Entrevista

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Victor Duarte Lledo: “A luta contra a corrupção começa a ter implicações positivas na qualidade dos gastos públicos”

Pedro Narciso |

Jornalista

Na sua primeira entrevista como representante do FMI em Angola, onde desembarcou neste mês de Setembro, Victor Duarte Lledo afirmou ao Jornal de Angola que o país começa a ter uma influência positiva na atracção do interesse de investidores estrangeiros que nunca consideraram o mercado angolano, graças à luta contra corrupção. Victor Duarte Lledo acredita que Angola tem capacidade de pagar o FMI mesmo com o preço de barril de petróleo a 60 dólares.

19/09/2023  Última atualização 06H15
Victor Duarte Lledo afirma que em 2022, foram gastos em subsídios aos combustíveis 3.5% do PIB, o que representa mais de metade do total das despesas no sector social © Fotografia por: Vigas da Purificação | Edições Novembro

Apenas cinco meses depois de ter apontado, durante as reuniões de primavera, um crescimento económico de 3,5 por cento, o FMI revê agora em baixa a previsão de crescimento da economia angolana para 0,9%. O que falhou?

A dependência de Angola do petróleo torna a previsão económica particularmente desafiadora, dada a notória alta volatilidade nos preços internacionais do petróleo e na produção. A revisão em baixa da nossa previsão de crescimento económico para 2023 foi baseada na significativa contracção não antecipada no sector petrolífero observada no primeiro semestre do ano, que, por sua vez, foi resultado de uma queda inesperada nos preços do petróleo e na produção de petróleo. Esta última devido à extensão das operações de manutenção de um grande campo de petróleo.

 

Uma das recomendações do FMI ao Governo é a de rapidamente reverter a "grande derrapagem fiscal de 2022” implementando a reforma dos combustíveis.

Em 2022, foram gastos em subsídios aos combustíveis 3.5% do PIB, o que representa mais de metade do total das despesas no sector social (saúde, educação e protecção social) combinadas. Os subsídios aos combustíveis são conhecidos por serem altamente regressivos.

 

Favorecem principalmente os mais ricos, concorda?

Naturalmente. Mas  também desincentivam o uso de fonte de energias renováveis, minando os compromissos de Angola na mitigação das mudanças climáticas. Nesse contexto, recebemos com satisfação a decisão do Governo de iniciar o processo de eliminação gradual dos subsídios para a gasolina, o diesel e o combustível de iluminação em Junho deste ano…

 

E qual é a avaliação do FMI?

Vemos a continuação desse processo como fundamental para recolocar as contas fiscais no caminho necessário de consolidação fiscal, ao mesmo tempo em que se preserva o espaço fiscal necessário para aumentar os gastos nos sectores sociais e outras prioridades de desenvolvimento do Governo.

 

O que Angola deve fazer para que esse processo, digamos assim,  seja sustentado?

No entanto, para que esse processo seja sustentado, é importante que o Governo continue a implementar medidas para mitigar o impacto do aumento dos custos de vida que pode ser causado pela retirada dos subsídios aos combustíveis. Essas medidas devem ser direccionadas principalmente para a população mais vulnerável, tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas. Em particular, é importante que o progresso na melhoria do acesso oportuno às transferências de dinheiro do programa Kwenda para os mais vulneráveis continue em bom ritmo.

 

Por que o FMI acredita "na capacidade de Angola para reembolsar o Fundo” mesmo num cenário de "choque significativo e prolongado”?

