Entrevista

Israel Campos: “A realidade angolana desafia os conceitos de ficção”

Analtino Santos

Jornalista

O jornalista e escritor Israel Campos está no país para apresentar o livro “E o Céu Mudou de Cor”, romance editado pela Kacimbo, que marca a sua estreia no campo literário. Na passada sexta-feira esteve na livraria Kiela, em Luanda, para o pontapé de saída da tournée por Angola. Hoje o encontro com o público é na Centralidade do Kilamba, depois da passagem ontem pela biblioteca Despadronizada, em Viana. Na próxima terça-feira, 23 de Maio, estará no Huambo

21/05/2023  Última atualização 10H07
© Fotografia por: Francisco Lopes | Edições Novembro

Israel Campos afirmou ao Jornal de Angola que não foi difícil fazer o exercício que empreende no romance "E o Céu Mudou de Cor”, de ficcionar a realidade angolana. "Eu acho a realidade angolana, de tão surpreendente e caótica às vezes, muito fácil de se escrever. Até acredito que a própria realidade desafia os conceitos da ficção, porque ela é tão surpreendente que quando contada a outras pessoas alheias a ela parece que estamos a inventar alguma história”.

O autor continua: "Temos bastantes elementos dentro da nossa vivência, do  nosso dia-a-dia, que ajudam bastante a escrita no campo da ficção”. Defendeu que é preciso algum distanciamento, e que, no seu caso, sente que consegue escrever melhor sobre a nossa realidade e as nossas questões "quando estou um bocado fora do nosso país. Nos últimos anos a minha vivência é estar em Angola para viver e absorver e depois ter de me afastar um bocado geograficamente para poder escrever”.

Quem lê o prefácio do livro, da autoria de Alexandra Simeão e pega a linha de pensamento da arquitecta Maria João Teles Grilo no acto do lançamento em Lisboa, que considerou o livro "claramente político”, não tem como não pensar que "E o Céu Mudou de Cor” não é um manifesto político. A esse respeito, o autor é da seguinte opinião: "Não sei se é. Enquanto autor criei uma história que tem, naturalmente, um condão político, acho que isto é evidente. Trata de questões políticas de uma forma bastante intimista e pessoal, mas não sei se eu consideraria um manifesto político”.

Na busca de argumentos, declarou: "É um livro que trata de questões políticas, económicas e sociais, que problematiza vários temas que estão na ordem do dia-a-dia da realidade angolana, mas não sei se iria tão longe ao ponto de considerá-lo um manifesto político. Mas se os leitores entenderem que sim, também  não tenho problemas.  Para mim o que importa enquanto autor é que a história chegue, que as pessoas leiam e esta leitura possa levantar algum tipo de debate na sociedade e que resulte em alguma coisa. Que possamos discutir ideias e chegarmos a algum ponto ou ficarmos calados, quem sabe, o importante é que as pessoas vão reagir e será de formas diferentes, umas falando e outras calando, acho que é assim também na vida”.

 

Preocupado com o"futuro do futuro”

Este é o primeiro parágrafo do prefácio assinado por Alexandra Simeão: "Israel Campos nasceu no tempo da indefinição em que muitas coisas deixaram de fazer sentido em Angola, cresceu preocupado com o futuro do futuro”. Desafiado a comentar essa afirmação, o autor fê-lo da seguinte forma: "Encaro com muita responsabilidade as palavras da Dra. Alexandra Simeão, a quem agradeço imenso por ter acedido ao convite para escrever o prefácio. Sim, nós somos esta geração, ela fala de mim porque sou o autor do livro, mas acho que poderia estar a falar de qualquer outro jovem da minha faixa etária e com as preocupações com o nosso futuro e com Angola que nós herdaremos dos actuais actores políticos e gestores do nosso país. Esta será a nossa Angola e da geração vindoura, portanto, esta é a nossa responsabilidade de fazermos o nosso papel, para que possamos ter um futuro mais próspero, mais digno para nós e para os outros”.

