Cultura

Um problema do populismo

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Para a conversa de hoje retomo uma das derivações temáticas sobre o conceito de cultura angolana e angolanidade que, há quatro anos, desenvolvi num seminário do curso de Mestrado em Ciência Política

18/04/2021  Última atualização 07H00
PERIGOS DA AUTOCTONIA E ALOCTONIA © Fotografia por: DR
É um exercício a que me vou propondo com o objectivo de clarificar o sentido dos conceitos de angolanidade e outros que gravitam à sua volta, tais como nativismo, nacionalismo e proto-nacionalismo. Tal se deve ao facto de constituírem instrumentos operatórios das minhas reflexões sobre a história intelectual angolana, no período compreendido entre a segunda metade do século XIX e  as três primeiras décadas do século XX. Além disso, alguns dos meus leitores interpelam-me, quer pessoalmente quer por interpostas pessoas, manifestando a vontade de interpretar e compreender.

Autoctonia e populismo

Uma das questões formuladas pelos leitores consiste em saber se o conceito de angolanidade não é expressão de autoctonia, sendo por isso um eufemismo de xenofobia e exclusão de alóctones, isto é, angolanos não nascidos em Angola. No referido seminário do curso de Mestrado em Ciência Política, orientava a atenção dos estudantes para a necessidade de evitar equívocos, quando se tomam modelos explicativos que não são expurgados das suas cargas semânticas contextuais. Deste modo, a derivação temática sobre os conceitos de cultura angolana e angolanidade requer uma perspectiva global. Pode dizer-se que estamos perante questões dignas de tratamento no âmbito de uma filosofia da cultura angolana em diálogo com uma filosofia política.

Etimologicamente, autóctone é um palavra originária da língua grega antiga. Deriva de "autókhthōn”. Esta por sua vez forma-se a partir da aglutinação de duas unidades vocabulares: "autós” (eu) e "khthṓn” (terra, solo). Significa "nativo”, "natural de um território”. Já autoctonia, lexema que também deriva daí, significa a qualidade do que é autóctone. Mas depois produzem-se conotações reveladoras de mudanças semânticas.

Os fenómenos registados em África e que configuram a manipulação política das identidades colectivas e étnicas têm merecido um destaque indevido nas primeiras páginas dos jornais e telejornais, bem como de revistas especializadas, como se fossem verdadeiramente originários e exclusivos de África. Para agravar essa prática de banalização do mal, tal mediatização não emana sequer de qualquer conhecimento sólido ou perspectiva estrutural dos referidos fenómenos. Os casos de violência política ocorridos durante a década de 90 do século passado, em alguns países africanos, tais como Camarões, Congo Democrático, Côte d’Ivoire (Costa do Marfim) e Rwanda, têm sido referidos como manifestações do modo como a autoctonia pode ser perigosa para a manutenção do Estado moderno de tipo ocidental. A natureza do problema conceptual coloca-se quando interpretamos as propostas analíticas do fenómeno, por parte de dois especialistas europeus, nomeadamente,  o belga Bambi Ceuppens e o holandês Peter Geschiere. Nos seus estudos dos "discursos de autoctonia”, eles partem de dois pressupostos: a identidade e a diferença entre a Europa e a África.

O primeiro, aponta para uma identidade retórica política, na medida em que os seus sujeitos são os políticos e os eleitores, actores presentes nos sistemas políticos dos dois continentes. O segundo, reside na diferença de articulação dos "discursos de  autoctonia europeus”. 1) Ao contrário do que acontece em África, na Europa, não se estabelece qualquer conexão entre os "discursos de  autoctonia” e o declínio da qualidade de cidadão nacional, sendo a redefinição de cidadnia uma consequência da luta por benefícios do estado de bem-estar. 2) Na Europa, a "autoctonia” não exprime o medo da competição que se revela perante alóctones, consistindo apenas em exigência de uma maior democracia representativa e participativa, enquanto expressão da crise do Estado moderno.

O estudos das manifestações em que se analisa a vertiginosa ascensão do populismo na Europa com as suas erupções separatistas e regionalistas permitem chegar a outras conclusões. São os casos, por exemplo, da Áustria, Bélgica, Espanha, Itália e Países Baixos. Na Bélgica existe o problema holandês de Flandres e francófono da Valônia; em Espanha, a Catalunha; em Itália, a afirmação política da Liga do Norte.

