Entrevista

“Conseguimos a paz! Agora há que construir nova mentalidade capaz de aceitar a diferença”

Jaquelino Figueiredo | Mbanza Kongo

Jornalista

O bispo da Diocese de Mbanza Kongo, Dom Vicente Carlos Kiaziku, considera que a verdadeira paz não acontece só com a ausência do conflito armado. Em entrevista ao Jornal de Angola, a propósito da 3ª Bienal de Luanda para a cultura de paz, realizada recentemente, o bispo defende um investimento na construção de mentalidades abertas, de diálogo, de justiça, capazes de aceitar as diferenças, sejam políticas, culturais ou outras, que conduzam à construção de uma sociedade de paz

04/12/2023  Última atualização 09H00
© Fotografia por: Garcia Mayatoko | Edições Novembro | Mbanza Kongo
Senhor bispo, que exemplo Angola pode dar ao mundo quanto à questão da paz, com a realização da 3ª edição da Bienal de Luanda?

Antes de tudo, gostaria de felicitar aqueles que tomaram esta iniciativa de organizar a Bienal de Luanda a favor de uma cultura de paz, não só para África, naturalmente, mas de modo particular, para África, porque aqui não temos poucas guerras. Muitas estão a se desenrolar no silêncio, sobretudo, conflitos étnicos e de outras origens, estão presentes no nosso continente. Então louvo esta iniciativa e agradeço, até, por aqueles que organizaram esta bienal. Angola pode transmitir a sua experiência de como encontrar entendimento entre os filhos da mesma pátria desavindos.

 
Acha que a paz no nosso país ainda é um desafio?

Claramente que sim, a paz é um desafio. É um desafio que toda a humanidade tem, mas nós estamos preocupados agora no nosso continente porque, de facto, a maioria das guerras ou guerrilhas desenrolam-se ainda no continente africano. Angola, também, teve os seus momentos de guerra contra o colonialismo português e, depois, a nossa guerra fratricida que, também, fez muitas vítimas e, sobretudo, criou-nos uma mentalidade de guerra, que agora é preciso desmantelar para construirmos a verdadeira paz.

 
Ou seja, a guerra não termina com o calar das armas?

Sabemos que a guerra não acaba com o fim de um conflito armado. É verdade que o conflito armado constitui uma forma mais cruel, não podemos negar, de uma guerra. Mas a verdadeira paz não acontece só com a ausência do conflito armado. Portanto, graças a Deus, graças aos homens de boa vontade, conseguimos a paz. Mas agora há que construir mentalidades abertas, de paz, de diálogo,  de justiça. Mentalidades que sejam capazes de aceitar a diferença. Diferenças políticas, culturais, etc. etc. Uma mentalidade que deve estar mesmo em acção para construirmos uma sociedade de paz.

 
E como é que nós  estamos em Angola?

Vários passos foram dados, não podemos negar. Mas outros passos terão que ser dados também, para que a verdadeira paz possa acontecer no nosso país. Por exemplo, já o Papa Paulo VI dizia que "O desenvolvimento é o novo nome da paz”. Portanto, o progresso e o desenvolvimento o que significam? Significam que a miséria e a pobreza podem sempre provocar outras guerras, sobretudo, a falta de justiça. Alguns passos, dizia eu, demos e já podemos apresentar esses passos ao mundo, embora, não definitivos.


Quais são esses passos que Angola deu rumo a uma verdadeira paz?

