Entrevista

Somos o fruto da graça da desgraça”

Analtino Santos

Jornalista

Apresentamos mais uma conversa, com muitas histórias,com angolanos que saíram do desconhecido para conquistar um lugar ao sol. Antero Moisés Ekuikui e Guilherme dos Anjos Maurício “Mito” são os componentes do Duo Canhoto. Ambos são antigos militares das extintas Tropas de Guarda Fronteira de Angola (TGFA).

10/09/2023  Última atualização 07H50
© Fotografia por: Edições Novembro
Tudo começou a ser desenhado nos anos 80, nos quartéis, quando animavam as Fogueiras do Combatente e os festivais de trova e da canção política. Depois, com a sua passagem para a vida civil, assumiram outros desafios. O duo tem como parceiros escritores de renome e ganhou um estatuto especial mercê da qualidade  das suas interpretações e da poeticidade das suas canções. Agora animam, com alguma regularidade, actividades institucionais e protocolares de organismos do Estado, mas também lutam para colocar no mercado o seu segundo disco de originais, depois do grande sucesso que foi "Lado Esquerdo. 

Jornal de Angola (JA) - Quem são os integrantes do Duo Canhoto?

Ekuikui - Antero Moisés Ekuikui, nascido no Huambo, município do Mungo, na aldeia de Catchau, comuna do Candengo, em 1962.

Mito - Sou Guilherme dos Anjos Maurício "Mito”, do Cuanza-Sul, município do Cazengo. Muitos dizem que nasci em Bolongongo, que é uma zona bonita, onde já estive muitas vezes.

JA - Quando olhamos para o Duo Canhoto a imagem que surge é a da unidade nacional...

Mito - É o que se faz sentir e carregamos isto até hoje. Aliás, é um dos eixos que nos conduzem...

JA - Vocês são fruto da guerra civil e trazem um lado pouco analisado da guerra, que é o de ter permitido a unidade nacional...

Ekuikui - Bem dito. Eu diria que somos o fruto da graça na desgraça, porque dentro de uma desgraça há sempre uma graça. E  da graça da desgraça que foi a guerra surge o Duo Canhoto. Acho que se não fosse a guerra não teríamos existido, não é? Nós somos este fruto.

JA - Ekuikui traz aqui um pouco de filosofia umbundu...

Ekuikui - Penso que sim, porque bebi muito dos meus avôs na minha infância e os meus pais foram professores. Foi o terceiro irmão do meu pai (não tio), com quem eu cresci, que me ensinou este provérbio em umbundu: "é kohali ku uolo”, que significa que em qualquer sofrimento há sempre um momento de graça. Então, na palavra encontramos dez graças numa desgraça.

JA - É verdade que pertence à família real?

Ekuikui – Sim, eu faço parte da família do Rei Ekuikui II do Bailundo, mas nasci no Mungo, que fica a 65 quilómetros. A minha família paterna vem essencialmente do Bailundo.

JA - Como foram os vossos primeiros contactos com a música?

Ekuikui - É uma pergunta pertinente. Nasci numa família de músicos. O meu pai foi um excelente instrumentista, tocava piano, flauta, gaita e saxofone, e também fabricava flautas de bambu. E a minha mãe era corista. Eles eram primos e foram formados na Missão do Dondi. Portanto, nasci no meio da música. Tínhamos o piano em casa,a minha mãe cantava, mas a guitarra só surgiu um ano depois da morte do meu pai, em 1977. Os caçulas da minha mãe e do meu pai tocavam guitarra e eles influenciaram-me. Mas eu, por ser canhoto, desencorajavam-me e nem me permitiram a aprendizagem. Por pensar nesse passado, actualmente estou a fabricar a minha guitarra de lata de um litro e outra de cinco litros, para mostrar de onde viemos e talvez as crianças possam ficar estimuladas à criatividade.