O populismo cujo  berço se situa nos Estados Unidos da América do século XIX tem hoje uma das suas matrizes nas famílias políticas que se desenvolveram na Europa, definindo-se como ideologia que polariza a oposição entre o povo e as elites, fazendo uma advocacia da  política fundada na vontade do povo. Tem a sua principal âncora na bipolarização moral entre o povo e as elites. O povo julgado pela sua bondade e as elites caracterizadas pela maldade da sua natureza corrupta. A este propósito, o comportamento errante do último Presidente dos  Estados Unidos da América, Donald Trump, representa uma ilustração perfeita do modo como funcionam as dinâmicas ideológicas do populismo.

No entanto, é na América do Sul e Europa que o movimento populista cresce verdadeiramente. Nas décadas de 40 e 50 do século XX, para a América do Sul são exemplos: Juan Domingo Perón na Argentina e Getúlio Vargas no Brasil. Já na década de 90, regista-se a chegada ao poder de políticos como Collor de Mello no Brasil, Alberto Fujimori no Peru e Carlos Menem na Argentina. A  partir dos anos 2000, emerge um populismo de esquerda representado por políticos como Rafael Correa (Equador), Evo Morales (Bolívia) e Hugo Chávez (Venezuela). No caso da Europa, destacam-se nos espaços políticos nacionais e no parlamento europeu, desde o início da década de 1990, a presença da família política liderada pelo populismo radical de direita, representado pela Frente Nacional em França, a que se segue, o Partido da Liberdade Austríaco, na Alemanha o Partido Esquerda (die Linke) e, nos Países Baixos, o Partido Socialista Holandês.

Movimentos populistas
Do ponto de vista analítico, os movimentos populistas politicamente estruturados são caracterizados de acordo com o traço distintivo da hostilidade movida contra as elites, a presença de estrangeiros na economia, o liberalismo político e a representação política liberal. Ao nível da cultura, a arte é reduzida a um paroquialismo romântico, contra a sua elitização, menosprezando a visão meritocrática em defesa de uma cultura popular cujo critério de avaliação estética é a origem social dos seus criadores. O sentimento de pertença dos cidadãos imigrantes e das chamadas comunidades étnicas minoritárias é definido com base em critérios étnicos. Já a moralidade é o critério para excluir as elites culturais, económicas e políticas. Portanto, a autoctonia e o populismo, isto é, o conceito operatório e a ideologia  atraem actualmente a atenção dos investigadores à escala global no espaço académico. No que diz respeito à sua historiografia, há unanimidade quanto ao período em que se regista o mais importante impulso nos estudos académicos do populismo, enquanto fenómeno político. A década de 90 do século passado é o marco.

 No continente africano, essa fortuna académica anda associada a manifestações de fenómenos qualificados como a autoctonia, tal como foi referido. Em Angola, curiosamente, há algumas semanas o debate político agitou-se e ainda vai sendo agitado pela controvérsia respeitante à nacionalidade do líder do maior partido da oposição, a UNITA, nos termos definidos nos artigos 7º e 109º  da Constituição da República. O debate suscitou exaltados estados de ânimo, tendo sido evidenciada forte negligência relativamente aos efeitos deletérios que podem daí resultar. Estou a referir-me às cautelas que devem presidir o uso das palavras no processo de produção de discursos argumentativos de natureza política.

Pode ser ilustrativo recordar o que se passou na Cotê d’Ivoire entre os anos 90 e 2000, quando a manipulação do conceito de "ivoirité” foi a causa de uma violência política incendiária. A manipulação verificou-se na atribuição de uma semântica ambígua ao referido conceito, significando, simultaneamente, um projecto cultural de síntese harmoniosa entre as tradições das comunidades étnicas e uma ideologia de exclusão. Na disputa política eleitoralista, prevaleceu o sentido de exclusão dos cidadãos alóctones. O que causou graves tensões sociais com impacto na próspera economia daquele país da África Ocidental.

Pode-se perfeitamente concluir que a associação da autoctonia ao populismo não parece ocorrer em África, tal como acontece na Europa. Isto porque os movimentos populistas que vão surgindo não têm base ideológica, embora suportados por segmentos de militantes de organizações políticas partidárias. São movimentos efémeros no sentido de corresponderem a comportamentos colectivos e paixões que mobilizam o dispositivo de exclusão, quando soa o alarme da ameaça, baseada na polarização que opõe concidadãos em nome de uma tensão que se instaura entre "nós” e "eles” ou "outros”, visando um aniquilamento fratricida.

 * Ensaísta e professor universitário

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