Opinião

Uma nova geração de líderes africanos

Ismael Mateus

Jornalista

Há cerca de 15 anos emergiu no cenário africano uma chamada nova geração de líderes, a chamada geração de tecnocratas, com figuras como Uhuru Kenyatta, Macky Sall, Paul Kagame, Abiy Ahmed, João Lourenço ou Cyril Ramaphosa, entre outros.

19/02/2024  Última atualização 07H49

Dentre estes novos líderes, Macky Sall, do Senegal, era uma espécie de líder informal da nova geração de líderes africanos que se afirmavam, em oposição à geração anterior, pela aceitação dos princípios democráticos; um claro posicionamento contra os terceiros mandatos e "golpes constitucionais”, a favor da liberdade de expressão e dos processos de democratização. Esta terceira geração afirmava-se também pela luta da transformação económica com uma agenda de combate à pobreza e atraso económico.

Nas décadas de 1980 e 1990 já haviam surgido igualmente grandes expectativas em relação a então também designada Nova Geração de Líderes (a segunda), que integrava figuras como Paul Biya, Yoweri Museveni, Muammar Kaddafi, Denis Sassou Nguesso, Omar Bongo, José Eduardo dos Santos, Robert Mugabe ou Jacob Zuma, numa geração de políticos que acabaria com as alcunhas pejorativas como a geração dos "Big Men” ou "Geração de Hipopótamos”, por causa das acusações de corrupção, tentativas de perpetuação no poder e repressão aos opositores.

Informalmente liderada por Macky Sall, do Senegal, e Paul Kagame, do Rwanda, a terceira geração, chamada de "Geração dos Tecnocratas”, adoptou um discurso crítico contra as práticas anti-democráticas, optando por alterar as políticas governamentais fracassadas da geração anterior, luta contra a pobreza; combate à corrupção e a realização de processos eleitorais credíveis.

Alguns desses líderes, como Paul Kagame, do Rwanda, Umaro Sissoko Embaló, da Guiné-Bissau, ou Ali Bongo Ondimba, do Gabão, já haviam dado mostras de uma deriva, protagonizando, também eles, registos de autoritarismo e repressão contra os adversários políticos. O Senegal e o seu Presidente continuavam a ser vistos como uma realidade inspiradora para a nova política africana. A viragem de Macky Sall representou, por isso, uma enorme desilusão dos políticos africanos e, ao mesmo tempo, um forte golpe contra as teorias do surgimento de uma nova mentalidade e qualidade de políticos africanos, em ruptura às práticas dos anos 60 e 80, do século passado.

Como os "Big Men”, esta terceira geração de líderes não consegue resistir aos apetites do poder e comete os mesmos erros de se considerarem insubstituíveis. Procuram, de uma forma ou de outra, prolongar-se no poder, através de mudanças constitucionais para terceiros mandatos (como fizeram os mais velhos) ou por via da promoção de "marionetes” como seus sucessores.

Macky Sall chegou ao poder em 2012, eleito para um mandato de sete anos. A meio desse mandato, o Senegal efectuou uma revisão da Constituição que ditou a redução do mandato presidencial de sete para cinco anos. O Presidente Macky Sall já cumpriu dois mandatos desta nova Constituição e, depois de um suspense de três anos, só em finais de 2023 anunciou que não seria candidato a um terceiro mandato, numa decisão amplamente festejada nas ruas de Dakar. Ainda assim, empenhou-se em promover para as eleições de 25 de Fevereiro de 2024 a candidatura de um "delfim” político, o Primeiro-Ministro Amadou Ba, na esperança de que o futuro Presidente fosse alguém de sua inteira confiança. O resto é conhecido: a popularidade do seu candidato é baixíssima, propôs a alteração da data e está sob uma enorme pressão nacional e internacional para realizar eleições o mais rápido possível.

Aconteça o que acontecer no Senegal, Macky Sall já não será visto como a referência, o exemplo e a esperança de uma nova geração de líderes africanos.  Está hoje tão mal visto quanto os presidentes da geração dos "Big Men” que tanto criticou.

As atenções para essa liderança informal viram-se agora para João Lourenço (proclamado Campeão da União Africana para a Paz e a Reconciliação e mediador da crise RDC/Rwanda), que é cada vez mais apontado como o novo líder informal. A possibilidade de vir a assumir a presidência da União Africana em 2025 reforçará ainda mais a sua influência no continente e os sinais efectivos de mudança desta geração dos tecnocratas. Um líder informal não tem uma nomeação formal, mas tem a capacidade de exercer influência sobre os seus colegas e os demais membros sobre projectos e ideias, mentalidade e novos valores da política africana.

Curiosamente, o Presidente angolano vive um período muito similar ao do Senegal, com o tabu do terceiro mandato a ser alimentado em lume brando. É verdade que não foi feita nenhuma revisão constitucional para dar cobertura a essa eventual intenção, mas as declarações públicas a respeito criam o mesmo suspense político que vimos no Senegal, ao não rejeitar liminarmente essa possibilidade e ao deixar sempre uma possibilidade em aberto.

Internamente no partido no poder, a expectativa é alta sobre o modo como vai ser escolhido o próximo presidente do partido. Admite-se a possibilidade de regresso da bicefalia inventada por José Eduardo dos Santos para manter-se à frente do partido enquanto um delfim se apresentaria como candidato à Presidência da República. A vir a ser assim, João Lourenço deixaria a Presidência da República, mas continuaria a ser presidente do MPLA, o que, na verdade, foi tentado sem sucesso devido à situação contraditória de colocar o Chefe de Estado, Presidente de todos os angolanos, na condição de subordinado do presidente do seu partido.

Também sobre o Presidente João Lourenço reina a expectativa de que seja capaz de evitar, como tentou Macky Sall, a lógica da indicação de delfins, pondo fim a uma visão quase monárquica dos partidos políticos, como espaços de transmissão de poderes a herdeiros familiares ou de corrente política.

Muitas correntes pretendem que a escolha do futuro presidente do partido, que estatutariamente deve ser o candidato à Presidência da República no ano seguinte, seja feita num ambiente democrático de múltiplas candidaturas e voto secreto, de preferência sem a interferência do actual Presidente.

Não sendo comparável ao Senegal, Rwanda ou Guiné-Bissau, o Presidente João Lourenço também enfrenta críticas em relação à liberdade de expressão e lisura dos processos eleitorais, sendo essas também melhorias a fazer para que seja também o campeão da geração dos tecnocratas.

Os tempos futuros dirão se a nova geração de líderes africanos conseguirá afirmar-se na história como tanto prometia, há alguns anos. E também o tempo dirá qual o papel e a importância terá o Presidente João Lourenço na afirmação desta nova mentalidade de líderes africanos.

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