Mito - Olha que há coisas em que nós temos coincidências, não apenas por sermos canhotos, mas também  em relação aos nossos familiares. Eu sou cantor porque a minha mãe era cantora e também pertencia ao coro. Tenho um irmão que me influenciou a tocar guitarra, o Luís Pimentel. Com ele fui aprendendo algumas técnicas, mas não foi fácil. Ele não admitia que eu tocasse na guitarra, mas quando ele saísse ou se distraísse eu aproveitava e imaginava mais ou menos como tocava, sendo ele destro, e depois adaptava. Eu digo que a minha aprendizagem teve duas fases, com o meu irmão e depois com este mestre, o Ekuikui.

JA - Lembram-se das primeiras violas?

Ekuikui - Sim, eu aprendi a tocar numa guitarra de lata de azeite doce e,depois de ter aprendido o básico,então o meu tio arranjou-me uma de lata de cinco litros. Muito depois destas é que saltei para as guitarras modernas, mas só em 1978 ou 1979. Eu tive sorte porque fazíamos parte da JMPLA e no Bailundo beneficiámos das primeiras guitarras que nos foram oferecidas, porque tínhamos um pequeno grupo. E aí comecei a desenvolver melhor. Depois fui rusgado na sala de aulas para a tropa, venho parar em Luanda  e o que trazia do Huambo serviu para dar continuidade ao que fazemos hoje.

Mito - Nunca me esqueço da minha primeira guitarra, que me foi dada por um funcionário da Cultura, o senhor Santos Cardoso. Ele era director do espaço onde está hoje o Centro Cultural Njinga Mbande. Ele ficou entusiasmado quando me viu a tocar com uma guitarra em péssimas condiçõese depois fez uma requisiçãopara enviarem dez guitarras de Cuba, das quais uma foi para mim.

JA - Quando é que sentiram que a parceria entre os dois colegas militares poderia ser uma coisa séria?

Ekuikui - Penso que desde a primeira aparição pública, quando nos denominaram Duo Canhoto, no Namibe, começou a surgir a responsabilidade e aquilo que tocou no preâmbulo, a unidade nacional, primávamos muito  pelo lema "Um Só Povo, Uma Só Nação”. Começamos a fazer das tripas coração para "criarmos com os olhos secos” e para que este dueto fosse o mais distante possível. Quando passamos à disponibilidade  em 1995 e ganhamos o Festival Nacional de Trova  da Rádio Nacional, aí entramos com maior responsabilidade,e depois veio o Prémio Liceu Vieira Dias.

Como trovadores "aquecíamos as fogueiras do combatente"

JA - Como foi que vocês se encontraram?

Mito - Eu antes era atleta, pertencia ao Grupo Desportivo dos Dínamos, na modalidade de atletismo. E quando houve a oportunidade de ser mancebo, entrei para a tropa como desportista, mas com o tempo inverti e fui para a Cultura. É assim que  integrei o "Colectivo de Artes 26 de Agosto”, onde encontro o Ekuikui, que pertencia a um grupo musical, e depois apareço nas fogueiras dos combatentes e revelei-me como trovador.

Ekuikui – Conhecemo-nos entre 1982 e 1983. Eu entrei no agrupamento como baixista mas, independentemente deste instrumento, eu era trovador. Depois o Guilherme e os colegas puxaram-me para a trova. Como o agrupamento não foi muito mais além, os colegas que repararam que éramos esquerdinos sugeriram para nós o nome Duo Canhoto. O nosso primeiro concerto ao vivo foi em 1985, no Namibe, porque antes apenas actuávamos nas fogueiras dos combatentes em unidades militares, nunca para outra plateia.

JA - Estamos a falar dos festivais militares da canção política?

Mito - É importante falarmos das actividades que existiam,que o Ministério da Defesa fazia com as unidade militares e eram chamados Festivais de Trova. Foi aí que apareceram Zé Kafala, Moisés Kafala, Zé Fixe, Manuel Corado, Sabino Henda, Gabriel Tchiema e tantos outros.

Ekuikui - Temos de realçar que as Direcções Políticas militares eram movimentos muito dinâmicos e que cada uma das unidades tinha sempre agrupamentos musicais e programas culturais. Nós fazíamos visitas aos hospitais, cadeias e havia convergência de vários grupos nos festivais anuais de trova, dança, teatro e outras actividades que facilitavam esse cruzamento. Por exemplo, eu fiz parte do primeiro Festival Nacional de Trovadores da Segurança de Estado, que aconteceu de 15 a 17 de Outubro de 1985, em Cabinda. Dentre os participantes estavam Jacinto Tchipa, Brandão Hamalata, que foi uma das descobertas, e outros, que tiveram o suporte do agrupamento "26 de Agosto”.

