Entrevista

Kajim Ban-Gala: “Publicar em Angola é uma dor de cabeça”

O escritor Kajim Ban-Gala regressou à publicação com o lançamento ontem, na sede da União dos Escritores Angolanos, dos livros “Celestial Baía Azul”, poesia, e “Mutambi na Sanzala”, contos. Motivo bastante para entrevistar o também jornalista e jurista por muitos conhecido como Felisberto Manuel da Costa “Costinha”. Kajim Ban-Gala, seu nome de raiz como explica mais abaixo, fala das suas origens em Catete, na região de Icolo e Bengo (fonte do livro de contos), do seu amor por Benguela (fonte do livro de poesia), problematiza o rótulo “escritor de Catete” e revela que a atitude de intervenção cívica que o caracteriza tem raiz na sua família, de que faziam parte os nacionalistas Hoji-ya-Henda, Mendes de Carvalho “Uanhenga Xitu” e Deolinda Rodrigues

22/10/2023  Última atualização 11H33
© Fotografia por: Edições Novembro

"Celestial Baía Azul” é um canto de amor a Benguela, por um poeta de Catete. Fale-nos desse seu sentimento, desse seu amor por Benguela, como é que tudo começou?
Primeiro, quero agradecer ao Jornal de Angola pelo interesse que demonstrou pelas minhas obras e por mim. Ao Isaquiel Cori, meu confrade, e ao Analtino Santos, um amigo com quem sempre gosto de conversar. Indo de encontro à pergunta: acho que sim. E mais: a poesia em "Celestial Baía Azul” é uma homenagem a Benguela de que era devedor. E começou quando fui a Benguela pela primeira vez. Um irmão meu era o Diretor Clínico de uma das clínicas referenciadas de Benguela. Um dia, ele estava no serviço e eu queria comer funji. Descemos eu e a auxiliar da casa dele. Aí chegaram umas vendedoras de peixe e ela começou a falar em umbundu com elas.  Foi aí que me perguntei: "eu não sei falar umbundu?” Este episódio levou-me a uma meditação ao longo de dias e dias. Decidi, então, conhecer Benguela. Fui a mercados e tentei falar umbundu, o pouco que, entretanto, aprendi. Voltei várias vezes a Benguela. E fiquei encantado com os lugares, as pessoas, os linguajares.

E o livro como é que surge? Foi-se construindo ao longo do tempo? Nasceu como um projecto ou resulta de uma recolha a posteriori?
Começa neste episódio. E até escrevi um livrinho em prosa sobre Benguela, que é uma crónica. Não vou ainda publicar.Não há recolha, é sentimental.  As pessoas, os lugares, a comida. É o resultado destes meus vários encontros com as várias benguelas que conheci e vou conhecendo. O encontro com as pessoas, falar com as pessoas, tomar um copo com os amigos de Benguela. Comer um calulu de garoupa fresca e seca, acompanhado com lombi e pirão. Não é um projeto em si, mas o sentir e vivenciar coisas e situações. É espontâneo.

Tem dialogado com escritores de Benguela?
Um dia fui a Benguela. Ligou-me um poeta e nos encontramos num hotel. Não sabia que era meu leitor. É meu confrade, Sapuya Wandalika, um jovem poeta. Mas, por exemplo, sou leitor antigo de Ernesto Lara Filho. Foi como sabem, um grande cronista benguelense. Agora, quando lá for, para o lançamento de "Celestial Baía Azul”, terei, certamente, a oportunidade para dialogar com escritores e escritoras de Benguela.

Aceita pacificamente que o rotulem como escritor de Catete? Acredita que o seu local de nascimento só por si define e identifica a sua escrita?
"Escritor de Catete”? Isso é o quê?Uma provocação? Claro que nasci em Catete mas não escrevo especificamente sobre Catete. A poesia é universal. Mas não podemos ser globais se não formos, primeiro, individuais. E universalidade só existe porque há culturas individuais. Só haverá universalidade se houver uma contribuição local.Qual é a questão? A minha poesia é de Catete? A poesia de Drummond é de Itabira? A poesia de Agostinho Neto é de Catete? Lá está: o poeta pode pertencer a um lugar mas sua poesia não é necessariamente localizada.

