Entrevista

“As diferenças em África existem e são uma riqueza do seu mosaico cultural mas estão a ser manipuladas”

Gaspar Micolo

O antropólogo e investigador brasileiro de origem congolesa Kabengele Munanga, que anima uma conferência hoje em Luanda, sob o lema “Origens africanas do Brasil contemporâneo: histórias, línguas, culturas e civilizações”, defende em entrevista que as civilizações africanas tiveram que ser “tribalizadas”, reduzindo o papel dos reinos africanos, para a viabilização da colonização.

19/05/2023  Última atualização 06H20
Antropólogo e investigador brasileiro de origem congolesa Kabengele Munanga © Fotografia por: Alberto Pedro | Edições Novembro

É a primeira vez que vem a Angola?

É a segunda vez. Estive aqui pela primeira vez em 1989, a convite do então ministro da Cultura, Boaventura Cardoso. Conheceu-me no Brasil e convidou-me num encontro sobre o Reino Teke, realizado pelo Ministério da Cultura em parceria com o Centro Internacional das Civilizações Bantu (CICIBA). Foi ainda numa altura do conflito armado. Cheguei a ficar uma semana naquela altura.

E como vê essa Angola que reencontra?

Ora, naquela época, havia pouco movimento de pessoas. Havia toque de recolher. Agora, vejo uma cidade agitada. Cheguei na terça-feira e, logo no primeiro dia, vi infra-estruturas completamente diferentes, muitos prédios modernos. Muita coisa nova que não havia naquela época. Bem, é importante compreender que, em 1989, Angola estava a sair do processo de Independência.

Mas desde essa data mantinha contactos com académicos angolanos?

Como disse, naquela época, só conhecia mesmo Boaventura Cardoso, que me convidou. Mas com o passar dos anos, fui conhecendo muitos angolanos que estudaram comigo. Cheguei a conhecer um jovem que fez Antropologia na Universidade Oficial da RDC, onde fui o primeiro a se licenciar, e era director do Museu do Dundo. Vatomene Kukanda também estava ligado ao CICIBA. Convidou-me quando era presidente. Depois fui conhecendo mais angolanos que se formaram no Brasil, como Dinis Kebanguilako, cujo doutoramento acompanhei na Universidade Federal da Bahia.

Como é que a diáspora, de um modo geral, vê o continente?

África como continente não é muito bem conhecido na diáspora, da mesma maneira que nós não conhecemos a diáspora negra no mundo e os seus problemas. Como os países da América, dita Latina, também foram colonizados, e estão no processo de consolidação das suas identidades nacionais, então eles não o podem fazer deixando a África de lado. O continente africano deu uma grande contribuição na formação destes países. Então, por essa necessidade, a imagem de África começa a mudar. É que na época em que cheguei ao Brasil, e estou a viver lá há 47 anos, algumas pessoas pensavam que África era um país, ou era uma floresta como a imagem passada no filme Tarzan. Algumas pessoas até me perguntavam quantos leões ou leopardos eu já tinha caçado. Eu ria e dizia que não era caçador. Outros perguntavam se já tinha visto carro. Ora, poucos faziam ideia que os colonizadores já tinham carros. Então, essa imagem está a mudar. Aliás, no Brasil, por exemplo, tem até uma Lei Federal que obriga o ensino da História de África no ensino fundamental.

Essa lei foi resultado de muita luta…

Claro, Não caiu do céu. Foi resultado de muita luta dos povos negros da diáspora. Então, como pode entender, a imagem está a mudar. Mas não é ainda o desejável, ou seja, o que gostaríamos.

Reparei que no âmbito dessa lei há até muitos estudos sobre escritores angolanos nas universidades brasileiras.

Exactamente. O Brasil criou a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, onde muitos africanos de Países Africanos de Língua Portuguesa fazem formação. Aliás, há cada vez mais africanos a fazerem mestrados e doutoramentos nas universidades brasileiras de um modo geral. Hoje já vemos muitos antropólogos e historiadores brasileiros a centrarem os seus estudos nos problemas africanos. Mas na época, nem a História de África se ensinava nas universidades brasileiras. Agora é uma obrigação. Eu fui o primeiro negro na Universidade de São Paulo, que é a maior universidade pública do país, graças a essas relações de cooperação que o Brasil abriu com os países africanos. Mas nos últimos quatro anos, podemos dizer que houve um retrocesso muito grande devido ao anterior governo de extrema-direita. Agora com o regresso do Presidente Lula da Silva as relações estão a ser retomadas.

Como é que surge o convite para fazer doutoramento no Brasil e aí se fixar?