JA - Como entram na Brigada Manguxi?

Mito – Lembro-me que num dos últimos festivais,que aconteceu no Lubango, me encontro com o Moisés Kafala, que tinha sido membro do júri  nesta edição. Quem venceu foi um concorrente de Benguela, não me lembro do nome, mas do segundo classificado sim, foi o Gabriel Tchiema. Eu não fui  como concorrente, porque não pertencia ao Ministério da Defesa, mas sim ao da Segurança de Estado. Depois Moisés Kafala  convida-me para pertencer à Brigada Manguxi, mas eu disse que trabalhava com um parceiro que só não actuou porque estava numa missão e foi assim que depois passamos para a Brigada Manguxi.

JA - Estamos a falar de uma fase importante da trova, mas este movimento não acontecia apenas nas hostes militares.

Mito - É verdade. Aliás, foram pessoas não militares que muito nos incentivaram. Falo do Beto Gourgel, Tonito Fortunato, Waldemar Bastos, Rui Mingas, Filipe Mukenga, o Zeca Sá, o nosso kota e amigo escritor Manuel Rui Monteiro, o kota Zé Viola, assim como o Zé Fixe e o Diabick, que também foram do nosso movimento, que estava ligado à poesia. No Lubango estavam o Acácio e o Namanga, em Benguela o Trio Viqueia.

JA - Por isso a vossa relação com a União dos Escritores Angolanos?

Ekuikui – Olha, havia sempre as feiras do livro que proporcionavam este casamento de leitores de um lado e trovadores do outro. Os músicos divulgavam muitos poemas de escritores, o que nos incentivou até agora. Nós fizemos parte dos lançamentos das obras de uma boa parte dos escritores nacionais.

JA - Os tempos são diferentes, mas estamos também para fazer história. Falem de coisas inusitadas que aconteciam nas digressões militares...

Ekuikui - Uma das coisas muito engraçadas foi durante uma das nossas passagens por Benguela. Tocámos no Nimas 500, numa altura em que nós só usávamos farda. Aí conhecemos o pai dos Impactus 4, foi ele que nos convidou para este espectáculo. Tivemos de arranjar roupa civil, mas não conseguimos sapatos. Depois do concerto, apareceu um fã que disse ter apreciado o concerto e depois foi sincero connosco: "Kotas, vão ter de trabalhar muito nos pés”. Subir ao palco com botas militares e roupa civil, este é um dos factos engraçados que marcaram a nossa vida.

Mito - Assim como depois de tocar muito tempo durante a noite e com frio, à madrugada dormir num berço tipo de criança. Nesta viagem para Benguelafomos de barco e passámos toda a noite a cantar.

O percurso fora do ambiente castrense

JA - Qual foi o primeiro sucesso do Duo Canhoto?

Ekuikui - Foi o "Curiom Bambi”, tema com que vencemos o festival. E apresentamos em kilapanga. É importante lembrar que antes já tínhamos a Tchinina, que cantava esta música de uma forma diferente das nossas velhas, que cantam pisando milho nas pedras e carrego esta parte com alguns fragmentos.

JA - Ekuikui tem sido bem sucedido nas recolhas que traz...

Ekuikui - São recolhas de canções da nossa terra e eu vivi estes temas. E volto a fazer mais tarde no "Omboio”, outro grande sucesso também na voz da Pérola, numa interpretação cedida pelo Duo Canhoto. E nós também gravamos aquela obra que deu sucesso à Pérola. O "Omboio Ikola” é uma recolha que o Duo Canhoto faz de quatro canções populares e seus fragmentos, que resulta numa única música que denominamos "Omboio”.

JA - Muitos jovens buscam inspiração no Duo Canhoto...

