Entrevista

Maria Joana da Piedade: “Salvar vidas compensa o esforço que faço para chegar à Cabala”

Manuela Mateus

“Maria Joana da Piedade é uma mulher que não olha para trás quando o problema é prestar serviço de enfermagem aos moradores da Cabala, uma comuna do distrito urbano de Catete, município de Icolo e Bengo, muito distante da sua área de residência.

23/03/2024  Última atualização 09H15
© Fotografia por: DR

Enfermeira de profissão há 17 anos e moradora no bairro Calawenda, situado no populoso município do Cazenga, Maria Joana da Piedade faz uma viagem de mais de três horas, quando vai para o seu local de trabalho, percorrendo mais de 120 quilómetros, distribuídos por ida e volta.

A enfermeira sai, habitualmente, de casa por volta das cinco horas da manhã e apanha quatro táxis, sempre que há escassez de autocarros de transporte público na rota Estalagem-Catete ou Estalagem-Cabala.

O sacrifício que suporta para chegar ao posto de saúde, onde trabalha com mais duas enfermeiras, uma das quais madre, é recompensado com o facto de estar numa profissão que salva vidas humanas.

"Amo a minha profissão como amo a minha família”, diz a enfermeira Maria da Piedade, solteira e mãe de três filhos.  

O amor que tem pela profissão está reflectido na forma como encara, "numa boa”, como diz, o facto de gastar em transportes quase todo o salário de 130 mil kwanzas que recebe como técnica de enfermagem. 

"Faço por amor à profissão”, declara Maria da Piedade, que, para poder chegar a tempo ao serviço, diz recorrer, na maioria dos dias em que trabalha, ao serviço de táxi, chegando a gastar, por exemplo, num só dia, 3.500 kwanzas.

Sobre o valor que gasta, por mês, com transporte público, a técnica de enfermagem refere que não tem o hábito de o contabilizar, "para não ficar frustrada”, tendo pedido à jornalista para fazer, mentalmente, esse exercício, a fim de ter uma ideia do que sobra do salário que ganha na sua profissão.

A enfermeira tem "sonos em atraso”, por acordar muito cedo, para poder sair de casa antes das seis horas da manhã. Antes de deixar a sua residência, Maria da Piedade efectua as típicas tarefas domésticas, deixando tudo organizado, incluindo o almoço e o lanche escolar dos filhos.

A técnica de enfermagem não depende apenas do salário para criar os filhos. "Se dependesse, não sei o que seria da minha vida”, acentua Maria da Piedade, que montou um pequeno negócio de venda de bolos, gelado de múcua e sumos à porta de casa.

O que tem arrecadado não tem sido muito, mas tem servido para equilibrar o orçamento familiar, comprando o essencial. "Apenas o essencial”, remata.

Desde que se tornou enfermeira, Maria da Piedade sempre trabalhou no posto médico da Cabala, que funciona numa simples e minúscula estrutura de alvenaria.

Devido à distância que percorre, para chegar à comuna da Cabala, Maria da Piedade já pensou em pedir transferência para uma unidade de saúde mais próxima da sua área de residência, uma decisão que nunca teve a coragem de materializar por causa do carinho que tem recebido da comunidade, sentimento que retribui por via de uma grande entrega à profissão de enfermeira. 

O posto de saúde não atende apenas moradores da Cabala. A pequena unidade de saúde recebe, também, pessoas que saem do "outro lado da margem do rio Kwanza, onde há vários bairros, como o Boaventura, Cândua, Salga e Ana Paixão.

"As pessoas, algumas delas mulheres grávidas e crianças, para chegarem até aqui, saem das suas casas entre as duas e as três horas da madrugada, o que me comove”, relata a técnica de enfermagem.

Combate à malária

A malária e as doenças diarreicas agudas são as enfermidades registadas com frequência na comuna da Cabala e arredores. 

Diariamente, chegam ao posto de saúde da Cabala, com sintomas típicos daquelas doenças, uma média de dez pessoas, número que pode aumentar para mais de 20 às terças, quintas e aos sábados, dias em que está aberto o mercado informal da Cabala, onde são vendidos, essencialmente, peixes de água doce e produtos agrícolas.

Uma prova de que a malária faz muitas vítimas na Cabala e arredores está na estatística de Fevereiro, mês em que foram realizados 150 testes rápidos, com a maioria a acusar positivo.