É tudo um processo. Como fui o primeiro antropólogo a ser formado na Universidade Oficial da RDC, entrei directamente como professor assistente. Depois fui para a Bélgica para começar o doutoramento, mas devido à ditadura de Mobutu Sese Seko cortaram a bolsa. Tudo porque tinha parentes na oposição, alguns até morreram na prisão. Foi aí que Fernando Mourão, um brasileiro com boas relações, soube da minha situação e conseguiu uma bolsa do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores do Brasil) em convénio com a Universidade de São Paulo. É assim que em 1975 chego ao Brasil para fazer o doutoramento. E quando terminei, não consegui fixar-me no Congo devido à ditadura. Sou então convidado a dar aulas na universidade brasileira, onde fui professor catedrático até aposentar-me.

Diz sempre que isso foi uma marca para si: chegar a ser o primeiro negro a formar-se em Antropologia na USP. Quando é que começa a dar conta da necessidade de activismo em prol do negro no Brasil?

Isso também foi um longo processo. Eu não fui ao Brasil para estudar o Brasil. Eu fui lá para terminar o meu doutoramento. Mas quando dei conta que não conseguiria fazer pesquisa de campo no meu país, fui notando que o negro no Brasil enfrentava muitos problemas, e que me podia incluir neste campo de pesquisa. Foi assim que comecei a pesquisar a questão da população negra no Brasil, explicando também o que era África para os brasileiros. Acabei por me tornar num especialista sobre o racismo no Brasil. Recebi vários prémios, incluindo uma Comenda de Mérito da Presidência da República, dada por Fernando Henriques Cardoso, pelo meu estudo sobre a cultura negra no Brasil. Recebi também prémio da Universidade de São Paulo pela minha contribuição na luta pela inclusão da população negra na sociedade brasileira. Recebi ainda o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Aliás, deram-me até título de cidadania baiana.

E depois de toda essa luta, e o devido reconhecimento, costuma lembrar que a luta contra o racismo continua um desafio?

A população negra hoje representa 67% da população brasileira. Mas onde é que estão estes negros? Estão na periferia, são analfabetos, estão ligados à violência, estão nas prisões, etc. Graças à política de quota, hoje já vemos mais negros a circularem nos corredores de algumas universidades. Mas antes não havia isso. Isso significa que houve a abolição da escravatura, mas a inclusão na sociedade ainda está longe de acontecer. E isso tem a ver com o modelo de racismo que o Brasil desenvolveu, ancorado no mito da democracia racial brasileira: "nós não somos racistas, mas racistas são os outros, os americanos, os brancos da África do Sul”, etc. Esse mito acabou por matar a consciência do branco, até do negro, da realidade. Mas felizmente o negro vai ganhando consciência que é sub-representado em muitos sectores da vida nacional. Você vê, por exemplo, as relações entre Angola e Brasil são boas, mas os empresários que vêm cá são todos brancos. É difícil você ver um empresário negro numa comitiva ministerial.

As desigualdades são gritantes…

Claro. No Estado da Bahia cerca de 80% da população é negra, mas onde estão? Se for à Assembleia do Estado da Bahia a maioria é branca. O mesmo acontece na câmara de vereadores, nas universidades, etc. Ou seja, o negro está à margem da sociedade. O Governo Lula criou o Ministério de Promoção da Igualdade Racial, os outros governos destruíram. Mas voltou agora. E tivemos quatro ministros negros com o Governo Lula.

Ou seja, o negro que contribuiu tanto para a formação do Brasil não beneficia da sua economia.

Os africanos contribuíram muito para a economia brasileira na época da colonização. Eram mão-de-obra e produziam a riqueza, trabalhando nas plantações de cana-de-açúcar, de algodão, na mineração, etc. Então nós contribuímos na construção da economia do país, com sangue e suor. Além disso, contribuímos também na construção da cultura brasileira, refiro-me à cultura plural. Os africanos trouxeram muitos aportes culturais em todas as áreas, nomeadamente, medicina, mineração, arte, música, culinária, ritmo de vida, solidariedade, etc. É só estar na Bahia e você se sente que está em algum lugar de África.  Até o futebol brasileiro teve uma grande contribuição dos africanos. É só ver a "ginga”, o jeito de jogar. Então, a cultura brasileira reconhece tudo isso. Mas onde é que está o homem e a mulher que deram essa contribuição? Praticamente marginalizados.

As memórias de uma vida inteira e o regresso à aldeia natal


Como podemos conciliar a nossa ancestralidade com a herança colonial?