Aquando dos Acordos de Paz, num momento muito crítico da nossa sociedade, homens de boa vontade e, porque não citar o então Senhor Presidente da República, Sua Excelência José Eduardo dos Santos, que foi exemplar ao não só tolerar, mas a aceitar a integração de elementos, concretamente falando da UNITA e também, alguns da FLEC, numa outra situação, para integrarem as instituições do Estado. Porque, naquele momento, digamos assim, o exército angolano estava em condições de eliminar outros membros do partido UNITA e não foram eliminados. Isto devemos reconhecer que houve uma atitude muito humana, altamente humana, da parte do falecido Presidente José Eduardo dos Santos, que fez com que, de facto, a guerra começasse a fazer parte do passado e nós começássemos a construir uma nova sociedade. Foi o início de um processo, mas há que valorizar este início e, hoje, o processo está, graças a Deus, indo para frente. Está indo, devagar, sim, mas não parou. E para nós, é uma grande satisfação constatar isto. Então, como todo o processo, tem os seus pontos altos e baixos às vezes há tensões, por exemplo, aquando das últimas eleições, tivemos momentos de tensão muito fortes quando se anunciaram os resultados mas, graças a Deus, tudo correu bem. Houve compreensão, tolerância e o bom senso acabou por prevalecer.

 
Como caracteriza este processo que tem os seus pontos altos e baixos?

 É um processo à nossa forma. Porque se compararmos com a situação da África do Sul, onde se criou uma Comissão da Verdade, etc., aqui isto não foi feito, mas tem-se caminhado. Então, o que é que vamos apresentar ao mundo? Esses pequenos passos que demos. Hoje, já não é a bala ou o tiro que está na decisão de tudo, mas está! Mesmo que deficiente, o diálogo, está também no apelo a várias forças da sociedade para que lutem pela paz. Mesmo a Igreja, na sua função e missão de anunciar o Evangelho tem colaborado, sobremaneira, para a paz. Porque os espíritos feridos por longos anos de guerra já recebem aquela palavra de esperança, de consolação e pacificação. Acreditamos que a palavra de Deus, pela sua qualidade, de uma palavra de salvação, faz com que algumas pessoas se convirtam, sejam capazes de perdoar do fundo do coração.

 
Então, já podemos esquecer o passado?

Não digo esquecer, porque não é fácil. Se calhar também, não é possível. Mas a capacidade de perdoar que vem do fundo de um coração que reconhece o mal e sabe que uma vingança atrai outra. Então, em nome de Deus, ou mesmo em nome dos valores humanos, são capazes de perdoar e, assim, a nossa sociedade vai para a frente.

 
Deixou entender acima, que a justiça social é importante para que haja uma verdadeira paz em Angola?

Claramente. Como disse há pouco, a justiça é muito importante. Sem justiça, nunca teremos paz, porque a paz não é só a ausência de guerra. Mas, se dentro do meu coração há sentimentos de vingança, de rancor contra alguém ou contra uma classe, ou contra um grupo, contra um partido, significa que a nossa Nação não está em paz. E o desenvolvimento o que é que há de fazer? Há-de fazer com que mais pessoas vivam condignamente.          

Porque ver alguns com tudo e mais alguma coisa e outros  na miséria, sem beira nem eira como se diz, faz com que sentimentos de revolta possam nascer naqueles que são mais sensíveis. Então, mesmo que não haja luta armada, mas se assistirmos a conflitos sociais aqui e acolá, isto é um grande perigo para a paz em si. Por exemplo, falamos muito da fome e ela é uma realidade no nosso país. Então, quem tem fome também será levado ao desespero e não tem nada a perder. A criminalidade e não só, também está a aumentar, justamente, porque a barriga vazia faz com que tomemos atitudes que, em condições normais, não tomamos. Então, é roubo disto e daquilo... Tudo torna-se legítimo, por causa da sobrevivência a que estamos sujeitos.

 
Qual deve ser o caminho para que haja uma cultura de paz no nosso país?

Temos que crescer mesmo nesta cultura de paz. Procurar resolver os problemas pelo diálogo, pela justiça e saber que tudo se resolve com a paz. Ou seja, ganhamos com a paz e tudo perdemos ou podemos perder com a guerra. Tivemos muitos anos de guerra e isto é suficiente, como experiência negativa daquilo que nós vivemos e é, também, suficiente para não desejarmos mais a guerra e resolvermos os nossos problemas por via do diálogo.

