Entrevista

“Há um certo património da oralidade que regula a minha escrita”

Ana Paula Tavares é hoje uma referência incontornável em todo o espaço da Língua Portuguesa, sendo autora de uma vasta obra literária em prosa, poesia e textos científicos. A professora universitária está a ser homenageada, em Portugal, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, cujo programa decorre desde quarta-feira até amanhã, no anfiteatro da instituição que acolhe a exposição homónima “Viva no tempo e no espanto: homenagem a Ana Paula Tavares”.

26/10/2023  Última atualização 09H10
Ana Paula Tavares, referência no espaço da Língua Portuguesa © Fotografia por: DR
A entrevista aqui retomada faz parte do leque de textos da última edição do Jornal Angolano de Artes e Letras "CULTURA”, da Edições Novembro. 

Quem é Ana Paula Tavares?

Meu nome é Ana Paula Tavares, sou uma angolana radicada em Lisboa há já algum tempo, mas continuo com os pés bem assentes na nossa terra. Já agora, aproveito para saudar o Jornal Cultura, que acompanho, porque os bons amigos me vão mandando e é uma forma de estar ligada ao que se passa na nossa terra.

A professora    cá está há um bom par de anos. E em termos académicos  tem uma formação diversificada, desde a História, Letras e Antropologia. Como é que consegue lidar com estas distintas áreas do saber?

Às vezes não é fácil, sobretudo quando uma pessoa se dedica activamente numa área do saber, sem mais tempo para se actualizar ou escrever o resultado de alguma reflexão sobre aquilo que se vai passando. Mas,  por várias circunstâncias, fui passando por  várias áreas disciplinares. E a vantagem é que isso abre alguns horizontes. No entanto, fiz a minha licenciatura em História, posteriormente fiz um mestrado em Literatura e, finalmente, o Doutoramento em Antropologia. Essas disciplinas e áreas de estudos obrigaram-me a repensar no país, na terra, nas pessoas e no conhecimento de maneira diferente. Muitas vezes, o facto de poder cruzar várias áreas do saber, dá maiores possibilidades para pensar e reflectir sobre as coisas. Para além de alargar em muito o marco teórico que me vai ajudar a formar, por vezes também me perco no meio de tantas áreas disciplinares. Como sabe, tem surgido muita coisa nova sobre o nosso continente, que é preciso saber e ler de forma crítica, e nem sempre tantas áreas disciplinares permitem  acompanhar tudo  que se vai fazendo nesses mesmos domínios, mas trabalhar de forma transdisciplinar  é um desafio, e procuro ser coerente com este mesmo desafio…

Em termos de marcos teóricos, onde se posiciona melhor, na História, Literatura ou Antropologia?

Neste momento e por razões profissionais, em função das aulas que ministrei ao longo desses anos aqui na Faculdade de Letras, fui obrigada a actualizar-me em diversos campos teóricos, que eram só os que eu tinha. Cada aula exige uma forma meticulosa, cada disciplina tem a sua própria área de investimento. Por questões de trabalho estive mais ligada por um lado à História do continente africano e à História de Angola, em particular. No entanto, queria dizer-lhe que a disciplina de História de Angola foi aberta nesta Faculdade por mim. Criei o programa com ajuda de um colega especialista em História de Angola e Literaturas. Dei e convoquei também, de certa maneira, os alunos a reflectirem sobre o programa que lhes foi proposto e ao mesmo tempo conhecer a nossa literatura, que é vasta e cheia de propostas. Portanto, estes dois campos de investigação  foram aqueles com os quais mais trabalhei nos últimos anos.

Enquanto pesquisadora das áreas das Literaturas, como é que estamos em termos literários?