Israel Campos diz que a sua geração está preocupada em buscar as soluções para os seus problemas. "Entendemos que existem soluções para resolvê-los. Não gosto de entrar nesta guerra intergeracional mas é evidente que há aqui, na nossa realidade, uma geração que falhou em fazer o seu papel histórico, não se preocupa até hoje sobre qual será o seu legado e que esquece que deveria estar a governar não só para o presente mas também para o futuro. Sinto que há um descaso muito grave naquelas que são as preocupações dos jovens, o futuro do nosso país, esta é a nossa real preocupação. Mais do que apontar o dedo é entender que nós temos de reconhecer a existência de um problema”.

No dizer de Israel Campos,  questões como as mortes nas chuvas, a malária, a transparência na gestão dos fundos públicos, a fome, e outras,  devem estar na ordem do dia e nortear o debate entre menos jovens e mais jovens. Todos temos de contribuir para que estas questões sejam resolvidas o mais depressa possível, porque há um país que não espera e que não se satisfaz só neste debate entre gerações. Há um país que precisa de actuação, quer venha de mais velhos quer de mais novos,  um país que precisa de respostas e este é o nosso país”.


Da liberdade e das desigualdades

Mateus era um estudante expulso da faculdade, jovem inconformado com o poder político, instrutor de cidadania e leitor assumido. Uma das obras que lia era "Da Ditadura à Democracia”.  O escritor explica como construiu este protagonista: "Os 15+2 tiveram um papel muito presente naqueles que foram os personagens-modelo durante quase todo o processo de escrita. Há aí também uma intenção evidente de os homenagear e ao que eles passaram a representar para toda a geração que acompanhou todo o processo e se inspirou na coragem que eles tiveram. Portanto, os 15+2 são esta referência, abrem um caminho de discussão, debate e questionamento que me influenciou. Então sim, há em Mateus vários traços dos elementos dos 15+2”.

Israel Campos falou de um episódio do seu livro, quando a transmissão televisiva durante as celebrações da Independência Nacional é interrompida por causa de uma manifestação. "Tudo passou pela criatividade. Acho que já aconteceu, penso que em 2021 houve qualquer coisa parecida. Vão acontecendo manifestações durante vários actos. Sejamos  honestos, quanto a isto não estou a fazer nenhum tipo de sugestão mas a deixar um retrato, factual ou não, um retrato das lides ficcionais que também me é permitido nesta qualidade de escritor”.

Israel explica o último capítulo do seu romance. "O último capítulo ajuda bastante na construção do título do livro e há também uma obsessão que eu desenvolvi ao longo dos últimos tempos que tem a ver com os pássaros e com o vôo dos mesmos. Está presente porque eu passei a entender os pássaros como estes seres de grandes liberdades. E até em certas alturas me encontro em posição de os invejar porque eles, por natureza, estão vocacionados à liberdade. Podem estar onde quiserem e até se manifestarem como entenderem melhor. Então o título vem associado ao vôo dos pássaros e a como certos eventos, qualquer coisa, num minuto pode mudar o céu para sempre”.

O escritor em relação à liberdade, outro tema do livro, disse o seguinte: "Desde muito cedo reconheci o valor da mesma para que possamos viver numa sociedade com dignidade, onde as pessoas possam realmente emitir as suas opiniões e contestar. Fui criado neste ambiente onde questionar não era um problema e pensava que o mundo fosse ser assim, até que ao passar dos anos fui me apercebendo que não era bem assim. A liberdade é uma das bandeiras que eu carrego. Estamos neste mundo que alguns chamam de utópico mas no qual eu acredito que é possível que todos tenham uma voz, uma palavra e não sejam tachados nem perseguidos, maltratados e vilipendiados por aquilo que dizem e pensam”.

Quanto à questão das desigualdades, outro tema presente no seu livro, Israel Campos revelou: "É um narrar fiel à realidade que vivemos em Angola e que actualmente se evidencia bastante no dia-a-dia, sobretudo em Luanda, que eu mais conheço, mas não só. Reflecte as assimetrias sociais que norteiam a nossa existência. Eu acho que o nosso papel enquanto escritor, jornalista e artista... olha, eu não consigo ficar indiferente àquilo que os meus olhos conseguem capturar e é por isso que as desigualdades sociais estão realmente neste livro, porque estão bastante presentes nas nossas vidas. Aíhá este casamento entre aquilo que é ficção e aquilo que é uma dolorosa realidade”.