Esse tipo de rótulos não será igualmente limitador, no sentido de que remete o autor e a sua obra a uma espécie de "bairrismo literário”?
Repare que o alegado conceito de "bairrismo literário” está entre aspas. O próprio entrevistador tem dúvidas sobre o tal conceito. A pergunta permite alongar-me um pouco mais.  Desde logo, ao escrever sobre um lugar específico e as suas gentes, não significa que o autor e a sua obra se encaixem num pretenso "bairrismo literário”. Isso é uma mera presunção. Uanhenga Xitu sempre escreveu sobre Catete, suas gentes, suas tradições. E é um escritor universal. Desde Catete a São Paulo, Bahia, Lisboa e Porto, é lido e estudado em universidades.

 A sua obra vai da poesia ao conto, à crónica. Quando é que decide que é chegado o tempo deste ou daquele género literário?
Devo decidir entre poesia, o conto e a crónica? Não necessariamente. O novo Nobel da Literatura é romancista, dramaturgo, poeta. Há algum mal nisso? No que me diz respeito, sou principalmente um poeta. Mas julgo que a poesia também resulta, na sua execução material, de o poeta ser um bom prosador.

Regressemos ao princípio de tudo. Como é que se torna escritor? Quais foram as determinantes ambientais, vivenciais ou circunstanciais que o tornaram escritor?
Ser escritor é uma vocação. Nasce com o indivíduo e o seu talento é que dá corpo ao ofício. Uma vez no Brasil, o professor da cadeira de Língua Portuguesa recomendou como trabalho de casa um texto sobre qualquer assunto. E a opção era individual. Eu escrevi uma crónica. Dentre os muitos trabalhos, o professor escolheu o meu e eu fui convidado por ele a ler o texto para toda a turma. Provavelmente, foi aí que me descobri escritor.

 A sua infância decorreu inteiramente em Catete? Quando e em que circunstâncias é que vem para Luanda?
Eu nasci numa Sanzala chamada Kubaza. E nem figura no mapa de Angola. A minha rotina era similar a dos miúdos da sanzala: jogar bola de trapo, tomar banho no rio Kwanza e pescar dibuangas. No mais, passava algumas temporadas nas lavras da minha avó Kyeza, seu nome de raiz, ou Domingas Miguel, seu nome administrativo. Lá, havia mais emoção: o meu tio Mizozo levava-me a xuxuar bagres e musolos. E aprendi com ele a montar armadilhas para apanhar dicoles. Dicoles que eram a nossa alimentação e eram assados no espeto. E depois, havia o espectacular kitande de óleo de palma virgem. Obviamente, o matabicho era muelele de kandumba. E o inevitável e maravilhoso funji de kandumba com molho de musolo e muitos kiabos. No livro "Mutambi na Sanzala” os leitores encontrarão estes e outros ambientes. No que me diz respeito, saí de lá com 6/7 anos por aí. Vim a Luanda estudar, eu e os meus irmãos. Só lá voltei quando tinha 30 anos e foi no mutambi da minha avô.

 De onde vem o nome Kajim Ban-Gala?
A minha avó viveu ainda os últimos momentos dos grupos do reino da Matamba, já na fase da dispersão. O meu tio contou-me. Não falava português. E nunca a ouvi falar português.Comigo sempre falou em kimbundu e lembro-me dela chamando-me para o almoço... "Kajim bangaleee”; "eye, Kajim bangala, zanhi u kumbule muzongué...” Portanto, esse Kajim bangala sou eu. Pequeno cajado. Não é o meu pseudónimo literário, é o meu nome próprio de raiz.

