Entrevista

“Já deveríamos estar na fase mais de prevenção do que curativa”

Manuela Gomes

Jornalista

Comemora-se hoje, em toda a terra, o Dia Mundial de Combate ao VIH/Sida. Sob o lema “Deixem as comunidades liderarem”, a efeméride é observada numa altura em que, por mais de mais de 40 anos, numerosos países continuam engajados na prevenção e combate contra a doença.

01/12/2023  Última atualização 07H30
José Van-Dúnem, director geral-adjunto do INLS fala dos avanços no tratamento em todas unidades sanitárias © Fotografia por: Rafael Tati | Edições Novembro
Em entrevista ao Jornal de Angola, o director geral-adjunto do Instituto de Luta Contra o SIDA (INLS), José Van-Dúnem, disse que o Estado angolano, por meio do Ministério da Saúde, tudo tem feito para que a população tenha a "oportunidade” de viver livre do vírus do VIH e de doenças relacionadas. O responsável disse que grandes avanços já foram dados, mas que é necessário, ainda, incrementar o compromisso do Governo para o alcance dos objectivos traçados. 

Quarenta anos depois, o VIH-SIDA continua como um problema de Saúde Pública em Angola?

Infelizmente sim. Porque continua a ser um problema que assola toda a população, é um problema transversal. Ainda é preocupante porque penso que já deveríamos estar na fase mais de prevenção do que curativa. Infelizmente ainda estamos numa fase curativa. A prevenção não tem surtido os efeitos que esperávamos, sendo que, no âmbito daquilo que foi designado pela Organização das Nações Unidas (ONU SIDA), como sendo a Aliança Global de Prevenção, sentimos que estamos um bocado atrasados e isso vai prejudicar aos nossos objectivos para 2030, meta para erradicação da doença.

Que avanços temos registado no combate à doença?

Em termos de combate ao VIH/Sida, no nosso país, já evoluímos muito! Hoje, já conseguimos que, a cada dia que passa, mais pessoas aderem ao tratamento. Conseguimos detectar e testar maior número de pessoas daquilo que prevíamos. Temos, também, dado bons passos nos métodos de tratamento. Estamos a utilizar tratamentos que são tidos como mais eficazes, baratos e, com isso, mais facilmente iremos atingir maior número de indivíduos. Sabemos que o tratamento principal do VIH/SIDA que é o retroviral, hoje já estamos a usar dose única, o chamado três em um, em substituição da dose tripla combinada, os medicamentos Tenofovir (300mg), Lamivudina (300mg) e Efavirenz (600mg), isso facilita com que as pessoas aderem facilmente ao tratamento.

Que dizer da destribuição destes medicamentos? 

Temos hoje, também, uma maior distribuição e mais unidades de saúde que oferecem os serviços para o tratamento do VIH/Sida. Outro esforço importante é o esforço do próprio Estado em adquirir os medicamentos. Podemos destacar que, por exemplo, há dois, três anos o Estado tinha a obrigação de cobrir com 60 por cento de tudo que tem a ver com o tratamento, teste e reagentes. Houve um período que o Estado não conseguia fazer essa cobertura, mas felizmente, hoje, isso já não se vivência. São esses e outros ganhos já adquiridos no combate à doença. Por outro lado, temos agora a facilidade em adquirir os retrovirais por meio do Fundo das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a menos preços e com a facilidade de pagarmos em moeda nacional. Estamos a melhorar, mas ainda de forma lenta.

Qual é a situação epidemiológica, a nível nacional, relativa à chamada "doença do século"?

Continuamos com a prevalência de 2 por cento. Essa é a última prevalência que obtivemos a partir do Inquérito de Indicadores Múltiplos de Saúde (IIMS), realizado em 2016, pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Actualmente, está em curso um novo inquérito, que vai nos dizer se o país mantém, aumentou ou diminuiu essa taxa. Oxalá que tenhamos diminuído ou manter, pelo menos. O que realmente desejamos é uma prevalência mais baixa, mas hoje estamos em 2 por cento e com algumas zonas (provinciais) com determinadas taxas mais altas.

Diz-se que o país tem 310 mil pessoas a viverem com o VIH-SIDA, dos quais 35 mil crianças dos zero aos 14 anos.  Como se chega a essas estimativas?