 
Esta paz que Angola alcançou há 21 anos tem sido bem aproveitada para a reconciliação e desenvolvimento do país?

Não a cem por cento. Temos de ser realistas, porque eu disse, há pouco, que nas últimas eleições houve umas tensões tão fortes que temíamos que a guerra recomeçasse. Se não fosse a guerra, enquanto tal, aqueles que são adversários políticos seriam vistos como inimigos. E quando a gente vê um inimigo, certas mentalidades fanáticas, consideram um alvo a abater. A inclusão, acho eu, é um desafio que devemos enfrentar e resolver, como angolanos, com muito patriotismo e humanismo. Aceitar e privilegiar, antes de mais, o homem angolano, a sua formação, o seu saber, antes daqueles que são, digamos assim, os valores mais egoístas: os próprios partidos, a própria etnia, língua, ou seja, favorecer o próprio grupo social e aquilo que humanamente é algo que toca a mim ou ao meu grupo para aceitarmos que, outros angolanos, naturalmente, com capacidade comprovada, possam fazer parte da resolução dos nossos problemas.

 
O que quer dizer com valores mais egoístas?

É verdade que, um partido ganhou as eleições. Ninguém nega isto. É verdade que foi chamado a formar o Governo. Mas também, é verdade, nenhum partido angolano tem capacidade para poder governar à vontade Angola  com toda a competência. Então, o patriotismo deve levar-nos, antes de mais, a valorizar o angolano enquanto tal, a sua experiência, a sua formação, a sua educação... E, lá onde ele poder dar o seu contributo, lhe seja permitido, não em valores, mas onde a ciência deve prevalecer, para darmos maior importância àquilo que é a militância. Neste ponto, por exemplo, o Governo e a própria sociedade devem fazer mais esforços para valorizar o angolano. Quando se diz que o angolano deve ter prioridade, é uma prioridade em todos os sentidos. Mas sobretudo, neste sentido de valorizar Angola, nossa Nação antes de pormos o nosso partido à frente e, nestes termos, nós devemos trabalhar mais na inclusão de todos aqueles que dão o melhor na nossa sociedade,  é importante isto.

 
A este propósito, o que é devia ser feito de concreto?

Angola apresenta muitas oportunidades que devem ser lançadas a todos os angolanos e não sempre os mesmos grupos, as mesmas famílias a terem privilégios dessas oportunidades. Portanto, são a abertura e a justiça que hão-de nos ajudar, de facto, a viver bem na esteira do desenvolvimento.

 
Qual é o papel que a educação deve desempenhar para incutir a cultura de paz na sociedade?

A educação, desde tenra idade. Naturalmente, nós, desde à família, devemos pautar por uma cultura e educação de paz, de fraternidade, porque quer queiramos quer não, nós, também, acabamos por ser o reflexo daquela primeira educação que recebemos da família. Se a pessoa, como aconteceu por exemplo, no tempo da guerra, ainda em tenra idade ouve falar aquele como inimigo, aquele que come corações, aquele que come isto, que massacra,  tortura, que faz isso e aquilo é o fulano, o partido tal, é a organização tal; aquela criança que cresce nesse ambiente familiar, como é que se comporta? Odiando. Não conhece nada da realidade, mas já foi influenciada negativamente e, quando vê alguém que tem uma determinada farda, um determinado lema, um determinado holístico, logo identifica-o ou como amigo ou como inimigo. Então, é de criança que a gente deve educar sobre a paz, educar sobre a diversidade, educar sobre uma forma de inclusão.

 
Sobre a cultura da paz, qual deve ser o papel da família?