 Pertence a uma família com várias individualidades que se notabilizaram no nacionalismo angolano. Basta mencionar Hoji-ya-Henda e Mendes de Carvalho "Uanhenga Xitu”. Diga-nos, por favor, como foi o despertar da sua sensibilidade cívico-política?
É verdade. E Deolinda Rodrigues. O primeiro episódio, efémero, em que me vi envolvido foi quando a minha tia Teresa teve que refugiar-se em Mbanza-Kilete, acho. E levou-me consigo. Mais tarde soube, então, que ela tinha sido detida pela PIDE junto com outras senhoras da Igreja Metodista. A minha tia acabou por falecer em decorrência de um derrame resultado de torturas psicológicas da PIDE. Ela era amiga e contemporânea de Agostinho Neto. Era estudante da "Emídio Navarro” quando um colega, mais velho, me falou da necessidade de criar uma célula clandestina. Entretanto, acontece o 25 de Abril e nunca mais o vi. Já na Escola Industrial aderi à greve estudantil e mais tarde tornei-me vice-presidente da Associação dos Estudantes do Ensino Secundário.

 De onde é que nasce a fama de Catete? Quais são as razões históricas que explicam a preponderância de Catete no imaginário nacional? Certamente que tudo não se resume aos cacussos de fim-de-semana...
São as tradições que preserva até hoje. A sua culinária peculiar e o modo cantante de falar o kimbundu. E depois, as suas figuras históricas.  Cacussos os há em todo lado em Angola e no resto de África e do Mundo. No Brasil, chamam Acará. A questão é saber porquê Catete é considerada a "capital do cacusso”. Às vezes,em certos lugares, vejo serem "torrados” os cacussos, chamuscados mesmo. A única parte do cacusso que deve assar muito é a cabeça. E é aí que está, como dizemos na minha terra, o ufunu.

Continua jornalista ou este profissional, em si, está reformado?
Estou reformado, não. Fui reformado e tentaram humilhar-me, a famosa forma tentada, que se diz na doutrina do Direito. Mas eu sou um Catete, sou resistente.

Consegue imaginar a sua vida sem as redes sociais?
No mundo globalizado de hoje é impraticável e desavisado, presumo. As redes sociais não são apenas, não têm apenas o lado negativo. E mesmo o lado negativo geralmente transporta uma mensagem subjacente. Agora, as redes sociais existem para o mal e para o bem. O poder de filtrar, seleccionar, partilhar pertence ao usuário. Talvez, se voltar a colocar-me a questão daqui a um ano, eu responda que sim.

"Mutambi na Sanzala & Outros Contos” é uma espécie de legado cultural às novas gerações?
Não sei se é nesse sentido, sinceramente. A Fundação UanhengaXitu tinha-me convidado para liderar um grupo de trabalho para fazer a releitura das obras do meu avô. E eu chamei o António Gonçalves. Numa das suas obras, ele lança um apelo enfático a que não deixássemos as tradições de Catete, enfim, as suas gentes e costumes, morrerem. Era preciso responder a este apelo. "Mutambi na Sanzala & outros contos” é o começo. Já estou a escrever, na verdade, a terminar de escrever o próximo livro, "UsukuWaNzumba” ("Noite de Tormenta”).

O que é precisamente o Mutambi?
Cerimónia "postmortem” que, pelo nosso costume, deve ocorrer um ano depois da partida do ente-querido. Segundo a crença, não se realizando este dever os espíritos dos ancestrais não se acalmam e assim a vida dos descendentes será atribulada. A este propósito, vale ler o prefácio do mais velho Chico Adão, um académico, político, jurista e profundo conhecedor das tradições.

Aqueles rituais de óbito antigo, que chegavam a durar semanas e na verdade eram festas, fazem parte do passado. Pessoalmente acha que devia-se retomar aquela antiga tradição?
Quanta infâmia contida nesta pergunta! Valha-me Deus, para não soltar uma bujarda. "Festas?!!!” Aquela antiga tradição, a que se refere, graças aos ancestrais, nunca foi abolida na minha terra.

