheque.
"A comida fica cara, porque tens pouco dinheiro que te aguente durante mais tempo", explica. "Comida suficiente? Isso não posso garantir", diz, mas uma coisa promete: partilhar o que tiver.


  Ataque estratégico

A consultora NKC African Economics considerou, ontem, que uma intervenção internacional é inevitável no Norte de Moçambique e salientou que o ataque da semana passada "foi estratégico" porque impede os trabalhos no mega projecto de gás.
"O ataque a Palma foi um ataque estratégico, tendo em conta a proximidade com as operações da Total, e o timing pode ter tido a ver com a decisão de recomeçar os trabalhos", escreveu o analista Zaynab Mohamed numa nota enviada aos clientes, e a que a Lusa teve acesso.

No comentário à violência que se vive na região, Zaynab Mohamed acrescentou que "vai ser necessária uma intervenção internacional para recuperar o controlo e atingir a estabilidade na região", já que a única estrada que pode levar mantimentos até à zona do mega projecto de transformação do gás é controlada pelos terroristas.

"Devido à falta de desenvolvimento na área, só há uma estrada pavimentada para Palma, que alegadamente está sob o controlo dos insurgentes há várias semanas; se os militantes conseguirem manter o controlo de Palma também, isso tornará praticamente impossível que os trabalhadores do projecto tenham acesso a mantimentos via terra", escreveu o analista.

Para Zaynab Mohamed, "a crise de segurança em Cabo Delgado está a tornar-se mais séria, porque os grupos armados presentes na região, apesar de estarem visíveis desde 2017, estão agora claramente mais preparados e mais coordenados, o que sugere que estão a receber apoio externo".
Os equipamentos militares comprados pelo Governo moçambicano, considerou, não vão conseguir resolver o problema e por isso é preciso uma intervenção internacional.

"Quanto mais tempo demorar para ganhar terreno aos insurgentes, mais difícil será recuperar o controlo da área e recomeçar o trabalho no projecto de gás", concluiu o analista.
O projecto Mozambique LNG consiste na exploração de gás ao largo da costa no campo Golfinho-Atum, na Área 1 da bacia do Rovuma, bem como a construção de uma central em terra.
A petrolífera francesa Total é a maior detentora do projecto, com 26,5 por cento, seguida da Empresa Nacional de Hidrocarbonetos, com 16,5 por cento, e mais cinco entidades multinacionais, com participações menores.

O projecto deverá começar a exportar gás em 2024, ano em que é previsível que as receitas do país subam exponencialmente, financiando os investimentos para o desenvolvimento económico de Moçambique.
A província de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique, é desde há cerca de três anos alvo de ataques terroristas e o último aconteceu no passado dia 24, em Palma, em que dezenas de civis foram mortos, segundo o Ministério da Defesa moçambicano.

O movimento terrorista Estado Islâmico reivindicou, na segunda-feira, o controlo da vila de Palma, junto à fronteira com a Tanzânia.
Vários países têm oferecido apoio militar no terreno a Maputo para combater estes insurgentes, cujas acções já foram reivindicadas pelo autoproclamado Estado Islâmico, mas, até ao momento, ainda não existiu abertura para isso, embora haja relatos e testemunhos que apontam para a existência de empresas de segurança e de mercenários na zona.


ONU considera situação  
muito preocupante


A situação humanitária no distrito de Palma, província de Cabo Delgado, é "extremamente preocupante", considera o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA), num relatório de actualização ontem divulgado.

"Dezenas de civis terão sido mortos e os confrontos entre grupos armados e as forças de segurança estavam ontem em curso, pelo sexto dia consecutivo, de acordo com relatórios de várias fontes", na sequência do recente ataque de grupos armados a Palma no passado dia 24, avança a organização da ONU. A informação sobre a situação é, no entanto, "extremamente difícil de verificar, devido a interrupções nas comunicações na cidade de Palma", explica-se no relatório.

Milhares de pessoas terão fugido para o mato em torno da cidade de Palma, enquanto vários milhares procuraram refúgio junto às estruturas de prospecção de gás natural em Afungi.
As equipas de acompanhamento de deslocados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) já receberam relatos da existência de mais de 3.100 pessoas deslocadas de Palma a chegar aos distritos de Nangade, Mueda, Montepuez e Pemba.

Viviam no distrito de Palma mais de 110 mil pessoas, antes dos combates, entre os mais de 67 mil residentes e mais de 43.600 pessoas que tinham procurado refúgio na vila, provenientes de outras partes da província de Cabo Delgado desde que o conflito começou, em Outubro de 2017.
Antes dos acontecimentos iniciados a 24 de Março, as pessoas em Palma enfrentavam já uma situação precária, em que a insegurança agravava um período de escassez, deixando "milhares de pessoas com necessidades urgentes de assistência adicional", segundo a OCHA.

"Em Janeiro de 2021, depois de ataques e a insegurança terem cortado todas as principais vias rodoviárias de acesso a Palma, foram relatadas faltas de mercadorias básicas nos mercados", aponta-se no relatório.
Por outro lado, a escalada da violência em Palma ocorre num momento em que mais de 1,3 milhões de pessoas - incluindo quase 670 mil pessoas deslocadas internamente - já necessitavam de assistência humanitária e de protecção urgentes em Cabo Delgado e nas províncias vizinhas de Niassa e Nampula, segundo a agência da ONU.

"Quase 580 mil pessoas foram retiradas das suas casas só em 2020, período em que o número de ataques por grupos armados não estatais - incluindo assassinatos, decapitações e raptos - se expandiu geograficamente e aumentou de intensidade", sublinha-se no relatório.

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