Opinião

Uma herança de escuridão

Caetano Júnior

Jornalista

A posse de Joe Biden, há pouco mais de uma semana, sela a alternância na Presidência dos Estados Unidos da América. Os Democratas rendem os Republicanos, quatro anos depois de estes terem estado à frente da Nação avaliada como a representativa da maior democracia do mundo.

31/01/2021  Última atualização 09H37
Um saudável exercício de revezamento cuja gestão não terá, entretanto, corrido tão bem nos tempos mais recentes, concretamente ao longo do período durante o qual Donald Trump liderou o País.

Se Joe Biden é, agora, a espécie de mastro que permite à bandeira dos Estados Unidos da América desfraldar ao vento, anunciando o retorno do País à normalidade, política e social, principalmente, Trump é a má lembrança que ainda se sente. O espectro do Republicano continua a pairar sobre o ambiente, trazendo à memória universal que o propósito de "tornar a América grande de novo” falhou; quase levou a Nação ao colapso. O lema que sustentou a campanha e a gestão de Trump parece ter sido praticado de forma inquinada, na contramão do equilíbrio, da razoabilidade e até da decência. É, no fundo, o preço a pagar, quando o conceito de liberdade e a percepção que, muitas vezes, se tem de democracia se sobrepõem a tudo o resto, inclusive à consciência, enquanto reguladora das acções, gestos e atitudes que damos vazão.

No rescaldo da vigência de Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos da América, fica-nos a imagem de uma figura que parece ter, no começo, tentado brincar aos presidentes, mas acabou por ganhar a simpatia de uma estirpe danosa de eleitores. Estes comungavam dos mesmos preconceitos que destilava quem acreditava ter a fórmula capaz de "tornar a América grande de novo”. Como se a vasta e miscigenada Terra, construída com o sangue de povos oriundos de diferentes latitudes - angolanos inclusive -, num conjunto de milhões que se proclamam multi-raciais, pudesse, alguma vez, ser pequena. Trump acabou bafejado pelo fortuito; por pessoas pouco esclarecidas sobre a diversidade que hoje compõe o tecido social dos EUA, sobre a História do próprio país e sobre o percurso que deve orientar um político cuja ambição é servir na Casa Branca.

A América nunca deixou de ser "grande”. A verdade é que os quatro anos de Trump macularam-lhe o percurso; fizeram-lhe tanto mal, que os cacos do estilhaçamento que estava em curso vão continuar a ser recolhidos ao longo do reinado de Biden. Este chega para, entretanto, dar início ao processo de restauração de um País abalado na sua complexa estrutura. O novo Presidente vem consciente do delicado labor que o espera, para, com pensos quentes, tratar feridas, retirar manchas ou apagar hematomas, marcas de refregas, sem causa, nem razão, nas quais se envolveu o antecessor. Uma maratona diplomática pelo Mundo e um trabalho de reunificação do País, transformado em retalhos pela acção preconceituosa de Trump, aguardam, pois, por Biden.

No rescaldo da Presidência de Trump, fica-nos ainda o sabor acre da decepção, não apenas com o anterior inquilino da Casa Branca, como também com a América, no conjunto; com a Nação que se vangloria da imagem que tem de "realizadora de sonhos”. Os Estados Unidos são, para o Mundo, a democracia, o auge das liberdades, como, aliás, o apregoam instituições qua fazem o país e o repetem políticos, activistas sociais, profissionais liberais e até guiões, em obras de ficção produzidas em Hollywood. Talvez por pretenderem mostrar demasiada abertura, por acreditarem não haver contextos que travem o desejo de alguém se expressar, eventos como a invasão do Capitólio sejam idealizados, ganhem corpo e se consumam, assim como encontrem terreno fértil para proliferar os exemplos de intolerância, preconceito e abuso de poder dados a ver por Donald Trump.

Por exemplo, a acção do agora ex-Presidente e dos seus seguidores, na quarta-feira, 6 de Janeiro, no Capitólio, devolve à discussão os limites a observar para determinados comportamentos. Não se trata de coarctar liberdades, mas de serem estabelecidas normas. A razoabilidade das nossas acções, gestos e atitudes depende de nós; é uma questão de consciência. Não precisamos que a Lei ou estruturas do poder nos apontem a linha que não devemos transpor; sabemo-lo ao longo da aprendizagem que a vida oferece, em sociedade. As Leis, normas, regulamentos e outros elementos inibidores estão aí, exactamente, para nos dar conta dos nossos limites, quando nós próprios não o fazemos. Temos noção do proibido, do excessivo, do indecente, do ofensivo, do imoral, sem que sejam necessários alertas ou normativos escritos em gabinetes para no-los lembrar. E sempre que cometemos transgressões, as consequências chegam à medida da gravidade da nossa imprudência. Se não é a nossa própria consciência a chamar-nos à razão, que nos imponham limites os marcos da Lei.

Portanto, os excessos no exercício das liberdades sustentam atitudes como a que, a de 6 de Janeiro, banalizou o Capitólio, baluarte na Democracia dos Estados Unidos, e outras, como as que ao longo dos últimos quatro anos celebrizaram negativamente Donald Trump. O Republicano encarou os desafios da Presidência como se de um entretenimento se tratasse; de um "big-brother”, no qual a vitória final dependesse da profundidade dos maus-tratos infligidos aos adversários, aos críticos, às minorias étnicas, aos imigrantes, às mulheres, enfim, à população. 

"Os americanos não quererão voltar à escuridão com Trump”, disse-o alguém de muito bom senso, no que deve ser a ideia a partilhar. Sobretudo na Nação tida como o centro da democracia, que é, afinal, a luz que abre o caminho para o porvir, diferente de anarquia, de subversão, de violência criminosa, enfim, de outros males sociais que se confundem com o exercício das liberdades.

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