Entrevista

Entrevista

“Candidatura de Angola ao cargo de presidente da UA será formalizada no final do ano”

César Esteves

Jornalista

Angola vai formalizar, no final deste ano, junto da Comissão da União Africana, a candidatura à presidência rotativa daquela organização continental. Na eventualidade de ser eleito, o país vai presidir, pela primeira vez, os destinos daquele órgão máximo da organização. Antes disso, Angola concorre a uma vaga como membro do Conselho de Paz e Segurança da União Africana, para o biénio 2024-2025, cujas eleições acontecem já na próxima Cimeira dos Chefes de Estado e de Governo da União Africana, prevista para os dias 17 e 18 de Fevereiro deste ano.

09/01/2024  Última atualização 07H22
Miguel Domingos Bembe, embaixador de Angola na Etiópia e representante permanente junto da União Africana © Fotografia por: Contreiras Pipa | Edicões Novembro

Na entrevista ao Jornal de Angola, o embaixador de Angola na Etiópia e representante Permanente junto da União Africana (UA), Miguel Domingos Bembe, considera fundamental a presença de Angola naquele órgão estratégico da União Africana em matéria de Paz e Segurança

Que balanço faz das relações entre Angola e Etiópia?
Como tenho vindo a sublinhar e reitero, as relações entre Angola e a Etiópia são excelentes nos domínios bilateral e multilateral. Os laços de amizade e de cooperação entre ambos os países são históricos e permanentes. Constituem um testemunho dos valores partilhados, das aspirações e dos compromissos colectivos, visando o progresso e o desenvolvimento sustentável, sempre na perspectiva da defesa do Pan-africanismo e do multilateralismo, para materializar a Agenda 2063 da União Africana (UA), denominada "A África que queremos”.

Já estão identificadas as áreas em que os dois países pensam alargar a cooperação bilateral?
As áreas de interesse comum estão identificadas e está-se a trabalhar, de forma progressiva, para a sua efectivação. Ambos os países apresentam um potencial económico que pode servir como força motriz para estimular uma cooperação bilateral mais abrangente com oportunidades de investimentos e parcerias em vários sectores, nomeadamente agrícola, indústria de agro-processamento e farmacêutica, desenvolvimento de parques industriais, indústria de oleodutos e de aviação. Reafirmo, por isso, a determinação e engajamento para o fortalecimento e a expansão das relações de cooperação bilateral, contribuindo no processo de desenvolvimento dos dois países.

Em que pé está o processo para a assinatura do Acordo Geral de Cooperação nos domínios económico, técnico, científico e cultural, acordo sobre a isenção de vistos em passaportes diplomáticos e de serviço e o memorando de entendimento sobre o estabelecimento do mecanismo de consultas políticas?
À semelhança dos outros domínios de actividade, a diplomacia também não escapa à dimensão processual e normativa. As bases jurídicas são, absolutamente, essenciais para regular e promover uma cooperação saudável entre os Estados e povos, na perspectiva de garantir confiança e prevenir eventuais conflitos inerentes às relações humanas/estaduais. O processo de dinamização e consolidação das relações de cooperação entre Angola e a Etiópia requer a negociação e assinatura de instrumentos jurídicos, que deverão facilitar o seu alargamento nas áreas específicas de interesse sectorial, nomeadamente Justiça e Direitos Humanos, Petróleo e Gás, Exploração Mineira, Informação e Telecomunicações, Turismo, Serviços Financeiros, Reciclagem dos resíduos sólidos, Ensino Superior, Formação técnico-profissional e Aeronáutica e Artes e Cultura (interacção e intercâmbio artístico-cultural). Trata-se de um processo que leva o seu tempo!

