Opinião

Vida caótica

Carlos Calongo

Jornalista

A expressão era como que uma marca registada do senhor Kizuua, natural de uma recôndita aldeia do interior da província do Kwanza Norte - era essa a grafia correcta, com K-, antes da discutível troca do “Kapa” pelo “Cê”.

11/02/2024  Última atualização 08H49

Funcionário do Comissariado, que hoje equivale à Administração, senhor Kizuua era conhecido pelo seu nível de conhecimento superior ao de muitos conterrâneos e contemporâneos, que a ele recorriam sempre que tivessem necessidade de ver esclarecida alguma dúvida, com incidência no significado de certas expressões da língua veicular, de que tinha conhecimentos avantajados.

Naquele tempo, depois de vencida a parte matinal das tarefas laborais, os funcionários regressavam à casa para o almoço, com o compromisso de retornar ao serviço, imperativo cumprido sem as kanvuanzas que as pessoas adoptaram depois de conhecerem o multipartidarismo, que o falecido senhor Correia confundiu como sendo um partido político, por altura das eleições de 1992.

Em boa verdade não existia kazukuta. O sentimento era de "disciplina, disciplina, disciplina”, casado com a mensagem de "Produção, produção, produção”. Ai de quem ousasse não cumprir estes princípios, típicos de uma sociedade marxista leninista!.. Tinha que se entender com os camaradas militares da Organização de Defesa Popular (ODP) e ou da Brigada Popular de Vigilância (BPV), que eram verdadeiras zeladoras da ordem e disciplina sociais.

Que o diga o kota Oliveira, que apanhou umas tantas catanadas, por ter sido encontrado a pegar no braço da Lulú, pouco depois das 00h00.

Aqueles kotas da ODP possuiam técnicas de "catanarem”, sem ferir o prevaricador, contou o kota, depois da sessão de repreensão.

Existirá, por esta Angola fora, alguns bons socialistas com saudades daqueles tempos marcados por bichas nas lojas de abastecimento, talhos, peixarias, até mesmo nas condutas de água.

"Este vosso tempo da democracia não tem nada a haver com o meu tempo”, diria o velho Kizua, caso a natureza não tivesse ainda cumprido a sua última missão, materializada na partida para outra dimensão da vida, da qual ninguém escapará, independentemente da condição social. E se assim é, porquê tanta banga fukula!.. O ser humano é mesmo esquisito. Hoje por hoje diriam: é bungle bang.

No seu estilo característico de lançar sempre umas expressões que deixavam boquiabertos os filhos menores, Rita e Tino, que quase sempre faziam companhia à hora do almoço, claro, com a intenção de "apelar” os restos mortais da refeição do velho, certo dia, depois d’um almoço que terá caído muito bem no estômago, alegrando os parasitas que lá habitam e, sentindo que depois disso deveria regressar ao serviço, o velho teve a seguinte saída:

- Ohhh, que vida caótica!...

Os meninos trocaram os olhares, mas com tímido silêncio encerrado num misto de sentimento entre o medo de rir e a curiosidade em saber o significado de vida caótica.

- Bom, filhos, o pai vai regressar ao trabalho, que dignifica o homem...Bem queria ficar refastelado, depois de uma boa fubada...Ai que vida caótica, repetiu o velho Kizuua, na maior das despreocupações em relação ao hábito dos petizes de gravarem as suas dikas.

O velho ajeitou o pelito à Manguxi e, ao mesmo tempo, o safari em tom escuro. Os sapatos, como sempre, bem apresentados. Velho Kizuua reparou-se no espelho da estante que morava na sala, como moda daquele tempo. Conclui que estava tudo em dia.E lá foi cumprir a segunda parte do dia laboral.

Rita e Tino, filhos cassulas, para além de beneficiarem dos restos mortais do almoço do pai, tinham o privilégio de serem despedidos com uma oferenda. Chocolate ou rebuçado mentol.

-Fiquem bem, vou regressar ao serviço. É essa a vida que tenho. Vida Caótica-, disse o velho.

Alegres, na sua infantilidade mental, os meninos maravilharam-se com a expressão do velho.

A primeira manifestação residia na beleza auditiva do termo "caótica" que, para eles, significava outra coisa, que não a que vieram a saber algum tempo depois.

"O que será vida caótica?”- Os meninos cresceram neste ambiente de dúvida e, de quando em quando, entre pares, também soltavam o termo:"vida caótica”.

Claro que os amigos, igualmente imberbes, ficaram tontos com a expressão, invejando a capacidade dos filhos do vizinho Kizuua. A ignorância é atrevida.

Aliás, na altura, os poucos diccionários existentes eram propriedade exclusivas dos pais e, mandava a educação e o respeito, que fossem mexidos apenas com autorização expressa, o que não ocorria com frequência, até porque, na idade deles, era quase que um exercício impossível, recorrer ao mestre mudo, para saber o que não sabiam.

Tudo mudou quando, já crescidos, compreenderam o verdadeiro significado do termo "vida caótica”.Já o velho Kizuua era inquilino da "Casa Branca”, que a todos nós espera.

Até aos dias correntes, Rita e Tina, sempre que se recordam da expressão do velho e a errada interpretação que faziam, de "vida caótica” ser sinónimo de vida boa, perdem-se aos sorrisos, ao ponto dos rostos serem visitados por lágrimas de alegria e saudades do velho.

Já na condição de pai e mãe, os filhos do velho Kizua trabalham com toda a dedicação e empenho para não permitir que os seus rebentos tenham uma vida caótica, que afinal não é nada boa coisa, como pensavam.

E no dia a dia, Rita, muito atenta aos discursos e outras acções dos políticos da banda, manifesta-se indignada com aqueles que, apesar de todo o esforço, insistem nas más práticas de governantes que levam muitos compatriotas à condição de terem uma vida caótica.

-Isso tem que ser corrigido-, vocifera ela, dia sim, dia também, ao ouvir os noticiários.

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