Essas estimativas são obtidas de duas formas, que depois unidas chega-se a uma. Usamos um aplicativo que se chama spetro, lançado pela ONUSIDA para todos os países que tinham alguma dificuldade na obtenção de dados em relação à população seropositiva. A partir deste aplicativo, juntamente com os dados do nosso país (os números de todos os grupos, entre mulheres grávidas, jovens, crianças e outros), este software faz uma previsão nestes dados, mas tudo baseados nos dados que o país dá, eles não são aleatórios. Por outro lado, são feitos, também, alguns estudos. Vamos as estatísticas que temos todos os anos e juntamente com esses dados a ONU/Sida faz esse exercício conosco todos os anos e daí lançamos a previsão para o ano seguinte. Dessas 310 mil pessoas, apenas, 46 mil dessas são seguidas, ou seja, apenas essas pessoas estão em tratamento. Não quer dizer que o Instituto de Luta contra a Sida apenas controla esse número, não! Temos, também, aquelas que estão em dispensação em termos de tratamento.

Os números da seroprevalência do VIH-SIDA, os mais baixos da Região, explicam, também, a sexualidade dos angolanos? Como se explica a reduzida incidência?

A nossa taxa de seroprevalência não é a mais baixa da Região, sim uma das várias, em todo continente. Essa diminuída incidência, por um lado, deve-se ao número da população do nosso país, se comparado com outros países da Região. Exemplo, a vizinha República Democrática do Congo tem uma prevalência mais baixa do que a nossa, isso porque eles são mais que nós. A questão da prevalência dilui-se consoante o número de pessoas e eles são muito mais do que nós, mas isso não quer dizer que tenhamos mais pessoas seropositivas.

As questões ligadas aos anti-retrovirais, falta de preservativos, estigma e discriminação, continuam como desafios?

Estes são os maiores desafios que ainda enfrentamos. Por outro lado, a primeira descriminação, muitas vezes, começa logo dentro de casa, vem da própria família. Outra situação é quando o individuo é testado positivo ao vírus do HIV e se dirige a um centro de saúde para adquisição dos medicamentos. O facto de encontrar ou ver algum conhecido, automaticamente, fica com vergonha e abandona o tratamento. Outro motivo também é encontrar um técnico de saúde que não sabe tratar o paciente. Maltrata o paciente pelo simples facto deste ser seropositivo e muitas vezes não tem sigilo profissional, espalha a informação sobre a condição do doente. Tudo isso faz com que as pessoas se escondam, se recatam e abandonam o tratamento. Outro grande desafio também é irmos às comunidades, porque é lá onde vivem as pessoas. Precisamos "domesticar” a doença para o lado da comunidade, para que as pessoas se habituem e encarar a doença como outra enfermidade qualquer. Precisamos que as pessoas tenham mente aberta em relação ao assunto. Quanto aos recursos de combate: um é ter a certeza que não haja rotura dos retrovirais e dos preservativos que queremos distribuir o máximo possível, mas com isso podemos enfrentar algumas recusas. Falo, por exemplo, de algumas igrejas/religiões que proíbem o uso do preservativo e, automaticamente, perdemos a "batalha”. Por outro lado, há os indivíduos que, não obstante obterem os preservativos não os usam, depois temos estigma e descriminação que é um dos maiores problemas, porque ninguém quer ser taxado como seropositivo. Por outra, a população não esta educada. Isso, também, tem a ver, talvez, com a história de como a doença começou a ser disseminada.

Então pode-se assegurar que em termos de retrovirais o país esta bem?

Sim! Actualmente estamos bem servidos em termos de retrovirais para os nossos pacientes infectados. Quando, por alguma razão, ouve-se falar que há rotura de medicamentos, para atender aos pacientes com VIH, não é verdade, é apenas má gestão logística em algumas unidades.

Já podemos dizer que a sociedade angolana ultrapassou a questão do estigma e discriminação?

Ainda não, infelizmente. E por causa desses e outros motivos acima já mencionados, o Ministério da Saúde (MINSA) decidiu expandir os serviços de tratamento do VIH em todas as unidades sanitárias do país, para evitar que as pessoas ao serem vistas a entrar nos hospitais de referencia sejam logo taxadas como seropositivas. Por exemplo, o hospital "Esperança” deixou de existir, funciona apenas como  departamento de combate afecto ao INLS. Hoje cada uma das unidades possui áreas especificas onde são recebidas pessoas seropositivas para o tratamento, aquisição de retrovirais e fazer o acompanhamento.

Hoje, há maior confiança sobre a doença ou nada mudou substancialmente?

