Entrevista

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Raúl Tollingas: “Não há semba sem dikanza”

Ferraz Neto

Jornalista

Quando as cortinas se abrem e o espectáculo começa, onde a execução da dikanza e da puíta, no rigor da 'partitura' de uma composição, que fazem parte do show, é impossível não mencionar o nome desse talentoso músico e instrumentista, Raúl Tollingas. Nesta entrevista, o homem dos calções da moda, conforme é identificado na rua, revela um pouco do seu percurso artístico, impulsionado pelo pai, ao ensinar à tocar concertina e dikanza. Siga a leitura.

03/10/2023  Última atualização 12H05
© Fotografia por: Armando Costa | Edições Novembro

Há uma curiosidade que os seus admiradores gostariam de saber. O porquê o pseudónimo  Tolingas?

 Poucas pessoas conhecem o meu nome de registo e apelido de casa. O Tollingas é pseudónimo que vincou no mundo artístico. Todos me conhecem por este nome. Para os companheiros de infância, do meu Marçal, Raúl é o nome mais conhecido. Do registo é Raúl Fernandes da Fonseca.

 
De que forma surgiu este pseudónimo?

O nome surge, enquanto integrante do agrupamento musical Kissanguela, numa digressão que efectuamos a Sófia, capital da República da Bulgária. Éramos integrantes da caravana artística do Presidente António Agostinho Neto. Depois da actuação no Palácio Presidencial, os repórteres fascinados com a nossa actuação decidiram fazer uma entrevista. Um dos repórteres decidiu chamar-me em privado. Foi gritando, à distância, Tullingas. Isso causou espanto para os membros da nossa delegação, afinal, ninguém na caravana tinha o nome de Tullingas.

 
Qual foi a reacção dos membros da delegação?   

Lógico, de espanto.  É que todos se viraram, à procura do Tullingas. O jornalista búlgaro, insatisfeito com o silêncio dos integrantes do Kissanguela, apontou o dedo justamente para mim. Naquele instante, todos ficaram boquiabertos. Os colegas decidiram usar este nome de forma pejorativa. Quando quisessem zombar comigo, chamavam-me pelo nome de Tullingas. Fui rejeitando, até que, certa vez, o padrinho da minha filha endereçou-me uma carta cujo cabeçalho estava escrito compadre Tullingas. Gostei imenso do conteúdo da carta e da maneira como escreveu o nome Tullingas. Daí que nunca mais rejeitei o Tullingas.

 
Já considerou registar este pseudónimo como uma marca?

Não. Limito-me a usá-lo como pseudónimo artístico. Na minha idade, pouco tenho a fazer, se não apenas gerir os poucos dias de vida que me restam. Deixo este desafio para os mais jovens. Tenho dito às pessoas que já estou a fazer a curva do Cabo da Boa Esperança (África do Sul) e não sei se ainda vou a tempo de chegar ao Oceano Índico ou ao Pacifico...(risos)

 
Tollingas é uma figura do Marçal...

Sou, assumo isso. Nunca discordei disso. Sinto-me um verdadeiro peixe na água. Nunca escondi que o Marçal é o melhor bairro suburbano do mundo. Adoro estar no Marçal. Mesmo distante, sinto saudade.

 
A semelhança do que acontece com os bairros periféricos de Luanda,  o Marçal está enfermo de problemas, como delinquência, saneamento básico, entre outros males... 

Isso não faz com que deixe de amar o Marçal. Como há bandidos no Marçal, há bandidos em outros bairros da cidade. Vivi na Urbanização Nova Vida e lá há também os assaltos as  residências, na via pública e outros males. Já fui assaltado, mas nunca abandonei o meu bairro. Adoro o meu Marçal.


Quer dizer que já esteve ausente do Marçal?

Já. Há alguns anos, emigrei com a família para Portugal, onde tempos depois mudámo-nos para Inglaterra. Depois da pandemia da Covid-19, regressei ao meu Marçal, onde me encontro até hoje.


Sente-se bem?