O relatório analisa a capacidade de Angola de pagar ao Fundo sob diferentes cenários. Um cenário de referência, que já incorpora os últimos desenvolvimentos macroeconómicos, incluindo a recente desvalorização da taxa de câmbio. Também examina um cenário adverso em que os preços do petróleo caem drasticamente para 60 dólares por barril em 2023 e permanecem nesse nível por três anos. Isso, por sua vez, leva a uma contracção na produção de petrolífera e não petrolífera, e uma redução no fornecimento de moeda estrangeira que leva a uma forte depreciação e aceleração da inflação. A capacidade de Angola de pagar ao Fundo em todos esses cenários é avaliada como adequada, incluindo no cenário adverso, sublinha-se. Mesmo sob o cenário adverso, a capacidade projectada de pagar ao Fundo, medida pelo montante de ganhos em moeda estrangeira e receitas internas colectadas, permaneceria em níveis considerados comparáveis a outros países que também saíram de programas grandes do FMI e, o que é importante, aos níveis que Angola conseguiu administrar no passado recente.

Pode explicar melhor?

É importante notar que a capacidade de Angola de pagar ao Fundo, tanto no cenário de referência quanto no cenário adverso, depende da continuação de uma taxa de câmbio flexível, que permite que a desvalorização da taxa de câmbio actue como um amortecedor de choques, aumentando as receitas em Kwanzas denominadas em petróleo. Ambos os cenários também pressupõem que os buffers fiscais sejam restaurados por meio da implementação completa das reformas dos subsídios aos combustíveis, medidas de política fiscal para mobilizar receitas domésticas não relacionadas ao petróleo e mais progresso na agenda fiscal estrutural, incluindo reformas na gestão financeira pública e na gestão de investimentos públicos. Essas reformas fiscais são fundamentais para garantir que os recursos públicos sejam gastos de forma mais eficaz e eficiente, especialmente nos sectores sociais e de infra-estrutura crítica, e direccionados de maneira mais focalizada para aqueles que mais precisam.

 

Sendo o objectivo principal macroeconómico do FMI o controlo do deficit ou equilíbrio das contas como pensam orientar o Governo angolano em termo de prioridades?

A principal preocupação do FMI em sua orientação de políticas para todos os seus países membros, incluindo Angola, é de preservar a estabilidade macroeconómica e financeira e promover um crescimento inclusivo, resiliente e sustentável. Nesse contexto, acreditamos que nossas recomendações de políticas estão totalmente alinhadas com as prioridades de desenvolvimento de Angola.

 

O FMI estabeleceria um novo programa para ajudar o Governo a estabilizar o câmbio?

O Governo não solicitou um novo programa do FMI neste momento.

 

Por que?

Em grande parte, isso se deve ao facto de que o país é capaz de cumprir suas obrigações de financiamento externo, resumidas na sua balança de pagamentos, com recursos financeiros disponíveis, sem a necessidade de apoio financeiro por meio de um programa do FMI.

Porém,  o Fundo continua totalmente envolvido com Angola, fornecendo orientações de política económica e assistência técnica e treinamento para apoiar a implementação de políticas económicas sólidas.

 

Insisto. O Fundo estaria disponível para "discutir” um novo programa com o Governo?

O Fundo também está pronto para discutir com o Governo um novo programa, se solicitado. No entanto, com ou sem um programa do FMI, vemos a continuação de um regime de taxa de câmbio flexível como fundamental para preservar a estabilidade externa e interna de Angola, dada sua função de absorver choques, contrabalançando a queda das receitas em dólares provenientes do petróleo, como explicado acima. Como tal, nosso conselho tem sido manter o regime, ao mesmo tempo em que o apoiamos por meio de um sistema de intervenções cambiais previsíveis e bem comunicadas, que permitiriam a acumulação de reservas estrangeiras, que poderiam então ser parcialmente utilizadas em caso de choque para mitigar qualquer excesso de volatilidade ou pressão excessiva na taxa de câmbio.

 

Na ausência de exportações, veria com bons olhos a ideia de um programa de crescimento estimulado pelo consumo interno?

Para ser durável e consistente com a estabilidade macroeconómica, o crescimento precisa ser acompanhado por aumentos sustentados na produtividade e de investimentos em capital físico e humano. A experiência internacional tem mostrado que episódios de crescimento impulsionados apenas pelo consumo doméstico tendem a ser de curta duração, inflacionários e propensos a gerar desequilíbrios externos e fiscais.