Está a progredir. Sabemos que há, experimentalmente, uma injeção para o combate à doença. Vacina essa que será administrada ao paciente com VIH/Sida e poderá ele ficar três meses sem tomar qualquer outro medicamento. Acreditamos que, quando essa vacina cá chegar, haverá muito mais aderência das pessoas à terapia, o que vai ajudar na redução da morte de pessoas por causa da doença. Estamos esperançosos da finalização dessa vacina e ansiosos para experimento da mesma.

Diz-se que a ONUSIDA "apela a cada um a abordar as desigualdades que impedem o progresso de acabar com a SIDA". De que desigualdades estamos a falar exactamente?

Lamentavelmente existem todas as desigualdades possíveis e mais algumas. Falo, por exemplo, das desigualdades sociais. Só para citar um desses tipo de desigualdades, falo de meios financeiros. Temos, aqui no instituto, pacientes que durante muito tempo não aparecem para levar os medicamentos, porque dizem não ter dinheiro para apanhar um transporte público. Outros não prosseguem com a medicação por não terem comida em casa, para acompanhar a terapêutica. Temos o problema de homens que fazem sexo com outros homens, as trabalhadoras de sexo e os transexuais que acabam vivendo dois tipos de estigmas, o de pertencerem a esta classe especial e o de serem seropositivos. Quando a ONUSida e a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançaram o repto de que "não devemos deixar ninguém para trás” era, exactamente, para todos serem incluídos dentro da estratégia de combate à doença. Lastimamos o facto de essa classe de pessoas ser estigmatizada. Passou a se reservar mais, não testa, não adere ao tratamento. Temos, também, os problemas religiosos como já foquei anteriormente e as questões tribais; tudo isso temos de encontrar vias para ultrapassá-los e darmos a todos as mesmas oportunidades.

Em tempos, falou-se do chamado Plano Operacional da Aliança Global para acabar com a SIDA nas províncias do Cuanza-Sul e Benguela. Como está hoje?

Este plano está enquadrado naquilo que é o plano de doação do Fundo Global, que dava a todo o país valor financeiro, mas, há dois anos a última doação feita achou-se, por bem, focar-se apenas em duas provinciais, Benguela e Cuanza-Sul. Na próxima doação, que está a ser discutida, será incluída a província do Bié. Houve um reforço de meios, no sentido de se concentrar nessas primeiras duas províncias, para,  ver que resultados teremos. Ainda não fizemos um balanço para saber até que ponto é que valeu concentrar naquelas áreas, mas tudo tem corrido bem, os dados preliminares dizem isso. 

Até ao início deste ano, dizia-se que a transmissão de mãe para filhos tinha caído em dez por cento. Que tem a dizer?

Hoje essa é a nossa luta com as mulheres gravidas, sobretudo porque elas têm a responsabilidade que o seu filho não nasça seropositivo,  mas, felizmente, muitas quando chegam às nossas unidades para a primeira consulta, se elas são portadoras do vírus, lhes é explicado o tratamento para que os seus filhos não nasçam seropositivos, Automaticamente elas aceitam e aderem. Felizmente temos obtido bons resultados. Só para se ter uma ideia, desde o lançamento da "Campanha nascer livre para brilhar”, Dezembro de 2018, um programa amadrinhada pela Primeira-dama da República, Ana Dias Lourenço, passamos de 26 por cento de transmissão de mãe para filho, para 15 por cento. Este é um ganho que estamos a preservar e mantemos o foco nesta área. Os serviços agora são integrados. Logo na primeira consulta (consulta pré-natal), o técnico oferece o teste e se for positivo a mulher é aconselhada a não fazer o parto fora da maternidade. Anteriormente tínhamos o desfecho da criança, apenas, aos 18 meses de idade. Eram feitos vários testes para se chegar a saber se a criança era ou não seropositiva. Agora, temos isso antes dos dois meses de vida da mesma.  O diagnostico precoce infantil é uma forma de teste em que conseguimos, aos dois meses, saber se acriança esta livre ou não.

Como está em funcionamento o teste denominado "SD-Bioline", que permite obter resultados mais precisos em caso de SIDA?

A questão é teremos mais uma alternativa para a testagem. Este teste já está distribuído para as 18 provinciais do país e em todas as suas unidades hospitalares. Estamos na fase de replicação, ou seja, os agentes formados estão hoje a formar novos formadores e isso está a funcionar. Os nossos técnicos foram devidamente formados como utilizar o mesmo e agora estamos na fase de replicar e regularmente fazemos visitas de supervisão, de tudo que está a ser feito, embora em alguns sítios, os mais recônditos, ainda haja algumas duvidas, mas está a correr bem.  