O que se pretende alcançar com a reavaliação dos dois únicos instrumentos jurídicos bilaterais existentes entre os dois países, isto é, nos domínios dos Serviços Aéreos, iniciados em 1977, e do Comércio, desde 1981?
A reavaliação e revisão destes dois instrumentos jurídicos é absolutamente inadiável, tendo em conta a sua relevância na implementação das orientações estratégicas de Sua Excelência o Presidente da República, João Manuel Gonçalves Lourenço, relativas à diplomacia económico-comercial em Angola, que se destina, fundamentalmente, à revitalização das actividades político-diplomáticas nacionais, através da adopção de uma nova cultura e abordagem institucional orientada para a materialização dos objectivos económicos e comerciais do relacionamento bilateral e multilateral, a promoção da imagem do país no exterior, a exportação de bens e serviços e a captação de investimento directo, em alinhamento com os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações Unidas e a Zona de Comércio Livre Continental Africana (ZCLCA), um dos projectos emblemáticos da Agenda 2063 da União Africana. De igual modo, a revisão destes dois instrumentos permitirá aos dois países voltarem a exportar os seus produtos para os respectivos mercados.

Isso já acontecia nos termos do Acordo Comercial sobre Trocas de Produtos e Mercados, de 1981...
Sim. Recordo que, nos termos do Acordo Comercial sobre Trocas de Produtos e Mercadorias de 1981, a Etiópia exportava carne, sementes oleaginosas e vinho para Angola, enquanto as exportações angolanas para o mercado etíope incluíam produtos petrolíferos, petróleo bruto, papel de alumínio, mármore, farinha e óleo de peixe, entre outros.
Os dois países tinham estabelecido, também, uma Comissão Mista dos Ministérios do Comércio Externo para acompanhar a implementação do referido acordo. Importa redinamizar este importante processo.

Já começou a trabalhar na materialização das novas linhas estratégicas da diplomacia angolana, focadas sobretudo na promoção da imagem do país e atracção de investimentos?
Naturalmente. Trata-se de um processo contínuo e multissectorial. A sua concretização passa pelos pressupostos já acima elencados, com o envolvimento dos diversos responsáveis dos departamentos ministeriais e instituições nacionais afins, que concorrem, directa ou indirectamente, para a sua materialização. Importa realçar que, no âmbito das comemorações do 48º aniversário da Independência Nacional, a Missão Diplomática de Angola na Etiópia realizou, no dia 27 de Novembro, numa conhecida unidade hoteleira de Adis Abeba, um Workshop Interactivo sobre as oportunidades de investimento em Angola, com o objectivo de promover as potencialidades nacionais nos diversos domínios e transmitir a imagem de um bom país para viver, desfrutar, investir e fazer negócios.

Que resultados foram já alcançados no quadro desta iniciativa?
Com este evento, marcado pela participação de investidores, empresários e representantes de câmaras de comércio e indústria da Etiópia, Djibouti e Eritreia, bem como representantes comerciais das Missões Diplomáticas baseadas na terceira maior cidade diplomática do mundo, Adis Abeba, deu-se um importante passo no sentido de reforçar a cooperação económica entre Angola e vários países africanos, asiáticos, americanos e europeus.
Portanto, em termos de cooperação bilateral, está tudo em aberto e há grandes perspectivas de uma longa caminhada em comum, tendo como alvos prioritários a Etiópia, o Djibouti e a Eritreia.

Qual é o quadro actual da balança comercial entre Angola e Etiópia?
Não há dados exactos sobre esta matéria, que depende de um trabalho conjunto em perspectiva.

Quantos etíopes investem em Angola e quantos angolanos o fazem na Etiópia?
Estamos conscientes de que devemos trabalhar cada vez mais para estimular a aposta dos investidores angolanos no mercado etíope, em particular, e africano, em geral. Já existem iniciativas neste sentido. É o exemplo do presidente do conselho de administração do grupo empresarial angolano PITABEL e promotor da Universidade Óscar Ribas, senhor Abel Segunda, que, em Novembro passado, desenvolveu, em Addis Abeba, contactos de prospecção e de captação de oportunidades de negócio e parcerias de cooperação com empresários locais nos diversos domínios.
No sentido inverso, temos conhecimento da construção de uma clínica, "Grace Medical Center”, na zona do Morro Bento, em Luanda, em fase de inauguração, num investimento de cerca de um milhão de dólares. Existem, também, etíopes a investirem nos domínios Imobiliário e da Restauração.