Ekuikui - Muita gente vem e diz que foi por nós que eles surgiram. O que nós fazemos é algo que vem da alma e as viagens fizeram de nós outra coisa, as mesmas pessoas mas não a mesma coisa.

JA - Quais foram as viagens mais marcantes?

Ekuikui - Todas foram especiais. Por exemplo, na primeira oportunidade que tivemos de viajar para o exterior surgiram dois convites, para a Expo’98 e para o Festival Mundial da Juventude na Costa da Caparica, em Portugal, e em meses seguidos, Julho e Agosto.  

Também marcante foi a viagem à Argélia, onde participamos no segundo Festival Pan-Africano. Foi marcante porque tivemos a oportunidade de realizar espectáculos em várias províncias e conviver com músicos e cidadãos de diversas nacionalidades africanas.  Outra foi o Quinto Festival de Cultura de Xai-xai, em Moçambique, onde fomos os convidados especiais e também participou o grande Hugh Masekela. Foi daí que surgiu o convite para a Argélia. Depois fomos para Moscovo e outros destinos: Índia, Japão, São Tomé e Príncipe, Zâmbia, Coreia do Sul, Suíça, Cuba... Até ao Cazaquistão fomos.

JA - E depois os fãs começam a perguntar para quando o disco...

Ekuikui - Exactamente. Não estava fácil.

Carlos Lopes, a mão direita do "Lado Esquerdo”

JA - Como aconteceu o encontro com o Carlos Lopes?

Ekuikui - Numa actividade na embaixada portuguesa. Antes apenas ouvíamos algumas músicas dele. Neste encontro, conversámos e ele manifestou a intenção de fazer uma música connosco. Ficamos um tempo sem contacto até que fomos convidados pelo comandante Paiva, que foi nosso chefe nas TGFA,  para fazermos alguns eventos nas cadeias do Cuanza-Sul. Foi num dos momentos de lazer em que estávamos num restaurante que Carlos Lopes nos reconheceu. Tivemos uma conversa séria em que ele perguntou pelo disco, nós respondemos que estávamos na luta. Ele não prometia tudo, mas garantia alojamento, gravação total e edição do disco em Lisboa e pediu que arranjássemos alguns apoios para as passagens. Depois tivemos de bater algumas portas. Não podemos esquecer a TAAG, a Fundanga, os nossos amigos Álvaro Macieira e o comandante Ekuikui.

JA - E deste modo temos o disco "Lado Esquerdo”...

Ekuikui - É verdade. Fizemos a gravação em Dezembro de 2004 e foi lançado no dia 17 de Julho de 2005. Não imaginam o quanto o senhor Carlos Lopes fez por nós!Não sabemos como retribuir. É uma dívida moral que não tem preço.Como retribuir, apenas cabe a Deus, porque não é fácil.

Mito – Olha, agradecemos às rádios que até hoje continuam a tocar as nossas músicas "Sara”, "Teresa”, "Não me provoques”, "Canto sofrido” e outras.Quanto aos escritores, estivemos nos lançamentos de muitas edições literárias. Temos a Chô do Guri, Roças da Costa, Luís Pimentel, Raul David. Nós temos a particularidade de tocarmos vários estilos, vamos desde a kilapanga, tchisosi, ao semba e muito mais.

Segundo álbum: "Primeiro os pentes depois os parentes”

JA - Passados dezanove anos a luta continua. Em que pé está o segundo disco?

Ekuikui: É complicado falar disso. Para lhe ser sincero já nem gostaríamos de comentar. Vê que estamos há mais de dez anos nesta segunda obra, em que tivemos o apoio de vários amigos, algumas instituições como os ministérios da Cultura e do Interior, que deram algum suporte, o que facilitou para darmos entrada no estúdio.

JA - O que aconteceu?

Ekuikui - Encontramos estes entraves:  primeiro a crise, depois a Covid-19 e agora a nova crise. Primeiro os pentes, depois os parentes. Amúsica passou para depois e os apoios ficaram adiados. O mundo de hoje exige alguma qualidade não só de captação mas também de imagem e estamos agora nesta guerra, não apenas para sair o áudio mas também os vídeos. Diferente do primeiro disco, em  que não apostamos muito na imagem,queremos reverter isso. Mas tudo passa por dinheiro.