Jornalista versus escritor

Os jornalistas optam por escrever romances depois de muitos anos de tarimba, mas o miúdo que vencia os concursos de redacção, o mesmo que actualmente é o jovem jornalista, não seguiu esta linha. E justifica. "Não pensei muito nesta ordem cronológica das coisas. Este livro surge da necessidade que eu sentia, a dada altura, de contar mais uma história. Na verdade o que faço no jornalismo é contar histórias e a proposta deste livro também é voltada a fazer o mesmo”.

Falando na condição de romancista, disse: "Claro que esta é uma historia diferente. Neste campo da ficção tenho uma liberdade maior de explorar vários assuntos que são do meu interesse e não tenho aquela necessidade de me cingir só aos factos.  Sempre gostei de escrever e de contar histórias. Este não é o primeiro livro que escrevi, mas claro que é a primeira obra publicada. Antes eu já tinha algumas coisas escritas, que nunca chegaram a sair. Este livro surge precisamente desta necessidade de contar mais histórias. O jornalista informa ao escritor, as duas personalidades coabitam muito bem, porque ambos, e esta é a minha experiência, estão a procura de histórias. O que diferencia depois é a forma como eles as contam, este é o grande diferencial”.

O jornalismo é algo presente no seu meio familiar. O pai, Graça Campos, é uma referência do jornalismo nacional, mas, de acordo com o nosso interlocutor, não o apoiou quando pensou abraçar esta profissão. "É claro que tenho esta influência presente dentro da família, mas os nossos percursos são muito diferentes. Começo na Rádio Nacional enquanto locutor infantil e aí vou aprendendo a gostar da profissão, me encantando e me apaixonando pelo jornalismo”.

Israel Campos reforça: "Sou um filho da Rádio Luanda, do Kaluanda Piô. Foi aí que entendi que este era o caminho que eu queria seguir. Muita gente pensa que foi o meu pai que me indicou este caminho, mas não, muito pelo contrário, ele teve sempre bastantes reservas quanto ao meu ingresso na profissão de jornalista, sobretudo em Angola. Tudo por causa dos desafios que todos nós conhecemos. Foi realmente uma decisão que eu tomei, pela minha experiência no Kaluanda Piô enquanto locutor infantil. Depois, com o passar dos tempos, fui fazendo outras coisas, como reportagens, apresentação de programas, e fui cada vez mais ganhando interesse pela necessidade quase permanente de estar sempre a procura das histórias e trazê-las ao conhecimento do público”.

No jornalismo as principais referências de Israel Campos, inevitavelmente, vêm da Rádio. "Sinto-me bastante privilegiado por ter trabalhado e aprendido com nomes como Amílcar Xavier, Mateus Cristóvão, Salú Gonçalves, Paulo Miranda Júnior, Carla Castro, Carla Pena, Mara Dalva... São várias as vozes que realmente me ajudaram a construir o percurso e influenciaram-me. A própria Paula Simmons, que apesar de ter estado um pouco afastada do jornalismo, foi sempre uma grande referência que tive. Fora do mundo da rádio tenho a Maria Luísa Rogério, o Dani Costa com quem trabalhei no "País” enquanto colunista. Não posso deixar de mencionar o Rafael Marques, com quem  trabalho no "Maka Angola” e vai me ensinando bastante”.

No livro encontramos, na nota de agradecimentos, menção a dois nomes de peso da literatura angolana contemporânea, Lopito Feijó e Adriano Mixinge. Questionado a propósito, Israel Campos sublinhou: "Realmente admiro o trabalho tanto do Lopito Feijó como do Adriano Mixinge. São duas pessoas que leram o manuscrito deste livro e me incentivaram bastante a fazer a publicação. Eles acharam que era uma história interessante e que merecia sair, então, sou muito grato, porque já os conhecia e admirava bastante os seus trabalhos e o mérito com que fizeram e continuam a fazer as suas carreiras”.