Olha, há coisas que avançaram muito, há conhecimentos que avançaram muito, sobretudo quanto aos estudos pós-coloniais. O aumento de investimento e o pensamento crítico permitiram um alargamento das propostas de estudo. O número de autores estudados aumentou porque antigamente havia um número reduzido de autores que eram estudados. Hoje, há uma preocupação e interrogação teórica; a crítica também variou muito, quem escreve, para quem escreve, as vantagens e os limites de escrever em língua portuguesa, a problemática das línguas nacionais nos diferentes países, todas estas questões teóricas, práticas e de reflexão contribuíram para o alargamento do campo de estudo nos últimos tempos.

Este alargamento teórico, a que faz referência, resulta do surgimento das Faculdades de Letras no caso angolano, em particular?

Bem, no caso angolano penso que sim, no entanto, acompanho da maneira que posso, não consigo acompanhar tudo que se passa em Angola, mas reconheço que os colegas que trabalham nas Universidades angolanas fazem um grande esforço, porque embora tenhamos hoje ajuda da internet, o livro em Angola tornou-se num instrumento caro, de difícil acesso. Os alunos têm muitas vezes dificuldades em chegar aos autores,  aqueles que produzem a matéria sobre a qual eles vão reflectir. Mas tenho acompanhado este esforço que reconheço ser notável, da mesma maneira que também procuro acompanhar o ensino da História de Angola na nossa terra. Procuro igualmente informar-me sobre coisas que vão saindo sobre esta matéria, sobretudo artigos muito interessantes que são escritos, não só por especialistas angolanos, mas também em grande parte produzidos por especialistas brasileiros.

Na sua opinião, já temos uma crítica literária em Angola, comparável com a sua produção?

Não tenho conhecimento… Acho que falta uma crítica literária. Nós começámos muito bem, logo nos anos pós-independência, tivemos críticos literários de pena fina, muito exigentes, como por exemplo David Mestre, que escreveu a sua visão angolana sobre os novos escritores que começaram a escrever e a produzir naquela altura. Acho que os tempos actuais precisavam de mais crítica literária, uma crítica de malha fina, que permitisse que tudo que vai surgindo passasse por uma peneira entre a boa literatura, aquela que acabará por ficar e aquela que é efémera, que pode surgir de uma ou de outra maneira, mas que não vai sobreviver. No entanto, há algumas coisas boas que tenho lido ultimamente, não só de gente muito jovem que está a escrever poesia, como romance. Acabo de tomar conhecimento do trabalho do jovem Israel, que são novidades muito agradáveis e surpreendentes. A maneira que os jovens que fazem e propõem coisas ligadas a Slum poetry, ou seja, o verso dito, a performance, me tem surpreendido de forma muito agradável..

Ainda sentimos a falta de Eugénio Ferreira e Mário Pinto de Andrade, no que diz respeito à crítica literária?

É verdade, temos essa falta. Temos alguns, outros que fazem um bom trabalho. É verdade que precisávamos de mais gente a fazer crítica literária em Angola. Fora de Angola há uma grande produção, há gente que trabalha nos antigos e que, mesmo sem ter abandonado estes, continua atenta ao que se faz de novo e vai produzindo trabalho de crítica. Mas acho que em Angola precisamos de mais crítica literária, que esteja sobretudo escondida nos livros da especialidade, aquela crítica literária que o jornal pode levar rapidamente ao conhecimento de um maior número de pessoas. Enquanto que o livro é mais difícil, como lhe disse, os livros são caros em Angola, as bibliotecas não estão actualizadas. Por conseguinte, os jovens têm menos acesso à crítica literária. Mas acho que algumas pessoas, como José Luís Mendonça, continuam não só a fazer a sua própria produção, como a fazer crítica literária, e alguma de fina pena, de crivo apertado, o que me agrada.

Enquanto antropóloga, acha que o domínio dos códigos linguísticos facilita a crítica literária?

Eu tenho muitas limitações do ponto de vista de linguística e do conhecimento das nossas línguas nacionais, mas sinto que faz falta uma continuação do trabalho que o Instituto de Línguas Nacionais realizou e avançou muito, na possibilidade da codificação e normas de algumas línguas nacionais, porque este fenómeno me preocupa, não só enquanto antropóloga, mas sobretudo enquanto angolana. Inquieta-me e até mesmo preocupa-me a possibilidade de algumas das nossas línguas poderem desaparecer, sem que elas possam ser fixadas, gravadas e recuperadas para serem futuros arquivos e terem a possibilidade de futura consulta.