JA - O que tem este disco?

Mito - Temos doze faixas bem gravadas, com uma diversidade musical enorme. Não tem nada a ver com o primeiro trabalho. Temos David Songo, um poeta que não é tão conhecido mas  tem uma obra muito linda, que é o "Kamutra”. Como sempre há uma boa parte de recolha do cancioneiro angolano,não da forma como devia mas à nossa maneira,porque o mundo é dinâmico e carregamos apenas alguns fragmentos de forma que este passado não morra. Há muitas parábolas e provérbios. Por exemplo, falamos do "Ngombe ya Tate” (O boi é do papá),que é a dívida dentro de nós, em muitas famílias.

Lembro que na minha banda, havia mais velhos que tinham muitas cabeças de gado, muitos dos filhos não estudavam e iam pastar o gado. Também outros que depois de uma certa idade iam para o serviço voluntário na colheita do café no  Uíge,mas para isso acontecer tinham de ter passagens. Alguns vendiam os bois com a intenção de conseguir o dinheiro para adquirir as passagens e mais tarde devolver, mas não é isso que acontecia. A vida traz  connosco outros paradigmas e aí adquirimos a  dívida grande, "Ngombe ya Tate”. E como existe aquele momento em que a saudade fala mais alto, decides esquecer esta dívida para regressar a casa. Olha que na fase da tropa havia quem entrava voluntariamente e outros que eram apanhados, mas tambémhavia aqueles que arranjavam problemas em casa e fugiam porque pensavam que quando voltassem da tropa já ninguém mais os incomodaria ou já não pagariam as dívidas. Mas isto às vezes não acontece.

Tem o "Alô Mamã”, que é a história de um indivíduo que sai da zona rural para experimentar a vida na  cidade e aqui chegado encontra grandes dificuldades. Ele não consegue enquadrar-se e diz que pretende voltar. São estas coisas do quotidiano que também apresentamos.

JA - Foram à busca do Dodó Miranda para trabalhar na produção do disco?

Ekuikui – Sim, porque ele é um amigo de carreira que carrega consigo algum conhecimento técnico e confiamos nele. Tentamos partilhar esta caminhada, agora caberá ao público aprovar este casamento.

Mito - Devemos enaltecer e engrandecer, o Dodó Miranda é uma pessoa muito humilde,porque pelo tempo que começamos o trabalho e pelas condições financeiras que apresentamos, numa altura em que não estava bem alicerçado, se fosse outra pessoa desistiria.

"Apostar na trova é uma morte social”

JA - Com estas dificuldades todas nunca sentiram a tentação de saírem da trova?

Mito - É uma pergunta muito pertinente. Olha, isto faz-se sentir no próximo disco. Muitos dirão que o Duo Canhoto desviou-se, mas não é nada disso. Temos algumas músicas que requerem mais suporte instrumental, mas a nossa base, que é o violão, a guitarra, a voz e a poesia, está lá.

Ekuikui - A verdade é que, falando sem tabus, apostar na trova aqui em Angola  é uma morte certa, socialmente ela não rende. Mas lá fora pode render, porque a proposta é para os grandes festivais internacionais.

JA - Isto está visível no primeiro disco, que é uma visão para o exterior. Este é o alvo do Duo Canhoto?

Ekuikui - Temos obras que servem para participar em qualquer festival do mundo, mas existem outros grupos e artistas nacionais também com capacidade suficiente para participar, mas isto é trabalho para alguém que deve acompanhar o calendário dos festivais que existem pelo mundo para levar artistas adequados a estes festivais.  Por exemplo, nós temos recebido convites, mas a questão do transporte inviabiliza. Temos recorrido a algumas entidades, mas infelizmente  nem sempre estão receptivas.

JA - O que falta então?

Ekuikui -Os artistas cumpriram a sua parte. Estes fazem até uma determinada parte, porque a divulgação e a promoção destes ou de outros valores culturais é uma questão do Estado, de empresários, de pessoas com visão que procuram por estes festivais. É isto que sinto que falta.