Tratar os nossos amigos com muita simplicidade e os pais, se forem abertos, recebem-nos, bem, sem  olhar se aquele é filho de um burguês ou de pobre. Que condições tem, tratar os nossos ou o tipo de amigos que  traz em casa. Nesta aceitação por parte dos pais está a criar-se, também, esta sociedade que aceita a diversidade. Mas se o pai, depois, disser, "olha, eu não quero ver aquele teu amigo, porque o pai dele pertence a esta ou aquela organização, não quero ver aquele outro, porque mora no musseque, não quero ver aquele outro, porque é pé descalço”, etc., então estamos a criar, nos filhos, uma mentalidade adversa com as consequências que se conhecem na sociedade. Portanto, em casa, depois, naturalmente, na escola, no ensino primário, no ensino médio, devemos sempre ter essa mentalidade aberta. Isto há-de nos levar a criar uma sociedade, embora na diversidade, mas muito unida. Então, eu que pertenço à burguesia, por assim dizer, alguém que é burguês e tem o seu filho, pode se casar com uma moça, cuja família é de origem pobre. O que prevalece é o valor em si do amor e não a proveniência social, não o tipo de sapatilhas, o tipo de relógio que usa, ou sei lá, o tipo de carro. Acho que ser rico ou pobre não impede que este tenha uma amizade e assim também, aquele pé descalço que vem, se calhar, com o único par de sapato que usa todos os dias. São exemplos muito simples, mas que a nossa sociedade deve enfrentar e resolver com cabeça, tronco e membros, e não com violência.

 
Ou seja, nem o pobre odiar o rico e nem o rico odiar o pobre…

Nem o pobre deve odiar o rico, ou pior ainda, invejar, assaltar lojas ou isto e aquilo, só porque eu não consigo, ou porque penso que não foi ganho com honestidade, então deve-se destruir tudo, não, mas, também, vice-versa. Deve haver aquela compreensão e todos trabalharem para o bem-estar da sociedade. Por isso é que "o desenvolvimento é o novo nome da paz”. Então crescer e dar oportunidades a todos, com as riquezas que temos, com aquelas políticas mais acertadas de crescermos a cada dia e não que os ricos se tornem cada vez mais ricos e os pobres passem da pobreza à miséria continuamente. Mas, que haja um crescimento que seja capaz mesmo de constatar de que estamos a crescer e que o cidadão sinta a diferença na sua vida, são elementos que poderão gerar a compreensão e a tolerância.

 
O ensino que temos hoje consegue transmitir esta mentalidade de paz?

Em relação à educação, temos que reconhecer por exemplo que no tempo colonial tínhamos um certo rigor, claramente. O Ensino tem sempre uma certa ideologia ou uma ética. Então, os angolanos na mentalidade colonial, não eram admitidos a superar a 4ª classe. Eram poucos aqueles que conseguiam ir ao liceu; eram pouquíssimos os que conseguiam ir à Universidade. Depois da Independência, nos primeiros anos, este rigor manteve-se, embora houvesse aquelas comparações de que, quem fez bem a 4ª classe colonial era superior a quem fez o 2º ano do liceu depois da independência. Já havia degradação e, infelizmente, ela continua. Os pais de certas famílias, naquele tempo, hoje, quando chamam os filhos e vêem os erros que cometem, ficam espantados. Um exemplo: os nossos mais velhos chamavam os filhos que estudavam a 3ª ou a 4ª classe e eles escreviam muito bem e mandavam as cartas. Depois virou-se o papel, aqueles mais velhos que tinham conseguido estudar até à 4ª classe eram esses que eram chamados a escrever, até conseguiam corrigir os alunos com o I ciclo. Então há degradação muito forte.

 
Qual foi a intervenção do Ministério da Educação na altura?