O Ministério da Cultura de Angola criou, há já alguns anos, uma equipa multidisciplinar para  História da Literatura angolana. A professora fez parte desta iniciativa. Porque é que o referido projecto se perdeu?

Olhe, eu não sei. A única coisa que lhe posso dizer é que havia uma equipa multidisciplinar muito grande e que a cada um dos membros da equipa foi distribuída uma tarefa. No meu caso, trabalhei com o meu colega  Cornélio Caley, e com a professora catedrática Laura Padilha, e ficamos com a "Geração Cultura e Mensagem”. O que nos cabia foi feito e entregue, o resto não posso dizer, porque eu não estava na parte da coordenação. Foram consultados todos os números do Cultura e Mensagem, foi feito um levantamento daqueles anos e foi feito um trabalho sobre o ensaio. Mas aquilo era para ser uma parte de um enorme livro que desse conta de toda a literatura angolana, isto é, em termos cronológicos.

Que elementos se podem subtrair da pesquisa que fizeram sobre a Geração da Mensagem?

Na altura deu-nos muito prazer fazer, porque foi preciso consultar jornais, revistas, enfim; mesmo que o nosso trabalho tenha desaparecido, há o trabalho posterior de Irene Guerra Marques e Carlos Ferreira, que é muito bom para os jovens, onde eles fac-similaram todos os números do Cultura e está disponível em livro. Era algo que só poderíamos ter acesso indo aos arquivos, à Torre do Tombo ou à Sociedade de Geografia de Lisboa. Felizmente agora os jovens se quiserem pegar, já não é preciso, pegam no livro e têm acesso a tudo. Portanto foi um trabalho notável feito por estes dois investigadores, a professora Irene  Guerra Marque e o poeta Carlos Ferreira.

Que avaliação faz da produção literária nos países africanos de língua portuguesa?

Felizmente há boas perspectivas nestes países, temos boas novidades da Guiné-Bissau, país do qual quase nunca se fala, mas tenho notícias de livros que me vão chegando às mãos da produção de escritores como  Abdulai Sila e outros escritores, o que me agrada. Cabo Verde continua a ser um caso excepcional, que muito me agrada porque a produção é contínua, vasta e diversificada. Felizmente eles têm algumas editoras em Cabo Verde; editam lá os seus livros. São Tomé terá talvez menos nomes, mas os que têm continuam a produzir. Acaba de sair um livro novo da grande escritora Conceição Lima. Angola e Moçambique são os que produzem grandes novidades.

Entre os países africanos de língua portuguesa numa perspectiva da produção literária, qual deles mais se destaca?

Bom!  Esta é uma pergunta difícil, mas por questões profissionais e sobretudo por causa das aulas, tenho pensado muito na situação de cada um dos países onde se escreve em língua portuguesa. É evidente que há situações de grande desigualdade, que muitas vezes não só tem a ver com imperativo da escrita - tenho a certeza que em cada um desses países há jovens que produzem, mas tem a ver também com todo circuito da publicação, da existência ou não de editoras e livrarias e sobretudo do preço do livro. Na minha opinião tem a ver muito mais com as instâncias de consagração, pois o resultado é pouco conhecido fora daquele circuito onde se fala, e se apresentam. Porque a publicação não se faz, as livrarias não existem, as editoras não existem e o livro se tornou objecto caro para cada um dos nossos países. É verdade que Angola e Moçambique se destacam pelo número de livros editados e produzidos em relação aos outros países, mas há um movimento editorial  muito curioso de novas vozes a surgir em Cabo Verde, para o qual é preciso estar atento, só que cada vez mais nos conhecemos pouco uns aos outros e sabemos pouco do que se passa em cada um dos nossso países.