"Numa altura como esta, em que o nível das águas do rio aumenta, o paludismo também tende a aumentar”, explica a enfermeira de, revelando não haver, de momento, mosquiteiros para distribuição à população.

Na conversa com o Jornal de Angola, Maria da Piedade lançou uma crítica a praticantes da pesca fluvial, por transformarem mosquiteiros em redes de pesca.

A distribuição de remédios aos doentes atendidos é garantida pelo posto de saúde, um facto que aumenta a vontade da técnica de enfermagem em continuar a trabalhar em prol da saúde da população da Cabala e dos bairros adjacentes.

Água imprópria

As três enfermeiras ao serviço do posto de saúde da Cabala não medem esforços para travarem o aumento de casos de doenças diarreicas agudas, em decorrência do consumo de água imprópria.

São vários os apelos já feitos, até hoje, em campanhas de prevenção comunitária, para a população deixar de consumir "água bruta saída directamente do rio”, que está mesmo ali à mão de semear.

A desinfecção da água para a ingestão e a confecção de alimentos tem sido recomendada aos moradores pelo posto de saúde da Cabala, situado mesmo ao lado do mercado informal.  

Além disso, esse posto distribui, em pequenas quantidades, água com cloro, para ser adicionada à água conservada em recipientes pela população.

"Até onde sei, os bairros da comuna da Cabala não têm nenhum fontenário”, refere a técnica de enfermagem, lembrando que chegou a saber que, no bairro Ana Paixão, há um chafariz que está fora de serviço, por meliantes terem furtado a electro-bomba, que era determinante para o funcionamento do equipamento social.

O posto de saúde da Cabala não tem registado a entrada de casos suspeitos de tripanossomíase, também conhecida como doença do sono, algo que já não acontece com a schistosomíase, uma doença parasitária que é resultante do consumo recorrente de água imprópria.

"Na sua maioria, os casos que aparecem são de povoações onde é frequente a criação de cabritos”, explica Maria da Piedade.

Quando aparece um caso de schistosomíase, o posto médico da Cabala receita e entrega ao doente o remédio "praziquantel” de 600 miligramas, apropriado para curar a doença.

A dosagem desse medicamento é recomendada em função do peso do doente, avisa a enfermeira, referindo que um adulto que esteja com baixo peso não pode tomar "praziquantel” de 600 miligramas, por ser muito forte, sendo recomendável tomar antibióticos como ampicilina ou metronidazol.

Maior dificuldade

A maior dificuldade encontrada pelo posto médico da Cabala é a de convencer os moradores a acatarem as regras de saneamento básico, para evitar a propagação de doenças.

Ainda há muitas casas de bairros ribeirinhos sem latrinas, critica a técnica de enfermagem, adiantando haver pessoas que fazem necessidades em quintais e em espaços baldios, uma postura que, como disse, é configurada como um "verdadeiro atentado à saúde pública”.

Os apelos à necessidade de construção de latrina em cada moradia não têm surtido efeito, porque, de acordo com a enfermeira, "os moradores dizem que não têm dinheiro”.

Na conversa com a enfermeira, o Jornal de Angola ficou a saber que existe um plano de reabilitação e ampliação do posto de saúde, visando a melhoria dos serviços, uma informação que já é do conhecimento da comunidade.

A longa distância que separa a moradia em que vive do seu local de trabalho não permite que Maria da Piedade tenha uma vida social activa, nem mesmo nos dois dias de folga (quarta-feira e domingo), que são aproveitados para descansar, a fim de revigorar as forças, para ir trabalhar no dia seguinte.

Ao domingo, dia em que goza a segunda folga, a técnica de enfermagem entrega-se a Deus, assistindo à missa matinal na Paróquia de Nossa Senhora de Fátima, em Viana, e, quando não visita alguém do seu círculo familiar e de amizade, depois de sair da igreja, passa frequentemente o resto do dia com os filhos e aproveita a executar tarefas domésticas que são transferidas para domingo, por chegar exausta a casa, nos dias em que trabalha.

Este é, pois, um excerto da história de vida de Maria Joana da Piedade, que é, ao mesmo tempo, "mãe e pai”, um duplo papel que desempenha, porque, ironizou, "o pai anda esquecido de que tem filhos”.

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