Há quem diga que Luanda é o grande carrasco de Icolo e Bengo, da sua cultura e tradições, pela proximidade que atrai os jovens e impõe os valores da grande cidade. Acredita que a identidade de Icolo e Bengo, ou mais especificamente de Catete, vai desaparecer com o tempo?
Luanda, ela mesma, recebeu e ainda recebe a contribuição cultural de Catete. Aliás, de qual Luanda se trata? A Luanda do chamado "casco urbano”? Por outro lado, Luanda é um mosaico de culturas, nacionais e até estrangeiras. Porquê haveria de ser "carrasco” especificamente de Catete. Quer que lhe diga? A identidade de uma comunidade só desaparece com o desaparecimento dos seus membros.

Os seus contos situam-se na linha descrita por Uanhenga Xitu, mais de contar estórias do que de elaboração ou sofisticação literária?
É verdade. Os meus contos não pretendem e não desejam alcançar um grau elevado de elaboração. E muito menos sofisticação. Eu conto as situações tal como, oralmente, me contaram, e outras de que fui testemunha ocular. E não tenho preocupações estéticas.

Como é que vê o panorama da nova geração de escritores?
Com optimismo?
Com bastante optimismo, eu que sou por natureza pessimista.

O que se vai seguir, depois dos dois livros que acaba de publicar? Continua a escrever?
Às vezes quero desistir. Não dá. Publicar em Angola é uma dor de cabeça. O acto de publicar um livro no Brasil, por exemplo, resume -se a uma declaração de interesse entre o autor e a editora. E depois é caro publicar em Angola. Se calhar não tenho boas cunhas ou não desperto interesse das editoras. O bom é que tenho muitos leitores e admiradores. E isso consola-me.

Cacusso e Kubaza… O que é que vem à sua memória, a essa evocação?
Eu nasci e vivi até aos meus seis e sete anos numa sanzala, Kubaza, à beira do rio Kwanza. A actividade económica lá era caça, agricultura, pesca… então a nossa refeição raramente não era cacusso, que na verdade era crucial. Nós dependíamos dele para a nossa sobrevivência, materialmente falando, porque era um peixe camarada e companheiro. Ele aparecia todos os dias e ele pode ser feito de diversas maneiras: escalado, frito… Luanda começou a conhecer o cacusso depois da independência, mas ele faz parte da filosofia de vida da sanzala onde eu nasci.

Quando regressou para Kubaza?
Voltei quando tinha 30 anos. Saí do Brasil para a minha terra justamete por causa de um Mutambi, da minha avó Kieza que me criou. Eu já tinha esquecido que era angolano e até falava com sotaque brasileiro. Nesse regresso à minha aldeia, fui lembrado pelos mosquitos que eu tinha nascido ali. Nessa ocasião, tive ainda a sorte de ser premiado pelo meu tio com um cágado e este meu tio é o Boal. E quem ler o livro o encontrará como narrador. Este meu tio, tal como a minha avó, tinha lavras numa ilha chamada Cambombinha, que fica frente a minha aldeia. O meu tio Boal era capaz de ficar sete minutos debaixo da água, onde fazia a sua higiene e até apertava o seu taco.

Como entra no jornalismo?
Eu era da associação dos estudantes do ensino secundário de Luanda na Escola Industrial e tínhamos um jornal onde eu escrevia e alguém disse que havia um estudante com queda. Foi assim que fui convocado para fazer um teste na Rádio, na altura eu queria ser engenheiro de construção civil, mas o mais velho Bernardo de Sousa era meu vizinho e amigo do meu pai. Eu tinha dezasseis anos quando foram me buscar para fazer o teste e fui aprovado. Neste mesmo dia, comecei a trabalhar como redactor-repórter.  Uma notícia minha saiu no noticiário. Eu já não me lembro se foi em 1975 ou 1976. Depois estive entre os integrantes das equipas de reportagem do Presidente Neto, eu era o mais jovem. Cheguei depois ao cargo de sub-chefe de Redacção,  depois de regressar da Jugoslávia onde estudei jornalismo no "Jugos lovenskiInstitutZaNovinarstvo”, em Belgrado.