Que outros sectores mais são explorados na relação económica entre Angola e Etiópia?
Tal como afirmei na resposta anterior, os etíopes tendem a apostar, sobretudo, nos sectores da Aviação Civil, Saúde, Imobiliário e da Restauração, estando, também, fortemente interessados no Comércio, Turismo, Ensino Superior e Formação técnico-profissional e na Indústria Mineira angolana.

A Etiópia é um país cuja espinha dorsal económica assenta, essencialmente, na agricultura, sendo, por isso, um dos maiores produtores de café do mundo. Angola pensa em beber dessa experiência?
Sim, é uma das áreas-alvo, no domínio da Agricultura e Agro-industrial, especialmente, a promoção de intercâmbio de experiências na área da indústria e tecnologia e do agro-processamento, no âmbito do projecto do Acordo Geral de Cooperação nos domínios Económico, Técnico, Científico e Cultural que os Governos de Angola e da Etiópia pretendem assinar. A Etiópia é um dos maiores produtores mundiais de café, a par do Brasil, Vietname, Colômbia e Indonésia, que ocupam os primeiros lugares do ranking. Embora a origem do café não seja, claramente, conhecida, as principais lendas e relatos sobre este produto remontam aos anos 575 a 850 DC, na região onde hoje é a Etiópia.

Como é que os dois países podem tirar proveito de valores comuns como a defesa da democracia, combate à corrupção, resolução pacífica de conflitos para o fortalecimento das relações bilaterais?
As respostas às perguntas anteriores evidenciam, claramente, a minha visão sobre a pertinência de ampliar e diversificar as relações entre Angola e a Etiópia, além da cooperação diplomática, procurando corresponder ao actual desenvolvimento económico e à influência estratégica de ambos os países.
É crucial explorar, também, as oportunidades da sua localização geopolítica: Angola, no cruzamento entre as regiões Austral e Central do continente africano, e a Etiópia no cruzamento entre África, Médio Oriente e Ásia.
Os dois países tendem a assumir o papel de Estado-directores nas respectivas sub-regiões, apesar dos desafios de ausência de litoral para a Etiópia exigirem a manutenção de diálogo e a cooperação com os respectivos vizinhos.

E o que tem a dizer sobre a cooperação no domínio da Paz e Segurança?
Angola e Etiópia deverão avaliar, também, a oportunidade de cooperar no domínio da Paz e  Segurança, designadamente em Operações de Apoio à Paz da União Africana e não só, uma área na qual este país possui grande experiência. Angola pode partilhar, também, com a Etiópia, a sua experiência no âmbito da promoção da cultura de paz e não-violência, que levou a institucionalização do Fórum Pan-Africano para a Cultura de Paz e Não-Violência - "Bienal de Luanda”, numa iniciativa conjunta entre o Governo de Angola, UA e UNESCO.
Por último, as ameaças que resultam do terrorismo e extremismo violento e das mudanças inconstitucionais de Governo em África são desafios à segurança e estabilidade, que exigem acções concertadas entre os dois Estados, no âmbito dos mecanismos nacionais e continentais.