 

Sei que não "existem soluções milagrosas ou atalhos quando se trata de promover a diversificação económica”, todavia acha que houve resultados ou progressos nesse sentido em Angola?

Foram feitos esforços importantes para fortalecer a governança, melhorar o ambiente de negócios e promover investimentos privados nos últimos anos…

 

… é importante que esses esforços, juntamente com políticas macroeconómicas e financeiras fortalecidas, sejam mantidos…

… exactamente.  E aprofundados para que a diversificação económica liderada pelo sector privado se torne uma realidade em Angola.

 

É daqueles que defende que o crescimento demasiado rápido não é saudável, porque torna-se difícil lidar com os fluxos financeiros?

Sou da opinião de que não é tanto o ritmo, mas os impulsionadores e beneficiários do crescimento que o tornam saudável. Um crescimento rápido, desde que seja impulsionado por uma força de trabalho mais produtiva e educada e acompanhado por sólidas reduções na pobreza e na vulnerabilidade, pode ser saudável. Experiências no Sudeste Asiático, como a Coreia do Sul e o Vietname, mostraram que isso é possível.

 

Perante a recessão da economia, quais as políticas e medidas que o Governo deve tomar para devolução do poder de compra das famílias e para restituir a confiança e incertezas crescentes sobre a criação de emprego no futuro próximo?

Uma recessão económica também traz desafios em termos de como financiar as políticas governamentais necessárias para restaurar a actividade económica, principalmente no sector privado. As políticas devem ser formuladas com o objectivo de fornecer apoio às famílias mais vulneráveis, permitindo que elas evitem a pobreza ou dela escapem, mantenham sua empregabilidade e apoiem empresas privadas viáveis para garantir que elas sejam capazes de operar, investir, preservar empregos existentes e eventualmente criar novos empregos.

 

E como  tornar tudo isso realidade?

Isso precisa ser feito sem comprometer a sustentabilidade fiscal, a adopção de medidas para reduzir o desperdício e as ineficiências tanto em OPEX quanto em CAPEX, bem como para preservar e direccionar melhor os gastos sociais, seria crítica.

 

O nível de endividamento de Angola é sustentável?

Sim. A nossa última avaliação mostra que a dívida de Angola continua sustentável.

 

Qual é a avaliação que faz ao programa angolano de Reconversão da Economia Informal?

Como um recém-chegado, ainda preciso me familiarizar com este programa. Em geral, a experiência internacional mostra que a redução do sector informal é fundamental para o desenvolvimento de empresas maiores e inovadoras, que, por sua vez, são cruciais para a criação de um grande número de empregos melhor remunerados para além de levar a um aumento importante nas receitas tributárias.

 

E quanto o ambiente de negócios, Angola tem melhorado?

Entendemos que sim.

 

Pode detalhar-nos?

Nos últimos anos, as autoridades têm realizado várias iniciativas com o objectivo de melhorar o ambiente de negócios, principalmente através do combate mais eficaz à corrupção, da adopção de um regime de taxa de câmbio flutuante, da aprovação de leis para proteger investidores e da redução da burocracia (incluindo a medida recente que dispensa a necessidade de visto para cidadãos da CPLP e do G20).

 

E porque o seu optimismo?

Acreditamos que isso desempenhará um papel importante na atracção do investimento privado e na criação de empregos, na medida em que reduz o custo de fazer negócios em Angola enfrentando a escassez de recursos especializados em várias áreas. Para além disso,  em muito facilitará a promoção do turismo no país.

 

A diversificação é também acabar com a burocracia?

Com certeza. Reduzir os obstáculos burocráticos tem se mostrado uma maneira relativamente fácil de garantir a criação e o desenvolvimento de empresas em todos os sectores da economia. Em Angola, essa deveria ser uma das prioridades.