Os países africanos são resultados da colonização, ou seja, somos invenções coloniais. Quando o europeu chegou encontrou um mosaico cultural. Não eram tribos. Os estados africanos estavam num estágio de evolução avançado. Eram civilizações, ou seja, culturas complexas. Mas por causa da colonização, tiveram que "tribalizar”, reduzindo o papel dos reinos africanos. Aliás, trouxeram conflitos. Ora, as diferenças em África existem, e são uma riqueza do seu mosaico cultural, mas essa riqueza está sendo manipulada na luta pelo controlo do poder entre os povos africanos. Manipulam as diferenças para controlar o poder. Lembro a frase de Samora Machel que dizia "matar a tribo para construir a nação”. Ele não pretendia dizer que se pretendia acabar com a diversidade, apenas lembrava que era necessário controlar as nossas diferenças para construir uma nação. Aliás, não é possível voltar ao passado, aos reinos ou aos impérios. Recebemos essa herança colonial e temos que construir a nova sociedade com o que temos, superando as nossas diferenças, sem acabar com elas, pois são a nossa riqueza. A diversidade é importante!

Precisamos de manter essa diversidade…

Exactamente. Mas infelizmente está a ser manipulada por algumas lideranças africanas para controlar o poder. Quantas guerras já tivemos no continente africano? Mesmo aqui em Angola a guerra que vocês tiveram não era contra um outro país, era uma guerra interna. Tudo manipulado pelas diferenças com o objectivo de manter o poder. E isso continua no continente. Moçambique até agora enfrenta esse problema.A RDC enfrenta conflitos entre os grupos Teke e Haka. Mas tudo isso são manipulações das lideranças, que deveriam trabalhar para construir a unidade dessa herança colonial. Então, esse é um dos desafios que temos nos países africanos.

Depois de década de dedicação ao ensino e à investigação, como está a ser viver aposentado?

Depois da aposentadoria, eu fui convidado pela Universidade Recôncavo da Bahia para actuar como professor sénior, dando algumas disciplinas no programa de pós-graduação e contribuir na formação de mestres e doutores. Além disso, continuo a ser convidado para palestras, conferências, banca de professor catedrático, etc. Tenho estado mais em conferências, até porque já estou na idade de maturidade. É uma pretensão (risos). Na verdade estamos sempre a aprender com a juventude também.

Continua no fundo a trabalhar…

Trabalhando mais do que quando dava aulas regularmente (risos)!

Sei que está a preparar as suas memórias. Já está na fase final?

Já estou com quase 300 páginas das minhas memórias que estou a escrever. Eu não queria. Mas as pessoas que conhecem a minha história insistiram muito. Eu sempre disse que as minhas memórias interessariam mais aos meus netos, bisnetos, etc. Mas as pessoas disseram que as memórias podem interessar até ao próprio pessoal da academia. E por esse motivo estou a escrever.

E pára em quantas páginas?

Falta pouco. Não adianta escrever um livro de 500 páginas que ninguém vai querer ler. Só falta alguma revisão e acrescentar um ou outro item que não foi incluído. Falta pouco.

E por onde é que começa na cronologia da sua vida?

Estou começando pela infância. Eu fui colonizado. Nasci numa aldeia africana, quando ainda decorria a Segunda Guerra Mundial. Então preciso contar isso. Como fui educado, já que o ensino estava nas mãos dos missionários, até como cheguei à universidade. E conto inclusive como tive essa consciência de fazer uma antropologia mais engajada. Como fomos colonizados, eu estudei uma antropologia colonial, mas houve uma altura em que tive que ganhar consciência de que aquilo era uma alienação. A colonização foi uma coisa terrível para nós. Quem nasceu depois da independência não faz ideia disso. Nós achávamos mesmo que os brancos eram superiores, e que nós éramos inferiores. Eu lembro-me que já na faculdade, quem me formou em antropologia era um franciscano. Um dia ele olhou para mim e disse: o que vocês africanos precisam mesmo da Europa é a ciência e a tecnologia, Deus e religião vocês já têm. É um padre a dizer isso a um aluno de antropologia. Então é isso: você passa pelo processo de colonização, mas acontece também que há pessoas brancas que te dão luzes. E foi libertador!