Como está a decorrer o processo de candidatura de Angola à presidência da União Africana para 2025?
Quanto à candidatura do nosso país para presidente em exercício da União Africana em 2025, devo realçar que, no mesmo ano, os angolanos comemorarão o 50º aniversário da sua Independência. Angola apresenta-se como candidata da Região da África Austral, que ao abrigo do princípio da rotatividade compete indicar o país que presidirá a UA em 2025.
Com efeito, a candidatura de Angola foi endossada, de forma unânime, pela Decisão 28 da 43ª sessão ordinária da Cimeira dos Chefes de Estado e de Governo da SADC, realizada no dia 17 de Agosto de 2023, em Luanda, ratificando, assim, a recomendação da 25ª Reunião do Comité Ministerial do Órgão de Cooperação nas Áreas de Política, Defesa e Segurança desta mesma organização, ocorrida em Julho do mesmo ano, em Windhoek, República da Namíbia.

Quando é que a candidatura vai ser, efectivamente, formalizada?
Nos termos dos procedimentos, a candidatura de Angola ao cargo de presidente em exercício da UA só será formalizada junto da Comissão da UA no final de 2024. Neste momento, toda a atenção é dada especialmente à candidatura do nosso país como membro do Conselho de Paz e Segurança (CPS) da União Africana para o biénio 2024-2025, cuja eleição está para breve.

Na eventualidade de Angola vir a ocupar a presidência da União Africana, será a primeira vez que o país vai  assumir este órgão máximo da União Africana?
Sem dúvida. Será algo histórico, pela primeira vez Angola presidirá os destinos da organização continental africana.

Que benefícios pode tirar ao chegar a esta posição?
São vários os benefícios e, dependerão, em parte, da agenda a ser adoptada, consensualmente, pela Região Austral e pela própria União Africana, em alinhamento com o tema do ano de 2025.
A presidência da UA vai dar maior visibilidade ao país e ao Chefe de Estado, Sua Excelência João Manuel Gonçalves Lourenço, enquanto presidente em exercício da organização continental, tendo em atenção que interagirá com os seus pares da União Europeia, por exemplo, e enquanto interlocutor principal da UA, em especial em matérias de paz e segurança, de cooperação no âmbito de todas as parcerias existentes entre a UA e os vários países e organizações, cujas reuniões tenham lugar no ano em que a presidência recair para Angola. Naturalmente que Angola deverá encontrar os equilíbrios indispensáveis para projectar a agenda nacional, sub-regional e continental, em consonância com os princípios do pan-africanismo e do renascimento africano.

Em que pé está o processo de candidatura para o Conselho de Paz e Segurança da União Africana?
Sobre a candidatura de Angola como membro do Conselho de Paz e Segurança (CPS) da União Africana para o biénio 2024-2025, aproveito para informar que já foi submetida ao Escritório do Conselho Jurídico da Comissão da União Africana, no dia 21 de Setembro de 2023. A par disso, a Embaixada da Namíbia na Etiópia, na qualidade de decana da região da África Austral, notificou a Comissão da UA sobre a candidatura de Angola e do Botswana que representarão esta importante região.

 O que leva o país a candidatar-se a membro do Conselho de Paz e Segurança da União Africana?
Esta candidatura decorre da intenção soberana do nosso país em ocupar um dos lugares disponíveis para a Região da África Austral no referido período. Angola tem procurado exercer um papel diplomático cada vez mais assertivo e dinâmico nas organizações regionais, continental e internacionais, com o objectivo de contribuir para os processos de consolidação da paz, estabilidade, segurança e desenvolvimento sustentável em África, tendo em conta a sua experiência em matéria de prevenção, gestão e resolução pacífica de conflitos.

Quais são as chances de o país vir a ocupar esta vaga?
As mesmas que conduziram a apresentação da referida candidatura. Trata-se, por isso, de um assunto definitivamente pacífico. A ocupação deste lugar resulta do princípio da rotatividade que se observa nos vários órgãos da União Africana. No biénio 2024-2025, Angola e o Botswana terão a oportunidade e a honra de representar a Região da África Austral.

Quando é que decorrem as eleições?
As eleições ocorrerão durante a 44ª Sessão Ordinária do Conselho Executivo e a 37ª Sessão Ordinária da Assembleia dos Chefes de Estado e de Governo da União Africana, previstas para os dias 17 e 18 de Fevereiro deste ano.