O Ministério da Educação tentou, depois, travar essa inversão, mas não conseguiu. Não digo que não tenha feito nada, fez muito, mas não conseguiu travar essa inversão. Os nossos professores, também, foram perdendo aquela consideração que tinham antigamente. O professor era o segundo pai, tinha autoridade moral, além daquela autoridade científica, eram respeitados. Antigamente, também, nós íamos com chicotes. Eu quando estudei era com chicote, cada erro, palmatória. Claramente, eram tempos diferentes e não digo que agora vamos voltar com aqueles métodos, não, mas há outras metodologias, outras pedagogias que nos devem levar a manter o rigor. Uma nova mentalidade, mesmo que não se use palmatória, chicote ou aqueles castigos de ajoelhar na areia, nas pedrinhas. O que é que devemos fazer para que a educação retome o seu rigor, retome a sua autoridade? Lamentar, claramente, a qualificação dos nossos professores, porque somos agora formados na deficiência, também, são deficientes, disto não há dúvidas.

 
A corrupção no ensino é um outro problema nas escolas. Acha que aprovar em troca de um pagamento tem influência na qualidade do ensino de hoje?

Também. No fundo foi a corrupção que estragou, também, essa parte da educação, do ensino, porque não há aquele rigor científico, passa quem paga, mesmo que não mereça. O próprio aluno leva já a sua gasosa, então esses passam. A corrupção sexual, infelizmente, também, muitos professores aproveitam-se sexualmente das suas alunas e, assim, também, em troca são aprovadas. E hoje, nós constatamos que o ensino está fraco. Todos aqueles que podem, vão para escolas privadas, pelo menos nas grandes cidades, vão para escolas privadas e a maioria que vive na pobreza fica com aquele ensino medíocre, não aprendendo quase nada, ou pouco ou mal e assim, infelizmente, estamos nesta situação que é uma qualidade de ensino muito baixa.

 
Há países da região que, apesar de economicamente serem mais fracos do que Angola, têm um nível de ensino bom?

 Tirando o exemplo da RDC, que tem dificuldades a todos os níveis, a qualidade do ensino é outra. Temos que reconhecer. O domínio da ciência não parte do domínio que temos da língua portuguesa ou da imitação que fazemos, imitando os portugueses.  Então, falando assim, nós pensamos que temos a ciência na cabeça. A ciência é ciência e a expressão da língua tem a sua importância... O domínio da ciência passa pelo conhecimento efectivo. É isto que estamos a lamentar. Não basta lamentar. Temos que fazer de tudo para superar esta situação. Vencendo nesse aspecto aquela corrupção a corroer todo o nosso ensino. Depois desta geração a quem é que vamos entregar a nossa Pátria?

 
Ainda vamos a tempo de resgatar a qualidade do ensino em Angola?

Vamos a tempo. Temos que fazer de tudo para recuperar, mas claro, tem que haver um rigor moral científico, ético em todos os aspectos da sociedade. Porque para construirmos uma nova sociedade, naturalmente, só pode ser com homens bem formados. A riqueza de uma nação, como se diz, não é o diamante, não é o petróleo, não é o urânio, não é o cobalto, São os homens formados. Temos o exemplo do Japão que não tem subsolos ricos como os nossos, no entanto, é uma das economias mais fortes do mundo. No entanto, temos que imitar. Devemos dominar o saber com toda a força. Não devemos lutar só pelo salário como também, acontece. Que exemplo daremos aos nossos filhos? Lutar por um diploma para poder ter um salário melhor, não é suficiente. É saber e ter o domínio tecnológico, científico.Tudo isso, com base numa ética baseada nos valores cristãos.

 
O factor remuneração tem influência na qualidade do ensino de hoje?

 Certamente, o salário tem a sua influência.Um bom patrão é aquele que exige, do seu trabalhador, determinadas horas de trabalho por dia, podendo fazer até extraordinárias, mas tem que pagar bem. Então, ele também tem maior possibilidade de ser fiel à palavra e o patrão exigir, porque paga como deve ser, com justiça. Portanto, para mim, é necessário. Há países nórdicos, (também, a  Alemanha, por exemplo), onde os professores têm um salário de qualidade, porque o professor tem que cumprir com o seu dever de formar bem os alunos que lhe são confiados. Mas, se o professor para tomar uma boa refeição todos os dias, ou para comprar os seus sapatos tem que depender das gasosas que lhe são dadas, claramente, não exerce bem a sua função e está numa forma assim muito precária. Portanto, é importante valorizarmos a figura do professor, com uma boa formação, com certeza, mas também com um bom salário e exigir que cumpra com o seu dever.