Sobretudo para um estudante de antropologia…

Claro. É impossível imaginar uma sociedade sem religião, ou sem Deus. Era um absurdo pensar que nós éramos selvagens e que os europeus tiveram que trazer os seus Deuses já que não tínhamos nada. É claro que muitos entraram nestas religiões, e hoje há essa liberdade. Mas o pior foi destruir a religião do outro, como fazem os evangélicos no Brasil, a pretender destruir as religiões de matriz africana. Quando você luta por uma religião não quer dizer que você pratica, é apenas permitir que seja respeitada. É o meu caso, eu me considero um livre-pensador em relação às religiões. Por isso, quando me convidam nas religiões de matriz africana, vou com muito respeito. Vou até a um baptismo católico e respeito.

Mas ainda tem muitas memórias da sua infância?

Tenho algumas. Quando se escreve memórias, somos selectivos: há coisas mais importantes, e outras que não valem a pena. É também para que quando alguém da minha época ler, se lembre também da infância. Eu saí do colégio interno com calos no joelho de tanto rezar (risos). Ajudava o padre a fazer a missa.

E quando pretende publicar as suas memórias?

Acho que até o final do ano ou início do ano devo publicar as memórias. Olha, no livro pretendo incluir a relação das mais de 150 publicações, entre livros capítulos de livros e artigos científicos, que fiz ao longo de décadas de trabalho académico. Mas começo mesmo pela infância na aldeia, onde tomávamos banho no rio, fazer as necessidades na natureza.


"Voltei duas vezes ao Congo desde que saí em 1975”


Tem visitado essa aldeia?

Olha, voltei duas vezes ao Congo desde que saí em 1975. Visitei em 2001 quando acabou a ditadura para ver a família. Em 2011, voltei a visitar o Congo quando realizaram uma conferência sobre Simão Kimbangu. Mas não voltei mais. É muito duro ver aquela realidade. Vi que na minha aldeia não havia nenhuma mudança depois de tantos anos de independência. O posto médico que existia já está em ruínas. E a miséria que encontrei deixou-me bastante triste. As nossas famílias são numerosas por isso havia sempre a necessidade de levar dinheiro, fazer alguma dívida no banco para não ir de mãos vazias. Mas hoje com a minha idade, e com tanta miséria, não consigo voltar e ter as pessoas a olhar para mim é um sofrimento muito grande. O meu irmão mais velho faleceu no ano passado com 103 anos e vivia ainda nessa aldeia onde nasci. É a genética. É que mesmo sem consulta médica na aldeia, aguentou-se bem. Na minha família tem muita gente com longa vida. É difícil encontrar alguém que morre antes dos 90 anos. O meu irmão bateu o recorde na família ao chegar aos 103 anos. Ele nasceu em 1918.

Mais viajou para outros países africanos?

Sim, isso é curioso. Em África, viajei mais para outros países do que para o Congo. Fui muitas vezes a Moçambique porque formei muitos moçambicanos que fizeram doutoramento comigo, inclusive reitores de algumas universidades. Fui umas três vezes ao Benin, no âmbito do projecto a Rota dos Escravos. Fui três vezes ao Senegal quando o Vatomene era o presidente do CICIBA. Eu podia partir daqui, Luanda, e fazer turismo até Kinshasa. Mas não há ânimo. É muito sofrimento. Kinshasa é uma grande cidade, mas o sofrimento é visível. Não sei se melhorou, mas quando lá estive pela última vez, em 2011, o congolês tinha um salário mínimo de 25 dólares. E isso para quem trabalha. Mas para sustentar uma família é complicado.

Além do seu livro "Origens africanas do Brasil contemporâneo: histórias, línguas, culturas e civilizações”, quais são as obras fundamentais para perceber a sua contribuição académica?

Tem duas obras muito importantes. Aliás, no Brasil fizeram uma lista de 20 obras que são obrigatórias para entender a situação do negro no Brasil, entre as quais duas obras minhas. A primeira é "Negritude – usos e sentidos”, publicado em 1988. Publiquei esse livro porque percebi que os brasileiros falavam de negritude mas não sabiam o que era exactamente. Então tive que retomar o conceito desde o Quartier Latin, quando foi inventado pelos africanos e antilhanos em Paris. O segundo livro é "Rediscutindo a mestiçagem no Brasil - Identidade nacional versus identidade negra”, onde procurei mostrar que neste processo de construção da identidade os intelectuais da elite negra encontram um obstáculo: a ideia do branqueamento. Ou seja, uma ideia que os brancos difundem segundo a qual não somos mais negros, e sim mestiços. Com isso, promovem a ideia de que a identidade negra não tem sentido num país de mestiços, onde já não há brancos nem negros. Então esse livro mostra que o uso político da mestiçagem vem escamotear os problemas da sociedade e renegar o racismo aí presente. Inclusive quando tivemos debates sobre as quotas nas universidades, muitos diziam que não era necessário.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Entrevista