Esta vai ser a quarta vez que Angola será eleita para este órgão da União Africana?
Afirmativo. Desde a operacionalização do Conselho de Paz e Segurança da União Africana, em 2004, Angola já foi eleita três vezes, sendo a primeira por um mandato de três anos (2007-2010) e as restantes por dois anos (2012-2014 e 2018-2020). Importa referir que o Conselho de Paz e Segurança da União Africana é um órgão decisório permanente para a prevenção, gestão e resolução de conflitos em África. Torna-se, por isso, fundamental que Angola esteja representada num dos órgãos mais estratégicos da União Africana que actua como uma estrutura de segurança colectiva e de aviso prévio para facilitar, em tempo oportuno, uma resposta eficaz a situações de conflito e de crise no continente.

Já não é tempo de Angola projectar uma candidatura ao cargo de presidente da Comissão da União Africana?
Não compete ao embaixador responder a esta questão. 

Como é que a União Africana olha para as reformas em curso em Angola, com destaque para o combate à corrupção e à impunidade?
Com bons olhos. Aliás, Sua Excelência João Manuel Gonçalves Lourenço adoptou o combate à corrupção, à impunidade, ao nepotismo e à bajulação como o baluarte da sua governação. É sintomático que o actual vice-presidente do Conselho Consultivo da União Africana contra a Corrupção (AUABC) seja um angolano, o Dr. Pascoal António Joaquim, antigo Procurador Geral Adjunto da República.

Que repercussão a recepção do Presidente João Lourenço na Casa Branca teve junto da União Africana? 
Muito positiva. Angola é um país soberano e bastante respeitado no concerto das nações e que está a colocar em prática a diplomacia económica, através da criação e reforço de parcerias com países e organizações internacionais de interesse estratégico.
A visita de Sua Excelência o Presidente da República, João Manuel Gonçalves Lourenço, aos Estados Unidos da América, e os assuntos de carácter económico e de segurança abordados com o Presidente Joseph Robinette Biden, Jr., não são apenas de interesse bilateral, mas abrangem o continente africano com repercussão internacional. As perspectivas de operacionalização plena do Corredor do Lobito aumentarão as possibilidades de exportação para Angola, Zâmbia e República Democrática do Congo, impulsionará a circulação regional de mercadorias e promoverá a mobilidade dos cidadãos até ao Índico.

Até 2020, Angola tinha uma presença muito insignificante de quadros nos vários órgãos da União Africana, não obstante ser um dos maiores contribuintes. Qual é o quadro actual?
O quadro continua incipiente. Angola precisa evoluir neste sentido. Estamos a trabalhar com a área competente da Comissão da União Africana para vermos as possibilidades de inversão do quadro actual. Angola pode melhorar o seu nível de representatividade em termos de quadros na UA, uma vez que decorre o processo de reforma institucional na organização, cujo relatório será apresentado na Conferência dos Chefes de Estado e de Governo de Fevereiro de 2024, pelo Presidente do Rwanda, Sua Excelência Paul Kagame, enquanto Campeão da UA para as Reformas Institucionais.

O que está na base deste desfasamento?
São muitos factores. A nível nacional, é imperioso articular ideias e traçar estratégias que devem envolver todos os sectores da sociedade angolana. Precisamos de disseminar mais as oportunidades de emprego, bolsas de estudo e estágios curriculares/profissionais que a organização continental disponibiliza, preenchidas por via de concursos, que vão para além de cargos políticos. A União Africana precisa de professores, intérpretes/tradudores, especialistas em Informática e Telecomunicações, electricistas, auxiliares de limpeza, pessoal de segurança, motoristas, etc. São muitas oportunidades de emprego que Angola deverá saber explorar.