Sexta de Trova no Palácio e os seus contornos

Como nasceu o projectoSexta de Trova no Palácio?

Ekuikui - Devo dizer que os dentes falaram mais alto.Não contávamos com quem nos veio solicitar, o João Vigário. Já trabalhámos com ele noutros projectos, como a Trienal de Luanda. Tivemos sempre uma familiaridade e amizade muito próximas, e ele sempre mostrou o interesse em nos ajudar e revitalizar o movimento da trova, que está em risco de extinção. Foi assim que em Novembro do ano passado ele disse que não podia aceitar isto e que ele oferecia o espaço do Palácio de Ferro para todas as sextas-feiras garantir o palco para o Duo Canhoto e seus convidados. Quando perguntou se estávamos dispostos, nós não tínhamos como negar. Olha,eu, natural do Mungo,ter a sorte e a oportunidade de ter um espaço como este em Luanda, com garantia de palco, som, iluminação, cachet, transporte e alimentação nos dias de concertos, imagine o quanto é importante. Começamos do nada e agora cabe ao público julgar o quanto se tem feito. Devemos agradecer aos convidados que nos têm ajudado, dando esta imagem, a partir da Ângela Ferrão, as irmãs Judith e Esther, Gabriel Tchiema, Zé Fixe, Júlio Gilberto, Dodó Miranda, Dino Ferraz, Unekka e tantos outros a quem não sabemos como agradecer. Só mesmo a Deus.

JA - Este projecto dá uma grande responsabilidade ao Duo Canhoto neste processo de revitalização da trova...

Mito - A nossa ousadia e teimosia pelos anos que passaram...Não está sendo fácil, ainda existem pessoas que encaram a trova como sendo algo para fazer dormir. Com este movimento muitas pessoas estão a perceber que é um género que deve ser preservado, mantido, no sentido de que há  espiritualidade não apenas noutros estilos de música mais mediáticos. É como disse um amigo: a trova deveria ser vendida na farmácia pela sua carga terapêutica e a quem sabe tirar proveito dela. Temos um grande amigo, o kota Manuel Rui Monteiro, que disse que este tipo de música lhe dá inspiração para fazer poemas bonitos.

JA - E como olham para os novos trovadores?

Mito - Nós nascemos num movimento de trova. O que se faz hoje está muito distante, nem estou a falar da temática, que será mais política, mas falo das técnicas de composição.

Ekuikui – Há falta de trovadores natos. Penso que ainda existem, nas aldeias há coisas boas, mas hoje só se divulga aquilo que ‘está a bater’,não há aquele incentivo. Olha o Man Ré, olha para a música dele que toda a gente cantava, o Dadão que em uma ou duas semanas conquistou muita gente... Há muitos artistas anónimos e lanço aqui um alerta para que os jornalistas busquem aqueles que andam a fazer coisas.

JA - Esta pergunta poderia ser das primeiras mas deixei para o fim. Porque que não alteraram as cordas das guitarras ou porque não tocam nas adaptadas para canhotos, que surgiram depois?

Ekuikui - Porque quando aprendemos, os nossos tios diziam que não podíamos tocar e isto criou-me o desafio de que eu iria tocar. Não tínhamos guitarra para canhotos e, segundo, é que eles desafinavam a guitarra para não mexermos. Primeiro gravei a tonalidade de cada corda, depois aprendi a jogar a criptografia de como ele movimentava os dedos, as manobras que fazia e depois transportar isso para o meu interior.

Depois passei para o lado esquerdo e um dia chamei o tio e disse-lhe que eu já sabia tocar guitarra. Para comprovar deu-me a guitarra, mas eu pedi que desafinasse porque era o que ele fazia, foi assim que afinei  e toquei algumas notas. Ele foi ter com a minha mãe e disse: "Mana cuidado com este rapaz, temos aqui um génio muito estranho, ele tocou na minha guitarra sem trocar as cordas e agora se o vir a pegar nela não o incomode e vamos ver onde ele vai chegar”. E aqui estou hoje.

Mito - A vantagem de não tocarmos em viola invertida é que caso rebente uma corda podemos facilmente substituir. Ou um destro pode emprestar a sua guitarra.

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