Em termos de estilos literários, entre Angola e Moçambique, qual das categorias mais se despontam entre Angola e Moçambique?

Acho que as duas estão bem representadas. Em Moçambique, ultimamente tem vindo a ser produzido mais romances, não me estou a referir da qualidade, e Angola tem produzido mais poesia, embora também haja romancistas a fazer o seu trabalho e a publicar. Não quero excluir desta afirmação  todos os jovens que de certa maneira voltaram à poesia, à palavra falada e ao poder dessa palavra falada, estou a falar de todos movimentos da Slam poetry ou spoken word. Não tem um termo em português que seja elucidativo deste novo fenómeno que, em meu entender, tardou a chegar a Angola. Eu tinha conhecimento destes movimentos na África do Sul, na Nigéria  e eu perguntava-me porquê que este movimento não chegava a Angola. Agora acho que chegou e em força: há muitos jovens a usarem Slam poetry, a chamada poesia dita, que seria recuperada de uma tradição da oralidade e a servirem-se disso como meio de expressão. Por outro lado, sabemos muito pouco sobre movimentos que a modernidade permite, pois os jovens que não publicam em formato de livro, publicam na internet, começando pelos antigos blogues que hoje já são coisas de velhos, mas passando para outras instâncias, como whatsapp, facebook, instagram, todas estas plataformas que os jovens usam. Não temos ainda capacidade para avaliar o impacto que estes movimentos terão na poesia do futuro, o que eu considero é que a poesia está viva, tem propostas novas, há uma grande produção que está fora do nosso controlo de estudiosos, não sabemos bem como nos aproximar desta realidade que nos escapa quase completamente.

Estes nossos territórios de comunicação, que são as redes sociais, facilitam os jovens por este intermédio, dar azo à sua criatividade e colocar por via da internet as obras no mercado virtual?

Acho que sim, temos que estar preparados. Por muito que eu seja já da geração do livro, do livro impresso, gosto do livro em formato físico, que muito gosto do seu cheiro, por muito que seja desta geração, percebo igualmente que há um movimento cuja dimensão eu não consigo acompanhar. Os jovens servem-se desta grande possibilidade que têm nas mãos que são os telemóveis, que permite gravar e fazer circular de forma mais fechada ou mais aberta toda uma produção que ainda não consigo avaliar.

Qual é a força que tem a oralidade na criação literária?

Para mim é muita, é total, sendo eu da geração da escrita, eu aprendi a ler pequena, fiz a escola formal, fiz todo caminho da escolaridade voltada para escrita. Fui à procura desta mesma oralidade e de certa maneira submeto a minha escrita às instâncias da oralidade, isto é,  provérbios, os contos, etc. Há um certo património da oralidade que de certa maneira regula a minha escrita, não sou capaz de escrever um poema  sem ter em conta a memória de um lugar, a estratégia de sobrevivência de uma série de ensinamentos e de complexidades de um lugar. Sou fiel a este universo de oralidade. Agora, é evidente que só consigo expressar-me pela escrita, isto traz em si uma enorme contradição: eu aproprio-me desta mesma oralidade e submeto-a às regras da escrita, e de certeza que significa perda para este universo da oralidade, mas não consigo trabalhar de outra maneira.

"Algumas das nossas línguas estão ameaçadas sem que tenha havido tempo de as salvar”
Até que ponto é que são úteis a escrita em línguas nacionais, sobretudo nas comunidades onde a comunicação em língua portuguesa é limitada?