Quanto ao seu futuro enquanto escritor, Israel diz que está no começo e que ainda não tem projectos para o futuro. "Não sinto nenhuma necessidade ou pressão de obedecer a um calendário ou a uma ordem cronológica das coisas. Com estas histórias nãohá aquela pressão do jornalismo, que tem de sair agora. Elas têm de levar o tempo que for necessário. Agradeço aos leitores por aceitarem receber esta proposta e depois vamos ver o que o futuro tem para dizer para mim e para nós”.


O lançamento em Angola

O livro "E o Céu Mudou de Cor” chega a Angola depois de ter sido lançado  em Fevereiro em Portugal. O autor explica a razão disso:"As motivações  têm a ver com os elevados custos de produção em Angola, onde ainda  é muito caro fazer um livro. É por isso que muitos editores optaram por tirar os livros fora de Angola em várias direcções. Uns tiram em Espanha, outros mesmo em Portugal, no sentido de permitirem que o livro possa ser comercializado em Angola ao preço mais acessível possível. O meu lançamento em Portugal teve mais a ver com questões logísticas. Estou a estudar em Portugal e fazia mais sentido lançar aqui e depois criar condições para o fazer em Angola. Não conheço quais são as motivações dos outros autores e editoras para o fazerem nesta ordem, mas o que sei é que há cada vez mais autores e editores a produzirem fora de Angola”. 

O programa de apresentação do livro em Luanda incluía, além da livraria Kiela, a biblioteca Despadronizada e a Centralidade do Kilamba. "A livraria Kiela é do grupo Kacimbo, que tem como responsável o Ondjaki e era óbvia esta presença. Quanto à biblioteca Despadronizada  sou um grande admirador do seu projecto. Sempre que estou em Angola a frequento e tenho contacto permanente com os promotores Dago e Arantes.  Achamos que era interessante levar a apresentação do livro também a outros pontos da cidade. Os eventos culturais da nossa cidade andam numa centralização muito acentuada. A Despadronizada é um sítio em que eu me sinto bem, que acolhe e junta pessoas de várias franjas da nossa sociedade e isto é importante, porque garante a democratização do conhecimento, do acesso ao livro, à discussão, ao debate.  Gostaria de ir a outras províncias. Tivemos o apoio muito importante do Instituto Politécnico Sol Nascente, que se manifestou inteiramente disponível logo no início, para nos acolher no Huambo. É preciso levar o livro para outras províncias, precisamos descentralizar e democratizar o acesso ao livro e à leitura. É claro que não conseguimos fazer isso sozinhos porque existem muitos custos associados”.

"Temos a certeza que há um país que acontece fora de Luanda e que não pode continuar a ser ignorado, este país precisa de ser considerado e nós, enquanto autores e agentes da cultura, temos que assumir este papel e estar na linha da frente desta necessidade de democratização do acesso à leitura e ao livro”.


Perfil

Nascido em Março de 2000, em Luanda, Israel Campos, licenciado em Jornalismo pela City University of London, é actualmente mestrando em Comunicação Estratégica e Liderança, na Universidade Católica Portuguesa. Começou a sua carreira como locutor de programas infantis na Rádio Nacional de Angola, aos 12 anos de idade. Actualmente é jornalista freelancer para o serviço em português da Voz da América (VOA) e para o serviço mundial da British Broadcasting Corporation (BBC), cobrindo assuntos como política angolana, ambiente e sociedade.

Em 2021, Israel foi considerado uma das 100 personalidades negras mais influentes da lusofonia (Bantu Men, 2021). Entre as demais premiações que acumula, foi vencedor do prémio "EU GCCA+Youth Awards for the best climate storytelling”, da União Europeia, em 2021, e nomeado como finalista dos prémios "Free Press Award”, em 2022, e para os prémios "Amnesty Media Award”, no mesmo ano. Israel foi homenageado este ano pelo seu contributo jornalístico e juvenil na Gala Afrodescendentes em Zurique, Suíça.

Comentários

Seja o primeiro a comentar esta notícia!

Comente

Faça login para introduzir o seu comentário.

Login

Entrevista