 

E o combate a corrupção do Governo angolano tem tido alguma influência positiva na economia ou nem por isso?

Sim. Ele sinaliza o compromisso do Governo em começar a abordar as fraquezas na governança e está a começar a ter uma influência positiva na atracção do interesse de investidores estrangeiros que nunca consideraram o mercado de Angola no passado. Importante destacar que também está a começar a ter implicações positivas na qualidade dos gastos públicos…

 

…com aumento importante nas alocações orçamentárias em algumas rubricas sociais…

…O que é crucial para alcançar os objectivos de desenvolvimento sustentável de Angola.

 

Que benefícios trouxe para o país, o facto de uma grande parte das transacções em moedas estrangeiras ter migrado para uma plataforma pública, a Bloomberg, permitindo que sejam mais visíveis aos participantes do mercado?

Uma taxa de câmbio que sinaliza melhor a disponibilidade de moeda estrangeira no país e que é menos propensa a gerar desequilíbrios externos, juntamente com uma distribuição mais transparente e equitativa de moeda estrangeira entre os participantes do mercado.

 

Como avalia as relações de Angola com FMI?

A relação de Angola com o Fundo Monetário Internacional (FMI) continua próxima e construtiva, sempre marcada por um diálogo aberto e sincero entre parceiros, com o objectivo comum de preservar a estabilidade macroeconómica de Angola e suas prioridades de desenvolvimento.

 

E como analisa a frase da  ministra das Finanças há anos:  "Sem o apoio do FMI, o país dificilmente sobreviverá”.

O apoio do FMI desempenhou um papel importante na mitigação das necessidades de financiamento a curto prazo, essenciais para manter os compromissos orçamentários e externos de Angola. No entanto, foram, em última análise, as políticas decisivas adoptadas pelo Governo que o levaram a mitigar com sucesso os desequilíbrios que inicialmente exigiam o apoio do FMI.


Perfil

O representante que gosta de reggae e de caminhar Victor Duarte Lledo, o novo representante do FMI em Angola, dispensa apresentações no mundo onde funciona há 20 anos

No Fundo, entre 2013 e 2019, exerceu várias tarefas, entre as quais  a de especialista em Política Fiscal e Provedor de Desenvolvimento de Capacidade (CD) no Departamento de Assuntos Fiscais. Além disso, desempenhou a função de economista da instituição para a Espanha e o Equador. E supervisionou questões fiscais nos Estados Unidos e na Índia.

 Lledo desempenhou ainda as funções de economista de Estudos Regionais no Departamento Africano, de supervisor financeiro do Brasil e da Turquia, de coordenador das actualizações das regras fiscais do FMI e de co-coordenador das Segundas Gerações de Regras Fiscais,

 Nascido em Recife (Brasil), o nosso interlocutor é um Senhor de canudos (quatro): fez três mestrados (o primeiro em Ciências Económicas pela Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getulio Vargas, Brasil, o segundo em Ciências Económicas pela Universidade de Brasília (UnB). O terceiro, também em Ciências Económicas, pela Universidade de Wisconsin-Madison. E o doutoramento em Desenvolvimento na mesma universidade.

Casado, foi também consultor no Instituto de Estudos do Desenvolvimento, da Universidade de Sussex.

Não esconde, porém, o seu fascínio por África, apesar das suas duas passagens intensas pelo continente africano terem  sido por razões profissionais: chefe-adjunto de Missão de Facto para Rwanda e Representante residente em Moçambique.

Amante de cinema, tem preferência pelos actores Robert de Niro e Al Pacino.

Em casa, a música de Bob Marley, Caetano Veloso e Maria Bethânea integram a banda sonora oficial.

Nos tempos livres, gosta de caminhar e de  leitura.  Guimarães Rosa e Machado de Assis são os seus escritores preferidos.

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