Opinião

O que se passa em Cabo Delgado?

João Melo*

Jornalista e Escritor

A pandemia que mantém o mundo quase paralisado há mais de um ano parece ter-nos feito esquecer de que, apesar de tudo, a vida continua, com os seus momentos de normalidade e, por momentos, as suas pequenas alegrias, mas – sobretudo isso – com as suas iniquidades e os seus horrores. Um desses horrores é o conflito em Cabo Delgado, Moçambique.

31/03/2021  Última atualização 08H39
Confesso: também estou incluído entre aqueles que, sabendo da existência desse conflito num país que nos habituámos a considerar irmão, pouco ou nada sabe quer da sua natureza quer dos seus verdadeiros contornos. O que se julga saber é que o fundamentalismo islâmico estará por detrás do que se passa hoje em Cabo Delgado. É pouco.

Repugna-me observar, neste momento, os jornalistas ocidentais a acusarem as autoridades moçambicanas de sempre terem olhado com suposta indiferença para os acontecimentos que há mais de três anos começaram a germinar naquela região. A verdade é que, para a imprensa mundial, Cabo Delgado sempre foi apenas uma nota de rodapé. Isso inclui também, diga-se, a própria imprensa africana.

No caso da imprensa portuguesa, por exemplo, onde o tema tem sido manchete nos últimos dias, o que espoletou a cobertura unânime do assunto e o sinal de alerta a que temos assistido nos últimos dias foi o ataque dos terroristas à cidade de Palma, na semana passada, onde morreu um cidadão português. Isso diz tudo sobre as suas motivações.

Tem de ser dito, por conseguinte: em relação à situação em Cabo Delgado, a indiferença do mundo (a começar pelos países vizinhos de Moçambique e pelos países membros da CPLP) é geral.
E, no entanto, é verdade que o modo, digamos assim, naíve com que as autoridades moçambicanas continuam a lidar com este problema é, no mínimo, es-tranho. Lembro-me, a propósito de uma conversa que tive no final de 2019 com uma deputada angolana que me contou uma conversa que, numa reunião de parlamentares da SADC, tinha mantido com colegas de Moçambique sobre a instabilidade que já se fazia sentir em Cabo Delgado. A leitura dos deputados angolanos segundo a qual o fundamentalismo islâmico estava por detrás dos acontecimentos na região foi liminarmente refutada – disse-me ela – pelos seus colegas moçambicanos.

Isso trouxe-me à memória outra lembrança, anterior, acerca da profunda diferença da forma como a guerra civil terminou em Angola e em Moçambique. Para muitos angolanos, sempre fez espécie uma guerra terminar com uma espécie de "empate técnico”. É verdade que todas as guerras acabam numa mesa de negociações, mas, quase sempre, com um vencido e um vencedor. O facto de esse não ter sido o caso de Moçambique talvez explique - apenas em parte, claro - a persistência de grupos armados naquele país, à margem, hoje, da própria Renamo.

A terminar, não cabe a um observador ocasional, como eu, da situação moçambicana dar receitas para resolver o problema de Cabo Delgado ou quaisquer outros relacionados com a mesma. Segundo foi noticiado, a África do Sul pondera uma intervenção militar em Palma, se as autoridades do país o solicitarem. Perante as óbvias fragilidades das forças militares moçambicanas, uma intervenção internacional, de preferência com cobertura institucional (SADC ou ONU), parece muito mais recomendável do que o recurso a em-presas de mercenários. Mas o problema está longe de ser apenas militar.

*Jornalista e escritor

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