 
Falou do ensino privado. Acha que oferece melhor qualidade, mesmo sabendo que os proprietários dos estabelecimentos estão atrás do lucro?

 A caracterização do ensino privado como fonte de renda é uma crítica que a sociedade também faz. Porque vários quadros da educação, hoje, têm como actividade privada os colégios. Então, indirectamente, pode ser que valorizem mais as suas próprias instituições do que aquela estatal. É como aqueles doutores, só um exemplo paralelo, além de exercer a sua própria função no hospital, têm as suas clínicas privadas. Naturalmente, o conselho tem sido este, "olha se queres um tratamento melhor vá para a clínica X”. Isto para aqueles que podem, mas a maioria não pode. E aquele médico que for honesto, naturalmente, vai estar disponível, tanto no hospital público, como na sua clínica privada. Por exemplo, a questão dos dentistas, quem for ao hospital sabe. Eu tenho experiência pessoal disso, fazer tratamento no hospital público e fazer tratamento numa clínica, a diferença é quase como da noite para o dia.

 
O que acha dos colégios privados?

Que haja uma política do Estado que não favoreça tanto os colégios, mas que favoreça o ensino geral. Isso é importante, porque a maioria não pode ter acesso ao ensino privado. Então, um óptimo ensino geral, pelo menos, bom, depois, quem tem também capacidade financeira que se arranje num colégio. Porque é assim: o colégio pode ser de estímulo ao geral. Mas, se o geral é fraco, estamos a privilegiar só uns tantos e a maioria nada. O que nos vai levar a ser um país fraquíssimo.

 
Acha que a geração adulta tem exercido um papel relevante na preparação dos jovens para os desafios do país?

A geração adulta está com dificuldades, porque, a meu ver, nem toda ela herdou aquelas qualidades que devia ter. Porque o tempo passa e quadros cimeiros, aqueles homens de grande qualidade, boa parte está a ir-se embora. Estão alguns jovens bem formados a tentar ocupar, não só cientificamente. A parte moral também é importante. E às vezes vemo-nos com dificuldades em transmitir valores humanos à nova geração. Não digo científicos. A moral deve ajudar a parte científica.

 
As mudanças ocorridas ao longo da história do país tiveram alguma influência neste estado das coisas?

Tivemos grandes dificuldades, desarranjos ao longo da nossa vida, da nossa história como Angola, mudanças de regime e de moral também. Tivemos a moral cristã, depois veio o socialismo e, como consequência, tivemos a moral socialista que no início funcionou. Depois, também, foi abaixo e há uma geração que cresceu assim sem uma moral de Estado forte.

O que se vê, por exemplo, não é por ser da igreja, quando se enfrenta a questão sexual. Há uma libertinagem muito forte. A gente já não sabe valorizar, escolher. Não sabe dizer o que é lícito e o que não é. Por exemplo, a questão do aborto é muito alta no nosso país. A gravidez precoce é uma realidade nos nossos jovens, nos nossos adolescentes. É uma responsabilidade moral também.

 
Que país é que teremos no futuro com esta qualidade do ensino?