Como entra na Angop?
Depois de uma passagem pelo Jornal de Angola, André Passy levou-me para a Angop e lá, depois de ser admitido, fui colocado no "Desk Desportivo” e depois nomeado chefe do "Desk” pelo José Chimuco. Pouco tempo depois, fui nomeado chefe do departamento central de coordenação, que naquele contexto estava acima do director de informação, dependia do director da agência e do DIP (Direcção de Informação e Propaganda do MPLA). E nessa altura, era redactor de editoriais oficiais. Eu coordenava uma equipa forte com Graça Campos, Chico Alexandre, Quila Manuel, Salas Neto e muitos mais. Recebi a notícia da minha nomeação como delegado-adjunto da Angop no Brasil quando estava em Maputo a fazer a cobertura das cerimónias fúnebres de Samora Machel.

Fale da sua inserção no meio literário…
Um dia depois de voltar do Brasil, o jornalista, escritor e ensaísta Norberto Costa entrevistou-me e eu (ingenuamente) respondi, a uma pergunta, que era um "fazedor de versos”. E esquecido de que era angolano, passei a fazer uns rabiscos e nestes rabiscos carregava as tintas em aspectos da nossa terra e natureza humana. Ainda se percebe em "Alguns Versos” esta minha inclinação por fazer versos com elementos e características angolanas. E ao apresentar "Alguns Versos”,  o apresentador afirmou que eu sou um poeta "neo-realista”. Oh, Diabo! Não faço ideia do que isso seja. Minha poesia em "Fervor da Kianda” é quase oral. Já em "Alguns Versos”, quis ser um narrador, mas falo disso a seguir. Primeiro, falo de "Impaciência”. Raimundo Salvador, jornalista cultural, escreveu a meu respeito: "O seu texto é lírico, bucólico e fluído. Reflexiva e absorvente, a sua poesia contesta,  desperta e também abraça”. Queria ser eu mesmo a dizê-lo. Pela primeira vez, lanço uma colectânea de contos, "Mutambi na Sanzala”. Vamos esperar para ver ou melhorar, ouvir e ler o que os leitores dirão.

Kajim Ban-Gala está com muita garra… lança agora dois livros num único acto de lançamento… 
Pura coincidência. Olha, o meu primeiro livro, "Voo da Kianda”, foi solidário e teve uma menção honrosa no primeiro Prémio de Literaruta da Cidade de Luanda e tenho outro que é o "Impaciência”. O que aconteceu com os dois últimos livros foi o seguinte. Quando houve o lançamento casado de "Alguns Versos” e "A Balconista de Windhoeck” aconteceu que eu tinha escrito um conjunto de poemas em homenagem a minha irmã Maria Pimenta Lemos. Ela tinha vivido muito tempo em Portugal e no regresso, eu comecei a escrever um conjunto de versos para homenageá-la e eu já tinha "A Balconista de Windhoeck”.  Houve o lançamento casado na União dos Escritores Angolanos, na época o presidente da Mesa era o meu amigo Carlos Ferreira "Cassé”, que sugeriu o lançamento casado, talvez ele estivesse com pressa porque tinha sido nomeado Adido de Imprensa.
Agora acontece outra coincidência, provavelmente de uma dívida de consciência que tenho para com Benguela. Desta vez para além da coincidência há uma bondade do autor em agradecer, porque eu sou, na verdade, também um filho daquela terra. Sinto-me bem em Benguela,
que é um dos dois lugares onde, a par de Catete, sem dúvidas, me sinto tão bem em Angola. E além do mais porque sou uma pessoa que nasceu num lugar que não tem mar. Hoje sou muito amigo do mar, com uma relação quase incestuosa às vezes. Aliás, já não sou capaz de viver numa cidade que não tenha o mar. O Rio de Janeiro tirou o rio da minha vida. Olha que eu nasci à beira do Rio Kwanza, mas quando vivi no Rio de Janeiro e em Copacabana, a princesinha do mar, eu passei a ser não apenas um amante do mar em si, mas dos seus mistérios.