Eu tenho uma grande preocupação com a situação das línguas nacionais no nosso país. Penso que as línguas nacionais perderam terreno, foram se perdendo ao longo desses anos, porque uma língua que não se usa, é uma língua que está condenada a morrer, pelo menos algumas das nossas línguas estão ameaçadas sem que tenha havido tempo  de as  salvar. Salvar aquilo que se torna absolutamente necessário, para que mais cedo ou mais tarde pudesse haver chaves de compreensão dos universos que estas línguas escondem, que elas descodificam e decifram. Portanto , penso que já devia haver no nosso país programas escolares que contemplassem o ensino das línguas, a nível generalizado na escola elementar. O acesso das pessoas às línguas devia ser generalizado, deveriam existir programas em línguas nacionais para lá daqueles que existem e até sobreviveram, como aqueles que temos nos noticiários que existem em línguas nacionais. É necessário um maior investimento na divulgação dessas mesmas línguas, usar a rádio que ainda é escutada em todo sítio no nosso país, talvez mais do que a televisão. Usar como forma não só de divulgar, como também de chamar a atenção das pessoas para o património que estamos em vias de perder.

Falando em património, sabemos que fez o relançamento do livro Sangue de Buganvília, um retrato dos seus lugares de memória em Angola. São crónicas que foram escritas para rádio. Que significado teve para si este relançamento da obra?

É verdade, o livro tem um conjunto de crónicas que foram feitas para serem lidas. Inicialmente, foram feitas para serem lidas na rádio, houve uma primeira edição em Cabo verde, que se esgotou, e não havia cá, tive sempre muito receio de fazer a reedição. Achava que já havia cumprido a sua função num determinado momento e que não tinha sobrevivido à dimensão de futuro que separa da sua primeira vida desta nova vida que tem agora. Olhando bem, as crónicas  podem significar o pensamento e o esforço de trazer para o presente coisas que fazem parte da memória colectiva e eu falo de memória colectiva de um determinado lugar, uma vez que a nossa terra é feita de várias memórias colectivas. Falo em trazer para o presente essa mesma memória, assumo que é uma interpretação muito pessoal de todas estas memórias. É a minha memória das memórias  que me foram ditas e transmitidas num certo momento da minha vida.

Quanto à questão da tradução literária, até que ponto é que a tradução de uma obra pode retirar a suculência?

Bom, há até uma frase feita que diz que traduzir é trair. Nós também temos uma tradição da tradução, ou seja, muitos dos nossos escritores traduziram outros escritores, lembro de um livro que foi muito importante para uma geração dos anos 70 e 80. "A Laranja Mecânica”, a primeira tradução em língua portuguesa deste livro foi feita por Luandino Vieira. Um grande escritor angolano que traduz o livro da literatura do mundo, Ruy Duarte de Carvalho,  fez aquilo que ele chamou de versões. Ele debruçou-se sobre o património da oralidade de vários universos africanos e reformulou e de certa maneira poetizou-os, se me permite este neologismo, portanto, há uma tradição ou uma vontade, um movimento dentro de escritores angolanos que também tiveram experiências na tradução. O Lopito Feijó tem feito trabalho para dar a conhecer escritores que são nossos vizinhos, os da República Democrática do Congo, e da República  do Congo, são nossos vizinhos que nós não os conhecemos. Por outro lado, a tradução tem outras vertentes, que é dar a conhecer ao mundo traduzindo para outras línguas escritores angolanos que escrevem em língua portuguesa. Nós temos alguns autores muito traduzidos e outros que ainda não são traduzidos. Há muitas vezes a necessidade de se explicar o português angolano, porque não é só de agora, já tem uma certa tradição, é muito antiga, uma forma angolana de falar o português. É evidente que este universo da tradução é importante, que estes autores angolanos à espera de serem traduzidos e que poderiam ser traduzidos, pelo menos para serem conhecidos para lá das nossas fronteiras, mesmo que seja dentro do continente africano.