 E mesmo o nível da criminalidade, em parte, é fruto desta educação que não se conseguiu transmitir aos nossos jovens ou a pessoas com uma certa idade, não mais jovens. Mas, hoje, também, encontramos grandes dificuldades a nível das nossas escolas para transmitir valores éticos. Falamos muito do resgate de valores, mas quais valores? Onde é que estão esses valores, quem é que os transmite? A sociedade tradicional, praticamente, perdeu todo controlo sobre os jovens. Hoje, são poucos tribunais tradicionais que resolvem problemas familiares de vária ordem que antigamente tinham suporte dos mais velhos. Hoje, os mais velhos perderam muito a própria responsabilidade. Nas nossas aldeias acontecem muitos crimes, muitas coisas e os nossos jovens não sabem como fazer. E os mais velhos, também, não sabem como responder. Portanto, aquele rigor tradicional perdeu-se e não houve nada como substituição.

 
Neste caso, a igreja é chamada, também, a desempenhar o seu papel?

É sim. A igreja é chamada, mas ela sozinha não pode fazer tudo. A igreja é daqueles que pertencem à igreja, mas alguns valores são humanos, não são só da igreja. Então, a sociedade tem que intervir; a escola tem que intervir e o Governo tem que ajudar as igrejas, se queremos que o resgate dos valores seja uma realidade. O Governo deve ajudar a igreja a lançar aqueles valores humanos e evangélicos que vão ser de grande utilidade para toda a sociedade e mesmo nas igrejas. O que também substituiu a antiga religião, também, praticamente, não está a funcionar. A cadeira de Educação Moral e Cívica não está a cumprir o seu papel. Eu não exijo que o professor tenha uma formação religiosa, mas uma formação humana profunda, pelo menos isto sim. Hoje não podemos só reclamar que no passado era assim, nós respeitávamos os mais velhos, os professores…Mas o que é que estamos a fazer para os nossos filhos? Claro, diz o provérbio que "ninguém pode dar aquilo que não tem”. Pode ser que por causa disto exista esta problemática de não ter e não saber o que dar. Às vezes sim, o exemplo dos pais não abona em nada os filhos. Então os filhos não têm uma orientação concreta. Hoje, mais do que nunca, a crítica construtiva, nem tudo o que se vê pela televisão deve ser praticado. Hoje os nossos miúdos, adolescentes vêem toda pornografia possível  e imaginária. Deviam ser acompanhados…”olha, tens telemóvel: tens isto e aquilo. Estás a ver isto, então os critérios do discernimento têm este valor ou deve ser evitado”, por isso têm de ser acompanhados.

 
Que caminhos seguir?

O nosso problema é a corrupção. Infelizmente, caímos numa corrupção. Também reconhecemos, mas não sabemos como cortar o mal. Porque, primeiro, temos dificuldades em cortar essa corrupção, acabar com ela e não sabemos como não transmitir às gerações vindouras esta corrupção. Praticamente, fazemos um esforço para cortar, mas por outro lado, a educação que damos aos filhos, indirectamente, é aquela: olha aproveite, porque essa é a vida! Estamos a estragar o futuro dos nossos filhos e do país, naturalmente. Mas nós devemos ser, também, realistas, optimistas e agirmos. Para nós, com a nossa fé, com Deus tudo é possível. E nós, também, já tivemos essa experiência negativa, como Nação, quisemos construir uma Nação sem Deus e foi um desastre. Mas, com Deus, é possível mudarmos e acreditarmos, também, nos nossos valores. Não podemos passar a copiar tudo que os outros países fazem ou deixam de fazer.

 
Qual é o seu conselho para que haja cultura de paz em Angola?

Em relação à paz, devemos sempre saber a importância de não brincar com o " fogo e a gasolina”, porque como bem sabemos as consequências de uma propaganda política. Para se começar o mal é muito fácil, depois para o travar é difícil. Então em atitudes de paz, além de se primar pela verdade, é preciso ter o cuidado de não usar para fins políticos realidades que não são verdadeiras e, que podem incendiar aquela paz social, aquela convivência pacífica. Então devemos estar muito atentos a não fomentar outras guerras para que o nosso país marcado pela diversidade possa continuar a viver e a identificar-se como angolano.

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