Na verdade, já ponderei regressar a Portugal.

 
Porquê não regressa a Portugal?

As condições económicas em Portugal não favorecem. Sou músico profissional e vivo exclusivamente da música. A realidade portuguesa não favorece muito aos músicos africanos. Os músicos angolanos que conseguem residir em Portugal, têm outras fontes de receitas  e não apenas a música.

 
Fale-nos do senhor Papo Mulato do Marçal...

Sem palavras... Poucas pessoas conhecem essa pessoa. Papo Mulato é o meu pai. Foi, na década de 40 e 50, uma grande referência no Marçal. Saudades do meu velho Papo Mulato!  Atenção: no Marçal tínhamos muitas pessoas com o nome de Papo. Tínhamos o Papo da Caveia, irmão do Cardeal Dom Alexandre do Nascimento, e o Papo Vieira Dias, irmão do músico Carlitos Vieira Dias.

 
Pesquisas feitas descobrimos que a sua descendência familiar é originária de Cabiri, antes comuna da província do Bengo...

O senhor radiografou bem a minha vida familiar. É verdade! O meu pai e a minha mãe são oriundos de Cabiri, município de Icolo e Bengo. O meu pai chamava-se João Fernandes da Fonseca, era filho de um cidadão espanhol. A minha mãe era a dona Maria de Vaz Contreiras, também natural de Cabiri. O meu progenitor foi uma figura muito conhecida em Luanda, por ter sido funcionário da Saúde, na luta contra a doença do sono (tripanossomíase).

 
Foi ele que lhe baptizou para música?

Sim. O meu pai era um exímio tocador de concertina e dikanza. Aprendeu a tocar concertina no Seminário Maior de Luanda, onde era seminarista. Em todas as suas actuações, ele fazia questão que estivesse ao lado dele. Quando estivesse a tocar dava-me um prato de esmalte e um garfo, para emitir o som idêntico da dikanza.

 
Foi motivo suficiente para afeiçoar-se a concertina e a dikanza?

A minha grande paixão foi sempre a dikanza e não a concertina. Partilhava estes instrumentos com os meus irmãos mais velhos e com um vizinho, que, anos mais tarde, se notabilizou na música angolana, o Manelito dos Jihendas e o João Dia Nzambi, o irmão do Jivago, o autor da música "Avó Teté”. Fizemos um grupo de bairro denominado "Os Piratas do Ritmo”, onde, apesar da minha experiência na dikanza e concertina, toquei harmónica de beiços.

 
E os Morenos do Ritmo?

Foi a minha segunda experiência em agrupamentos musicais. Nos Morenos do Ritmo fui levado pelo Belmiro Carlos.

 
Daí em diante nunca mais parou?

Não parei. Seguiu-se os Unidos do Kissanguela. Passei, também, pelos Picas do Zangado, Rufino Mais Três (composto por Tullingas, Baião Imperial, Ytu e o Rufino). Toquei, ainda, no Conjunto Os Focos, Águias Reais, Jovens do Prenda, África Show, Negoleiros, Ébanos, Folos, Kissanguela, Quarteto Universal, Kituxi, Semba África, Angola 70, Rebita, Novatos da Ilha e, actualmente, estou no conjunto Dizu Dyetu.

 
É um músico e instrumentista multifacetado...

Toco quase tudo. O segredo deste dado deve-se ao facto de estar, permanentemente, a investigar. Escuto muita música quando não tenho compromissos. Tenho um acervo discográfico bastante rico. Ainda uso o Gira-disco. Por outro lado, considero-me autodidacta, o que me permite aprender a tocar os instrumentos sem ajuda de ninguém.

 
É dos poucos luandenses que toca concertina. Não acha esse instrumento em fase de extinção, no cenário musical angolano?

Claro que sim. Veja que, actualmente, só há duas pessoas que tocam bem a concertina no país: eu e o Horácio da Mesquita. Foi o Horácio da Mesquita que me moldou e refinou todos os meus passos na concertina, apesar de ter uma vaga experiência desde a infância.

