Opinião

Diversos, ou… Alínea Quê?

Apusindo Nhari

Jornalista

“Sonhar, no fim de contas, é uma forma de planear”. Gloria Steinem

25/04/2021  Última atualização 06H00
Tudo começou porque decidimos organizar uma viagem que culminaria no topo de uma montanha. Vista de longe a montanha era nítida, e o objectivo que queríamos atingir, também. Começámos por listar as tarefas que tínhamos pela frente, à medida que nos ocorriam. Bem emaranhada ficou a lista, com questões de logística misturadas às relacionadas com a preparação física, a recolha de conhecimento sobre o local, entre outras.

Até colocámos no fim uma tarefa que era "outras que venhamos a identificar no caminho”. Não era propriamente uma tarefa, mais uma atitude de abertura e pragmatismo para lidar com o que desse-e-viesse. Retirá-la não impediria a chegada ao destino, mas tornaria a lista mais pobre. Todas as tarefas, entrelaçadas, eram um guia para o objectivo: o topo da montanha. Quando metemos mãos à obra e a pé iniciámos a viagem, redescobrimos que um plano é apenas uma pequena parte do que necessitávamos para enfrentar a "complexa realidade”, que sempre teima em se manifestar.

O pessoal da região não sabia nada do nosso plano: tínhamos de falar com o soba e arranjar um guia segundo normas que desconhecíamos… Mais ainda, estávamos à mercê dos imprevistos do clima local e o percurso não era exactamente o que as fotos nos prometiam. Não que o nosso plano tenha sido inútil. Mas a realidade exigia capacidade de adaptação para que, sem perder de vista o cume que era o propósito da viagem, não nos perdêssemos pelos inevitáveis e sinuosos atalhos. Com um mau plano, só por sorte chegaríamos ao destino. Mas um bom plano, só por si, não era garantia de sucesso.

A última alínea do Artigo 21º da Constituição, a alínea quê (q), tem a surpreendente formulação que define como "tarefa fundamental do Estado”, para além das definidas nas 16 alíneas anteriores: "Outras previstas na Constituição e na lei”.
Não sendo juristas, dá-nos a ideia que com esta alínea se cria uma espécie de "laço”, onde qualquer tarefa que esteja prevista em alguma outra lei, possa passar a ter cobertura constitucional… Como se o legislador temesse que - não incluindo um "Outras” - a acção do nosso Estado poderia ficar "amarrada” por falta de cobertura constitucional.

A nosso ver, mais do que o medo de "deixar algo de fora”, por eventual esquecimento, o verdadeiro temor deveria estar em que se pudesse esquecer tarefas com o estatuto de”fundamentais”. É claro que se poderá pensar em outras, importantes para o Estado, como, por exemplo: "Promover a integridade e a moral entre todos e, especialmente, entre os que tiverem mais poder”; "Garantir que nenhum servidor público tome conhecimento da sua destituição, pela imprensa” ou mesmo "Promover uma imprensa pública, autónoma do poder político, ao serviço da verdade e da sociedade, funcionando com elevados padrões de qualidade”... ou, porque não?: "Promover o efectivo cumprimento das tarefas e compromissos constantes na Constituição”. Mas um amigo jurista assegurou-nos que nenhuma destas formulações poderia ser considerada "constitucional”, o que aceitamos com humildade.

Tal como o plano de viagem com que abrimos a crónica, o nosso Artigo 21º define - de forma igualmente sinuosa, convenhamos (dada a desarrumação das alíneas) - um alvo claro a atingir: um Estado inclusivo, igualitário, moderno, seguro para todos. Termos tais definições na lei é positivo, se ela for utilizada por todos, governantes - encarregados do seu cumprimento - e nós, cidadãos: um guia para a nossa caminhada comum.

É bom sabermos onde queremos chegar. E duvidamos que alguém possa afirmar que o nosso país não funciona melhor por nos termos esquecido de colocar algo na Constituição.
Ao longo de 16 crónicas explorámos as diversas alíneas do 21.º, e fomos avaliando a distância entre o sonho expresso na Constituição ("sonhar é, em si, planear!”) e a nossa realidade. Fomos até desenvolvendo a ideia de que o que está definido constitucionalmente parece ser largamente ignorado durante a acção. O que nos convida a fazer referência, a talho de foice, ao oportuníssimo título da recente crónica do Dr. Kasesa no Novo Jornal, adaptando-o à intenção deste nosso texto: "Porque (temos a Constituição) e para quê?”

As crónicas sobre as "tarefas fundamentais” a que o Estado está obrigado por força do Artigo 21º - que desde Dezembro 2020 fomos publicando no Jornal de Angola - nasceram de uma motivação que se nos impôs: escrever sobre "como contribuir para melhorarmos o nosso país”. Consultámos a Constituição e compreendemos que a resposta é... "basta cumpri-la”!

Como encurtar a distância entre o sonho que nos transmite a CRA e a cada vez mais inquietante realidade que vivemos como angolanos? Uma parte do caminho incluirá apelarmos a que todos nos apropriemos do documento e, mais importante, da visão que o texto contém. Agora em revisão (mais uma vez com o risco de nos ter apenas como espectadores), constitui uma possível bandeira das muitas lutas ainda por travar. Lutas criativas e construtivas.

Poderá ser a Constituição um dos elementos edificadores da unidade entre os cidadãos? Entre os vários partidos, trabalhando em prol de um renovado futuro, agora mais inclusivo, para levarmos do papel à realidade o muito de utopia que ela contém? . Os partidos poderão até continuar a lutar entre si, desde que não se esqueçam de defender a Lei Fundamental.

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