Opinião

Ontologia de uma historiografia literária angolana - VIII

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Na segunda do século XX, a absolutização do texto literário foi um paradigma que dominou o espaço académico europeu e norte-americano consagrado aos estudos literários e à filosofia da literatura. Tal acontecia por influência dos tribunos da “imanência do texto literário”. Reinavam os dogmas da escola do “New Criticism”, a chamada Nova Crítica. O continente africano registava nessa época uma vaga das independências dos cinco países africanos cuja língua oficial era o português. O crescente interesse pelas respectivas literaturas era revelador de uma ignorada soberania epistémica e literária. Surgia assim uma nova disciplina. O seu objecto era atípico, na medida em que correspondia a um universo de massas como se fosse um enxame cuja legitimidade epistémica inspira suspeita. Trata-se de “Literaturas Africanas de Língua Portuguesa”,“Lusophone African Literatures” ou “African Literature in Portuguese”, em inglês, unidade curricular integrada, inicialmente, em programas da Licenciatura em Letras Modernas, Literatura Portuguesa e Estudos Portugueses. Mas essa disciplina não representa um conjunto de propriedades e singularidades. Ao invés, a sua categorização obedece a critérios equívocos, designadamente, a história da colonização portuguesa e a expansão da língua portuguesa

28/04/2024  Última atualização 07H49

Nova disciplina

Após 1975, as "Literaturas Africanas de Língua Portuguesa”, "Lusophone African Literatures” ou "African Literature in Portuguese”, em inglês, consolidaram o seu estatuto de unidade curricular em diferentes cursos das Faculdades de Letras de algumas universidades do mundo. É o caso de Portugal onde a primeira disciplina universitária de Literaturas Africanas foi criada em 1975, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, por iniciativa do professor Manuel Ferreira (1917-1992). Já em 1978, por força de um dispositivo legal foi introduzida a disciplina "Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa”, leccionada nos cursos de Línguas e Literaturas Modernas, opção "Estudos Portugueses”. Em 1995, a Universidade Aberta de Portugal publicou um manual de apoio para o ensino da referida disciplina. O autor, Pires Laranjeira, professor da Universidade de Coimbra, é um dos mais importantes especialistas portugueses. Contudo, a institucionalização e ensino dessa unidade curricular ocorreu sob os auspícios de uma legitimidade suspeita, sendo a sua denominação um importante indício. Os debates sobre os equívocos dessa denominação têm vindo a dar lugar à sua correcção, eliminando-se a unidade lexemática, "expressão”. Mas as resistências contra a alteração definitiva subsistem. A sua historiografia reduzia-se a uma parte do todo. À semelhança do que sucede com outras literaturas africanas, contava apenas a parte das literaturas escritas em línguas europeias. Consciente dessa amputação estava o investigador belga, Albert S. Gérard (1920-1996), que reconhecia a existência de três campos distintos de actividade criativa e, consequentemente, académica, entre as quais as literaturas escritas em línguas nacionais, literaturas orais africanas em centenas de línguas faladas no continente. No entanto, continuam a ser negligenciadas.

 
Abiola Irele e a Cambridge History of African and Caribbean Literature

Na sua qualidade de editor de uma história das literaturas africanas e das caraíbas, publicada com a chancela de uma prestigiada editora inglesa, "The Cambridge History of African and Caribbean Literature”, o falecido professor nigeriano Abiola Irele (1936-2017) abandonou os critérios das histórias literárias convencionais, que normalmente consistem em narração sobre períodos e movimentos distintos na evolução de uma literatura nacional, com incidência em grandes figuras e obras. Quanto a mim, o traço distintivo dessa obra reside na incorporação da tradição oral, nos primeiros doze capítulos do volume I:  1) África e oralidade; 2) O conto popular e suas extensões; 3) Festivais, rituais e teatro em África; 4) Tradições orais árabes e berberes no Norte de África; 5) Poesia heróica e de louvor na África do Sul; 6) Epopeias orais africanas; 7) A tradição oral na diáspora africana; 8) O Carnaval e as origens tradicionais do teatro das Índias Ocidentais; 9) A África e a escrita; 10) A literatura etíope; 11) As literaturas africanas em árabe; 12) A tradição literária swahili: uma herança intercultural.