Prefácio de autoria de Chicoadão
"O conjunto de contos com que o Autor brinda os seus leitores e lega à posteridade, representa a condensação de alguns dos dizeres que os Makota dos tempos do tempo daqueles tempu, nas noites luarentas de sunguilamento das sanzalas do mato ikolense em geral e das zonas ribeirinhas em geral das margens do rio Kwanza, em particular.

Com efeito, o milenar Cerimonial de Mutambi é aquele que, desde ex ante, se segue ao do Komba Ditokwa.

A celebração do Komba Ditokwa realiza-se, normalmente, na segunda semana da morte do ente querido e corresponde ao período em que, de acordo com a tradição Lwangu, a sua alma fica em espera no além até encontrar o caminho de entrada definitiva que a conduz e introduz na mansão dos mortos.
O grandioso e requintado Cerimonial do Mutambi, celebra-se, regra geral, em qualquer período posterior ao do Komba Ditokwa, normalmente passados dois anos ou mais, depois do passamento físico do de cujus e acolhe os melhores executores dos instrumentos musicais de antanho e correspondentes cantores e dançarinos.
É, pois, no Cerimonial do Mutambi onde os anciãos aproveitam contar as histórias do passado, sem dúvida mais aprofundadas do que aquelas que dão a conhecer aos mais novos durante as noites luarentas do sunguilamento.
Daí que, caro leitor, deguste o conteúdo dos contos com que o Autor brinda a Grei e que, espero, possam servir, por um lado, para rememorar e melhorar os ensinamentos das gentes de antanho da sanzala Ikolense de Kubaza e, por outro lado, possam perdurar pelos séculos dos séculos e revivam a memória das actuais gerações que moram na parcela do Kubaza do Bairro do Cemitério Novo, hoje Bairro Popular nº2.
Fica a pergunta: afinal, quem foi a primeira pessoa, na década de 30, que transferiu a sua lavra de mandioka do museke do kilómetro 44 para junto de um imbondeiro que ficava em frente ao actual Hospital Neves Bendinha no bairro do Cemitério Novo (Bairro Popular) nº2?
Um Ikolense que se preze e veio para Luanda ainda no tempo daquele tempo tem obrigação de saber.”

Chicoadão
Luanda, aos 23 de Junho de 2023


9. e o sino não tocou

hoje Benguela não está como ontem
o canto do matrindidi não se ouviu.
as vendedoras não constam da cidade.
ninguém na Praia Morena, hoje.
meu amor não apareceu.
combinou o almoço na cidade
e não apareceu e nada disse.
a catedral vazia e o sino não tocou.
a capota não desceu da árvore.
Benguela não está como ontem.
Gisela não passou pela praia morena.
a Dona Zita não vendeu pirulitos.
o Vargas também não abriu.
os flamingos não estão nos mangais.
Lobito é distante para nós.
(KajimBan-Gala, in "Celestial Baía Azul”)

Perfil

Kajim Ban-Gala nasceu aos 10 de Novembro de 1958 em Kubaza, Icolo e Bengo, actualmentel município pertencente à província de Luanda. Além de escritor é jurista. Tem uma sólida carreira como jornalista profissional. Trabalhou na Rádio Nacional de Angola e na Angop, de que foi correspondente no Brasil. Administrativamente remetido à aposentação, continua a exercer jornalismo na qualidade de colaborador (cronista) do Jornal Metropolitano de Luanda, pertencente ao Grupo Edições Novembro, e do jornal digital Correio Angolense. Membro da União dos Escritores Angolanos, é autor dos livros "Impaciência”, poesia, "Voo da Kianda”, poesia, e "O Fervor da Kianda”,  poesia, ambos consecutivamente Menção Honrosa do Prémio "Cidade de Luanda”, "Alguns Versos”, poesia, "A Balconista de Windhoek”, 2015, crónicas/contos, "Celestial Baía Azul”, poesia, 2023, e "Mutambi na Sanzala”, contos, 2023.

Tem ensaios e artigos publicados em Angola e no estrangeiro.

Isaquiel Cori e Analtino Santos

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