 
Fale-nos da sua experiência pessoal de tocar duas ou três guitarras em simultâneo? 

Sou uma pessoa criativa. Essas maravilhas faço-as com mestria e a meu  bel-prazer, depois de estudos aturados. Estudo dia e noite para poder fazer uma actuação digna. Veja que cada dikanza deve emitir um som diferente da outra, facto que, deixa pasmado muita gente. É necessário dom e discernimento.

 
Qual é, na verdade, o seu instrumento favorito?

A dikanza. Há muitos "dikanzistas" pelo país e pelo mundo. Tocar a dikanza, é necessário saber. Todo instrumentista é um solista. Felizmente, tudo o que faço em palco sai bem. Como disse o Joãozinho Morgado: 'não sou melhor que ninguém'. Aprendemos todos os dias. Todos os dias, toco a minha dikanza, em casa. Aconselho os mais jovens a não ouvirem apenas música angolana, mas mas de outras latitudes também.

 
Já ponderou transmitir o seu legado aos mais jovens?

Já pensei nisso muitas vezes. Infelizmente, registei pouca adesão nas actividades que tentei realizar. Os jovens estão mais focados no imediatismo. Fazem tudo a pensar nos benefícios, materiais e financeiro. Esquecem-se de que a dikanza faz parte da nossa história. Esqueceram-se de que não há semba sem dikanza. Os jovens estão mais preocupados com os instrumentos eléctricos.


Falando da transmissão de valores  para os mais jovens. Podemos considerar Jorge Mulumba um exemplo digno?

 Não sei se é por ser do Marçal e de Luanda, mas presto a minha homenagem ao jovem Jorge Mulumba. Muitos aparecem apenas para tirar uma fotografia com o Jorge Mulumba, mas na hora de aprender a tocar, é tudo uma mentira.

 
Qual é o seu sonho neste momento?

O meu sonho é ter uma escola de dikanza.

 
Tem participações em vários discos...

Tenho participações em centenas de discos, e acho até que já perdi o número. Participei do disco "Belita", de Artur Adriano. Trabalhei com o músico Gildo Costa, no disco Madalena, de Santos Júnior. Tive também participações em quase todas as músicas do conjunto África Show, onde fui integrante. Participei em trabalhos discográficos dos manos Rui e André Mingas, do Elias Dya Kimuezo, Lourdes Van-Dúnem, de Alcione e Chico Buarque, da portuguesa Rebeca, enfim, toquei e acompanhei uma infinidade de artistas da nossa praça.

 
Já pensou em gravar um disco?

Tenho feito de tudo para que isso seja uma realidade. Infelizmente, não tenho recursos financeiros. Não sou uma pessoa que anda atrás das instituições como pedinte. Realço o apoio que o Ilídio Brás tem feito a mim e a tantos outros músicos da velha geração. O Estado deve promover políticas para que os mais velhos possam criar projectos artísticos e partilhar com os mais jovens.

 
A composição é um  dom natural seu ou age por impulso?

As minhas composições surgem de várias  maneiras. Na maioria dos casos surgem a ouvir música, sugestões de amigos ou mesmo no meu dia-a-dia… Por isso, alguns dos meus projectos pessoais têm ficado à espera, anos a fio, para se materializarem. E tenho muitos sons na gaveta à espera da estreia.

 
Que entidades destaca pelo seu contributo musical nas últimas décadas em Angola?

A Brasom. Trata-se de uma instituição que tem valorizado os músicos nacionais da velha geração, com realce para o projecto musical Dizu Dietu.

 
Tem uma forma peculiar de estar em palco: por vezes descalço e de calções. O que isso significa?

É uma maneira de fazer a diferença. Quando estou em palco, todos saberão que é o Raul Tullingas. Criei este estilo em palco para me diferenciar dos demais. Como os músicos todos actuam de calças preferi fazer a diferença. Criei a minha forma peculiar de estar em palco. Gosto de actuar de calção.

 
A herança artística familiar deixada pelo seu pai resume-se à Raul Tullingas?