 
Injustiça hermenêutica

Pode-se chegar à seguinte conclusão. A complexidade e a diversidade da história literária continental africana, não garantem utilidade a qualquer narrativa coerente e linear a que se pretenda atribuir valor de uma história literária nacional. Na década de 70 do século XX, o Instituto Gorky de Literatura Mundial, da Academia de Ciências da União Soviética realizou experiências no âmbito do seu projecto de redacção da História da Literatura Mundial com base em fundamentos da filosofia marxista da história. Era um trabalho que ilustrava bem o desenvolvimento dos chamados estudos tipológicos nos estudos literários soviéticos.

Em todo o caso, quer o modelo de histórias literárias em línguas europeias, quer o de história literária mundial, como quaisquer outras histórias literárias comparadas, devem actualmente suscitar algumas cautelas, ao serem transformados em modelos a seguir. A proliferação tendencialmente hegemónica de paradigmas teóricos, críticos e editoriais, além dos preconceitos eurocêntricos, não permitiu que as propostas hermenêuticas que vinham sendo produzidas em África merecessem atenção e fossem levadas a sério. Está aí patente uma manifestação de injustiça hermenêutica, na medida em que os especialistas europeus e americanos, privilegiando uma certa ordem do discurso e a leitura formal do texto literário, dedicavam-se ao estudo e à investigação das histórias literárias africanas, sem preocupações com a rentabilização do conhecimento da sua ontologia literária. Do mesmo modo que se instaura a ignorância relativamente às literaturas orais, semelhante procedimento traduz-se em negligência de uma ética da interpretação.

Ordem do discurso

Ora, a dissidência ontológica de um escritor, tal como a caracterizámos a partir do exemplo de Mário António Fernandes de Oliveira (1934-1989), na historiografia angolana, levanta o problema de saber se é indissolúvel e inevitável a relação entre o autor e a obra. Neste caso, a questão situa-se no campo da historiografia literária, isto é, da história da história literária. Na senda da sua reflexão sobre a "ordem do discurso”, o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), tematizou o problema da relação entre a moralidade do autor e sua obra, quando explica o sentido da "função autor”. Em França, há quatro anos a socióloga francesa Gisèle Sapiro dedicou-lhe uma atenção especial, no seu livro "Peut-on dissocier l’oeuvre de l’auteur ?”, (É Possível Dissociar a Obra do Autor?).

 

Autor e moralidade

No contexto das literaturas africanas, o problema é antigo. Foi no domínio da antropologia colonial que as interrogações acerca da existência de autor na literatura deram lugar a preconceitos evolucionistas, segundo os quais nas sociedades de tradição oral, sem escrita, não é possível determinar a autoria das obras literárias e artísticas. Não é possível identificar um autor com biografia e intencionalidade que fale em nome próprio. O que se passa é que a "ordem do discurso” que funciona nas sociedades de tradição oral obedece a outros tipos de procedimentos de controlo e exclusão. Dois especialistas Africanos, o malogrado professor nigeriano, Isidore Okpewho (1941-2016), e o especialista ganense em literatura oral, Kwesi Yankah, veiculam provas da fragilidade dos argumentos evolucionistas ocidentais, respectivamente, em "African Oral Literature”, (A Literatura Oral Africana), e "The Proverb in the Contexto of Akan Rhetoric”, (O Provérbio Akan no Contexto da Retórica Akan). Pode-se concluir que os procedimentos de controlo da função autor, na ordem do discurso africano, não conduzem necessariamente à instauração do anonimato como princípio. Okpewho considera que, na Nigéria, por exemplo, a supressão de referências ao nome próprio depende da vontade do artista e das regras de reconhecimento da autoria existentes nas comunidades interpretativas. Assim se explica a razão por que o mérito de um texto da literatura oral assenta em primeiro lugar nas singularidades da personalidade do artista. A ontologia do artista da palavra comporta a moralidade dos comportamentos do autor do texto oral. Se o autor pode ser originário, aquele que concebe o texto, ou circunstancial, quando enuncia o texto apenas, as conexões da intenção, da moralidade e do autor são indissolúveis. Por força da possibilidade de um autor ser agente moral, justifica-se a seguinte pergunta. Uma dissidência ontológica semelhante àquela que foi protagonizada por Mário António Fernandes de Oliveira implica uma relação entre a moralidade da sua acção e a sua obra? As obras são autónomas ou devem manter vínculos com a moralidade do seu autor? É de compromisso ontológico que se trata. Na perspectiva ortodoxa do filósofo norte-americano W.O.Quine (1908-2000), ser implica ser valor de uma variável.