É possível dizer qual o percentual de pessoas que não sabe do seu estado serológico?

Sim o mesmo sistema que é utilizado para se chegar as estimativas de pessoas seropositivas, também nos dá essa percentagem. A ultima estatística que temos é que 58 por cento de pessoas, desconhecem o seu estado serológico, isso em todas as idades. Mas nisso enfrentamos um pequeno problema. Muitas pessoas sabem do seu estado, mas fogem por causa da discriminação que é a nossa grande inimiga e que faz com que as pessoas se afastem do tratamento.

Quais as informações que existem relativas aos serviços de aconselhamento e testagem em todo o país?

Estes serviços são muitos. Passamos de 15 em 2004 para 2.714. Quase todas unidades de saúde hoje têm serviços de aconselhamento e testagem. Isso tem nos ajudado a captar pacientes, quer para o tratamento quer para o diagnóstico. Os serviços de atendimento de retrovirais que tínhamos apenas três, hoje estamos em 889 em todo país. Para crianças estes serviços passaram de três para 428.

Fala-se muito que se está próximo de uma vacina contra a SIDA. Como estamos?

Estamos aguadar por isso. Como já havia referido o processo a nível internacional continua. Ainda não temos resultados palpáveis, mas aguardamos ansiosos para que essa vacina chegue e ponha fim a este grande mal que assola o mundo há vários anos.

A SIDA é já considerada uma doença crônica?

Enquanto conceito sim! é uma doença crónica porque ainda não tem cura. Queríamos que não tivesse a prevalência que tem, por isso, a ONUSIDA orienta que, até o ano de 2030, não se acabe nem se erradique o VIH/SIDA, mas que deixe de ser uma preocupação de saúde pública.

Que relação existe entre o VIH-SIDA e doenças como a Hepatite B e a Sífilis?

As três são de transmissão sexual, mas o vírus da Hepatite B é diferente ao do VIH/Sida. Se um indivíduo tiver só hepatite B, deve tomar o comprimido para o controlo da mesma, mas já se tiver as duas doenças, VIH/Sida e Hepatite B, automaticamente ao fazer o tratamento para o VIH está a fazer o tratamento para as duas doenças, porque a dose para este vírus é tripla, é uma composição que serve também para hepatite.

Qual é a estratégia de prevenção e cura para as hepatites virais e demais DST, ligadas ou não ao VIH-SIDA?

A estratégia no fundo é a mesma, sendo muitas delas de transmissão sexual. Angola reiterou seu compromisso para a eliminação da epidemia de SIDA até ao ano de 2030 e as metas intermediárias de 2020. O alcance destas metas representa um enorme desafio para o país e passam pela implementação da estratégia Testar e Tratar (T&T).

É verdade que a Medicina Tradicional consegue curar o VIH-SIDA?

Não! Ainda não temos provas de que a medicina tradicional possa curar o VIH/Sida. É possível  que a determinado momento o individuo seropositivo, estando debilitado, faça um tratamento tradicional e ele fique com a sensação de que está curado, mas não está. O vírus vai continuar no corpo, no sangue. O que pode ter acontecido  é ver-se livre ou curado de algumas doenças oportunistas que se desenrolaram em conjunto com o vírus, o que vai lhe permitir ter um tempo de bom gozo de estado de saúde. Mas se não fizer o tratamento devido para o VIH poderá ter outra recaída. Então o aconselhável sempre é fazer também, testes da medicina moderna.

Que mais tem a adiantar relativo às abordagens aqui feitas?

Apelo a prevenção, solidariedade e, também, ao engajamento da sociedade, porque essa doença não tem dono, podemos, a dada altura, termos no seio familiar um parente infectado, então vamos jogar na preservação e ajudar aqueles que estão infectados, a levarem, emocionalmente, a doença de forma mais leve. Muitos estão infectados não porque estiveram com ouro ser infectado, mas contraíram pelas mais diversas formas que muitos de nós conhecemos, como o corte com instrumentos cortantes não esterilizados, que já tinham sido utilizados por outros indivíduos. Por outro lado, dizer que estamos a fazer um estudo com a população carcerária, para saber qual a taxa de prevalência neste grupo. 

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