Infelizmente. Sou o quarto filho dos meus pais, mas apenas eu herdei essa veia artística. O meu irmão mais velho, apesar de tocar guitarra e a puíta, nenhum dos seus filhos é artista. O mesmo acontece comigo. Dos meus seis filhos, nenhum deles sabe tocar. É triste dizer isso, mas é a verdade.


Vive numa casa modesta...

Como vê, não tenho luxo. Sou um humilde cidadão de Luanda e do Marçal. As pessoas estranham quando vêm para o Marçal. Surpreendem-se com a minha modesta casa e pelo meu acervo musical. Como vê, não tenho mundos e fundos. De forma humilde consigo satisfazer as minhas necessidades pessoais e familiares.

 
Tem exposto nas paredes da sua sala um acervo musical invejável. Já pensou em abrir as portas da sua casa ao público?

Já. O que necessito é de apoios. Tenho aqui, um acervo musical que muitos jovens nunca tiveram a oportunidade de ver ou ter e nem tão pouco ouvir a tocar. Há figuras da nossa praça que quando entram para a minha casa não querem sair. Sentem-se tocados pelas imagens ou pelo som. É um acervo que guardo há décadas.


Os fracassos ajudam-nos a construir a carreira...

Não posso falar propriamente de fracassos, felizmente. Embora nem tudo tenha corrido bem, nunca me aconteceu sentir que falhei redondamente. A minha deficiente avaliação dos meios e das possibilidades, para algumas formações, levam-me, por vezes, a colocar o acento tónico em algumas obras, com perspectivas menos favoráveis.

 
Como tem sido a sua relação com a nova geração no Marçal?

Tem sido boa. Os mais novos chamam-me kota Raulinho ou o tio Raúl. Na verdade, sinto-me bem e reconheço o respeito que os mais novos nutrem por mim. Só sairei do Marçal depois da realização das autarquias em Luanda. Sou respeitado e sou conhecido. Há muitos jovens que não me conhecem, por serem nativos de outras partes de Luanda. Estes não são daqui, mas eu sou daqui. O Marçal é a minha banda.

 
Lembra-se dos salões de farra do antigamente?

Perfeitamente. Tenho saudades desse tempo. É uma pena que o Marçal e Luanda, já não tenham salões de farra. Tínhamos os salões como Giro-Giro, Salão Azul entre outros. Infelizmente, não sou um excelente bailarino, sou um apreciador atento de quem verdadeiramente sabe dançar. O mesmo falo das casas de cinema. No meu tempo, tínhamos muitas casas de cinema e todas a funcionar em pleno. Os músicos tinham várias oportunidades e locais para actuar.

 
Já está na terceira idade, mas disse-nos que vive apenas da música. E a reforma?

Ainda tenho forças para tocar… Tenho uma reforma paga pelo Instituto Nacional de Segurança Social (INSS), mas como sabe, não é grande coisa. Tenho uma carrinha Toyota Hilux, que podia muito bem-fazer um negócio. Mas não sei fazer negócio. Por outro lado, julgo que não posso manchar a minha imagem com puxadas. Tullingas é uma marca. Não sou rico nem pobre. Vivo numa casa humilde no meu bairro do Marçal.

 
Qual é o momento marcante na carreira artística?

Um dos meus melhores momentos na vida artística foi ter actuado no N'gola Cine, com o Xabanú, quando cantou a composição "Matulão Cara de Cão". Foi um sucesso enorme que guardo até hoje na memória. Nunca esquecerei este momento da minha vida.

 
O que é que a música representa para si?

É, absolutamente, o essencial e insubstituível. Quase arrisco dizer que ela é tudo para mim, porque sei que é a única coisa que faço que me diz alguma coisinha de divino neste  pedaço de barro que eu sou. Mas todos somos algo mais do que isso. É, absolutamente, essencial e insubstituível.

 
Apesar da idade, ainda  alimenta sonhos?

Logicamente, o meu maior sonho é ter uma casa, onde possa expor todo o meu acervo. Este é o meu sonho. 

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