 

Eliminativismo e realismo

As respostas àquelas perguntas, entre a negação e a afirmação do compromisso ontológico, vão conduzir-nos ao centro dos debates da ontologia moral. A negação da existência de quaisquer vínculos morais e factos morais revela a adesão à doutrina eliminativista da ontologia moral. É o niilismo moral segundo o qual não existem direitos, deveres e obrigações morais. No lado oposto, situa-se o realismo moral, segundo o qual existem factos morais e crenças morais verdadeiras. A verdade de tais crenças traduz-se em correspondência com os factos morais. Além disso, o realismo sustenta a possibilidade de existirem realidades independentes das crenças ou dos desejos.

Articulemos alguns princípios com que se opera na filosofia da historiografia. Para alguns sectores da crítica da literatura angolana, europeia e norte-americana, a interpretação da obra de Mário António Fernandes de Oliveira e sua inscrição na história literária angolana, deve inspirar-se no individualismo metodológico, devendo a sua produção literária ser isolada do contexto social em que foi criada. Na origem desses objectos estão as atitudes pessoais. Isto significa dizer que os vínculos morais e factos morais, que emanam da obra literária de Mário António, não têm qualquer relevância. Como vimos, é a defesa da ontologia moraleliminativista. Numa perspectiva contrária, encontramos o holismo metodológico, segundo o qual a interpretação da obra de Mário António deve ter em conta a sua dimensão social. Semelhante perspectiva sugere conexões com o realismo moral e o historicismo. Traz à liça o holismo metodológico que sustenta que a acção humana é decisiva para a história. Na filosofia da historiografia, o individualismo metodológico sofre críticas dos que defendem a ontologia moral holística, porque é "extremamente difícil encontrar exemplos de explicações estritamente individualistas”.

 

Conclusão

Portanto, os debates que opõem os proponentes da ontologia moral eliminativista, de um lado, e a ontologia moral holística, de outro lado, elevam a abordagem, situando o problema lá onde é convocada a ética da interpretação. Por isso, a minha posição aponta para a necessidade de se operar com o realismo moral e o historicismo. O realismo moral, o contextualismo e o historicismo contribuem para edificação da historiografia literária que defendemos. Por isso, a biografia e a micro-história constituem discursos narrativos que podem igualmente contribuir de modo decisivo para combater exclusões que se analisam em1) injustiça epistémica e2) injustiça hermenêutica. Estas últimas são apenas dois tipos de injustiças comuns no campo dos estudos literários angolanos. A primeira revela a natureza do obstáculo – crenças em verdades insusceptíveis de justificação – com que se confrontam as comunidades interpretativas de textos literários angolanos. A segunda é filha da intencional desvalorização do contexto, quando a finalidade consiste em identificar os sentidos.

 

*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil.  em Filosofia Geral

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