Cultura

Flutuações de um cultor da palavra

Não me cabe a descrição completa, aqui, porque é um exercício complexo. Entretanto, é na tentativa onde reside o resumo.

24/03/2024  Última atualização 08H55
© Fotografia por: DR
O dilema de estado de coma do homem, relativamente à transmutação da palavra, é nossa companhia de boa idade. Na verdade, o peso da palavra está no caldo sígnico, na estrutura semântica das partituras que a compõem.

Judas Iscariotes, a título de provocação, quando não teve mais saídas, encontrou no beijo o caminho mais fácil, tornando-se na primeira criatura que germinou a psicologia dos hipócritas. Talvez lhe tenha faltado sal/açúcar no cérebro?

Pela vida afora, um homem é uma falta constante de juízo, de preenchimentos adequados e de pronúncia assertiva de pedidos e apelos.

Para o cultor da palavra, não faltam perguntas sobre a sua próxima produção, entre a busca pelo pão e o desejo de escrever sobre as pedras a sua nova descoberta: reflexos de um olhar inovador.

Para a minha felicidade, que talvez seja algum cultor, tenho encontrado uma loucura em actos simples: uma conversa de pedras, uma vírgula de corpos friccionados, um desejo inimaginável, uma acentuação quase questionável, enfim, um encontro entre duas mentes aguçadas pela palavra, para produzir prosas de vários ângulos de observação e imaginação.

Descubro que, afinal, há textos que se escrevem por si mesmos, partículas que começam a sua construção antes de a minha pessoa tomar ciência da sua sequência, seja narrativa, seja descritiva.

Vivemos numa sociedade que se consubstancia à aventura permanente. Os títulos perdem fundo e forma. As fichas são molhadas pela vontade ferrenha de ser no vazio existencial, só para prestar cultos à aparência. Como nos teria dito um amigo: vivemos a era da crise de pensamento. E porque pensar custa imenso esforço.

Quando desperto, sob essa perspectiva, encontro ideias à porta do meu cérebro e, portanto, só me deixo levar conscientemente pela ocorrência: surge o texto, que é, no fundo, resultado de uma matemática permanente. Os textos são maneiras de valorizar a liberdade, porque as ideias, quando há muito adormecem em nós, são como criaturas condenadas a vários ângulos de prisão.

A escrita resulta de pensamentos. Assim, o cultor da palavra é feito de pensamentos de várias ordens. Não lhe cabe o culto ao amontoado de lamentações, sejam amorosas, sejam de outra natureza.

Os sentimentos são do plano de estados emocionais, ao passo que os pensamentos, enquanto razão de ser das coisas no mundo, resultam de exercícios apurados: existencialismo.

Assim, é filosofia de base: antes de submeter o verbo ao exercício transformador, há que se conhecer a morfologia dos sentidos. Salvem-se os que souberem "pinar” nestas lagoas cerebrais! 

Ou seja, um culto ao silogismo, às fintas e aos golpes que a vida nos atira no rosto, quando dormimos em demasia: se um homem perder seus "travões no pensamento”, pode descer de uma montanha de olhos vendados?

Há um curto tempo, o palco da escrita flutuante tem vindo a testemunhar partos de arrancar o pé. Haja quem esteja, sendo mais comedido, a desenhar apocalipses em voz baixa: "o importante é que cresce o número de publicações”, como se a quantidade fosse sinonímia absoluta de qualidade. Vulto aos lábios – euforia passageira é caldo de petizes –, porque encontramos algum mecanismo de trocar "um estar tão-somente uma pedra inerte” pela tarde de reflexão apurada.

Os que "driblam magicamente com o cérebro”, no fundo, são jogadores de sentidos, pedreiros de signos que se multiplicam pelo acúmulo de sabedoria, porque conjugam o afecto à palavra, a flexibilidade do mundo, a rapidez e os cartuchos de previsões, julgamentos sumários e decretos de posicionamento. Isso mesmo: pensar é um jogo para aqueles que são mais fortes de espírito.

Afinal, qual é o mar que atravessa a apetência pela terminologia do querer?

Os que estão no comando da palavra, de antemão, antepernas e antetudo, são chamados a dormirem pouco. Flutuam no vocabulário da vida. Por isso, a boa prosa pode vir do encontro silencioso entre a nossa individualidade e a natureza colectiva do homem.

Logo – e porque pessimista é, cá para os nossos cálculos, um optimista precavido, como me diz um amigo editor –, ando na luta entre o facto e o meu sonho: com tanta apetência pelo simples nomear, como distinguir o trigo do joio?

Ximbhulika*

*Professor e Escritor

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