Agora que falou do português angolano, o professor Michel Laban dizia que quando dava as  aulas aos seus estudantes de literaturas africanas, dava  Luandino Vieira. Os estudantes, a princípio, recebiam isso com muito dificuldade. Depois de superarem, estavam preparados para perceber tudo…

É verdade, digamos que é o Luandino que inicia essa forma muito particular de escrever à maneira angolana, de ver o mundo à maneira angolana. Esta situação era há muito discutida pelos nossos mais antigos, por todos aqueles da geração da Cultura, da geração da Mensagem, do Vamos Descobrir Angola. Este último movimento foi todo ele montado em torno de criar uma literatura ou fazer uma literatura que dissesse Angola da maneira como  era Angola. No entanto, Luandino é um participante ou é um filho destes movimentos, ele é um iniciador desta maneira tão particular de contar estórias à maneira angolana, numa linguagem que de certa maneira subverte o português colonial, o dito português padrão, como se houvesse algum português padrão. Sou absolutamente contra esta ideia do português padrão, uma vez que a língua é de quem a usa, ela é de quem a usa e como a usa. A sobrevivência da língua  portuguesa no mundo vai dever-se muito mais àqueles que a usam à sua maneira, como a maneira brasileira, angolana, moçambicana e todas às outras maneiras que existem de falar português.

Até que ponto é que a crítica literária, feita de forma endógena, facilita a interpretação dos códigos linguísticos dos autores locais?

Claro que quem conhece a realidade tem mais facilidade em decodificar as afirmações, todo um conjunto de símbolos que o escritor usa. Quem não está dentro do contexto local não consegue decodificar. Mas gostava de chamar atenção que por vezes o universo da cidade de Luanda não é equivalente a Angola. Há muitas maneiras de dizer Angola, não é só a maneira Luandense de dizer Angola. Talvez esta seja a mais conhecida, mais activa e dinâmica, mas há muitas maneiras de dizer Angola, fora de Luanda.

Hoje, aqui na Faculdade de Letras, pelo menos à vista desarmada, há uma maior adesão de estudantes brasileiros, em detrimento dos portugueses, a que se deve?

Olha, não sei se é verdade  porque não tenho os números, mas é verdade que o Brasil, sobretudo a partir do primeiro governo do Lula, despertou para o continente africano, na medida em que foi obrigado por lei a ensinar História de África, literatura africana nas universidades. Antes disso, alguns especialistas brasileiros já se tinham dedicado ao estudo da diversidade das literaturas africanas escritas em português. Destaco nomes como da Laura Cavalcante Padilha, da Carmen Lúcia Tindó  Seco, Tânia Macedo, Rita Chaves, que há muitos anos se dedicaram e fizeram todo percurso académico estudando Angola ou Moçambique, Guiné e Cabo Verde, os seus estudos e investigação. Na Faculdade de Letras, não diria que há uma maioria assim evidente de estudantes brasileiros a procurar, pelo menos na licenciatura, os estudos africanos. É verdade que ao nível da pós-graduação há uma grande procura, por vezes a resposta não é tão eficaz, mas que há uma grande procura,  há.

Por via das literaturas, também se pode chegar aos estudos africanos?

Sim, porque o curso de estudos africanos é reestruturado de maneira a responder a várias dessas perguntas. Tem uma componente histórica grande, virada para o estudo da história do continente africano, mas tem uma vertente da literatura. A literatura e os estudos literários antecederam inclusive a criação dos estudos africanos, primeiro existiu uma cadeira de introdução às literaturas africanas, ainda no tempo do Emmanuel Ferreira, só depois se partiu para um alargamento dos estudos africanos nas diferentes áreas.

Hoje, os especialistas em literaturas fazem por concorrer com antropologia, na medida em que muitos especialistas acabam por ficar ligados aos estudos culturais?

Não, eu não aceitaria isso de forma pacífica, até porque julgo que os professores que existem, cujo trabalho conheço, têm o cuidado de alertar e criar a consciência crítica do que Hountondji nos propõe, o que é isso de estudar estudos africanos? Como estudar estudos africanos, há uma grande consciência crítica de que não se pode começar uma coisa e depois resvalar para o campo de etnografia ou  seja, todas as ciências são autónomas, umas mais do que as outras, embora no seu conjunto, podemos sempre beber umas das outras. É bom saber que estes campos se contaminem, se enriqueçam,  as boas intenções são essas, é esta consciência crítica para não cair nos mesmos erros do passado.

Cláudio Fortuna |

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