Tem havido interesse de alguns Estados africanos em beber da experiência de Angola em matéria de resolução pacífica de conflitos?
Com certeza. A título de exemplo, menciono a visita que Sua Excelência a Presidente da Etiópia, Sahle-Work Zewde, efectuou, em Dezembro de 2021, a Angola, para abordar com o seu homólogo, João Manuel Gonçalves Lourenço, questões ligadas ao conflito na região etíope do Tigray.
Angola apoiou e congratulou-se com os esforços realizados por todas as partes envolvidas e que permitiram uma solução negociada para o fim do conflito armado em Tigray e ao estabelecimento da paz na Etiópia, no âmbito do Acordo de Paz entre o Governo etíope e a Frente de Libertação do Povo Tigray, assinado no dia 2 de Novembro de 2022, em Pretória, África do Sul, com mediação da UA.

Pode apontar outros exemplos?
Outro exemplo consubstancia-se no facto da 16.ª Sessão Extraordinária da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da União Africana (UA) sobre Terrorismo e Mudanças Inconstitucionais de Governo em África, realizada em Malabo, República da Guiné Equatorial, aos 28 de Maio de 2022, ter designado Sua Excelência o Presidente da República João Manuel Gonçalves Lourenço, como Campeão da UA para a Paz e Reconciliação em África e como mediador do clima de tensão entre a República Democrática do Congo (RDC) e a República do Rwanda.

Que papel a União Africana pode desempenhar para acelerar a efectivação da  Zona de Comércio Livre Continental Africana?
A Zona de Comércio Livre Continental Africana (ZCLCA) é um dos projectos mais emblemáticos da União Africana. Representa uma oportunidade única para os Estados africanos impulsionarem o comércio intra-africano e a inclusão económica, aumentarem o valor acrescentado e adoptarem reformas para um incremento do seu acesso ao mercado de exportação de África.

Trata-se de um acordo de grande dimensão?
A ZCLCA é um acordo comercial de grande dimensão, que visa reunir os 55 Estados membros da União Africana, cobrindo um mercado de mais de 1,3 mil milhões de pessoas, e abrange áreas críticas da economia africana, tais como o comércio digital e a protecção de investimentos, entre outras. Todavia, tudo depende da vontade soberana de cada Estado em ratificar o acordo que cria este mega projecto, cuja operacionalização teve início a 1 de Janeiro de 2021. É fundamental o alinhamento da agenda política nacional de cada Estado com as metas definidas pela ZCLCA.

Angola tem uma participação activa neste processo?
Sim, Angola já ratificou e depositou em Novembro de 2020 os instrumentos jurídicos exigidos, contribuindo, assim, para a entrada em vigor do Acordo, em Janeiro de 2021. Por outro lado, tem desenvolvido esforços para melhorar o ambiente de negócios no país e no continente, reforçando a indústria e incentivando o aumento da produção nacional, através de vários planos estratégicos, nomeadamente, o PLANAGRÃO 2023-2027, com prioridade para o trigo, arroz, soja e milho, o PLANAPESCAS 2023-2027, que visa fomentar a actividade pesqueira empresarial, aumentar a produção e transformação do pescado e do sal e o PLANAPECUÁRIA 2023-2025, que procura aumentar a produção de carne, leite e ovos. Estes planos nacionais, entre outros, visam contribuir para a soberania alimentar, assegurar a auto-suficiência alimentar e nutricional do país, estando alinhados com o Plano de Desenvolvimento Nacional (PDN 2023-2027) e, sobretudo, a Estratégia de Desenvolvimento de Longo Prazo - Angola 2050 (ELP Angola 2050) que reflecte a visão futura de Angola. Neste contexto, procura domesticar e apropriar-se dos compromissos internacionais assumidos por Angola, no âmbito da Agenda 2030 das Nações Unidas e da Agenda 2063 da União Africana.

A existência de alguns focos de instabilidade em África dá a impressão de não existir uma Arquitectura de Paz e Segurança virada para a resolução destes conflitos. O que tem a dizer?
África já possui duas arquitecturas continentais. A questão é a dificuldade que apresentam sempre que são chamadas a responder aos objectivos que presidiram à sua criação. Refiro-me à Arquitectura de Paz e Segurança Africana (APSA), criada em 2002, enquanto resposta estrutural a longo prazo aos desafios para a paz e segurança no continente africano. Foi estabelecida para promover os princípios fundamentais da UA sobre a paz, segurança e estabilidade em África. Trata-se de uma estrutura operacional para a implementação efectiva das decisões tomadas sobre prevenção de conflitos, manutenção da paz, operações de apoio à paz, construção da paz e reconstrução pós-conflito. O seu mandato reflecte a mudança da segurança centrada no Estado para a segurança humana, amplamente aceite a nível continental.

E a Arquitectura Africana de Governação?
A Arquitectura Africana de Governação da União apresenta o quadro para tratar da questão do pluralismo. Considera os valores e práticas democráticas como normas, apresentando o veículo para a promoção do pluralismo político no continente. A consolidação da cultura democrática garantirá a tolerância religiosa, cuja ausência tende a ser uma fonte de conflito e insegurança em alguns Estados-membros.

Os conflitos no Sudão e Líbia estão a conhecer resoluções fora do continente africano. Em que medida isso pode manchar a imagem e a credibilidade da União Africana?
Em nenhuma circunstância e perspectiva. O processo de mediação liderado por entidades externas, no caso do Sudão, pelo Qatar, inclui altos funcionários da Comissão da União Africana (CUA), com os quais coordena as tentativas de estratégias e acções, já consignadas no Roteiro da UA que visa contribuir para a resolução do conflito naquele país.

E no caso da Líbia?
No caso da Líbia, existe uma intervenção de uma Missão da ONU, associada a um enviado especial do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, que trabalha estreitamente com a UA. O exercício envolve esforços nacionais, regionais e internacionais, para intermediar acordos provisórios de partilha de poder, governo de transição e parâmetros constitucionais, para a realização de eleições. Como vê, a União Africana é um dos actores activos na procura de soluções pacíficas e inclusivas para os conflitos que ainda persistem no Continente e no mundo.

Há sectores de opinião que dizem que África não fala a uma só voz nos fóruns internacionais em prol do continente, com realce para o Conselho de Segurança da ONU. Qual é o seu entendimento?
Trata-se de uma visão que discordo, mas respeito. Em primeiro lugar, as candidaturas dos representantes africanos no Conselho de Segurança (CS) da ONU são endossadas pelo Comité Ministerial das Candidaturas Africanas no Sistema Internacional, gerido ao nível da UA e do qual Angola fez parte nos últimos seis anos. Em segundo lugar, existe um Comité dos Dez Chefes de Estado da União Africana sobre a Reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas (C10), actualmente presidido por Sua Excelência Julius Maada Wonie Bio, Presidente da República da Serra Leoa, e integrado pela Argélia, Congo, Guiné Equatorial, Líbia, Namíbia, Quénia, Senegal, Serra Leoa, Uganda e Zâmbia, visando criar uma posição comum de África sobre o processo de reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Qual é o trabalho deste comité?
A inclusão de alguns Estados Africanos como membros permanentes deste importante órgão da ONU é um dos objectivos do trabalho deste Comité, para exteriorizar, na primeira pessoa, tudo o que converge para a resolução dos conflitos no continente. Importa destacar, igualmente, o Seminário Anual de Alto Nível sobre a Promoção da Paz e Segurança em África, conhecido por "Processo de Oran”, que se realiza na República Argelina Democrática e Popular, visando articular a parceria entre a ONU e a UA, em colaboração com o Departamento para os Assuntos Políticos, Paz e Segurança da UA, no sentido de garantir a concertação de posições comuns a serem defendidas pelos três países africanos (A3) membros não-permanentes do Conselho de Segurança da ONU.

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